sábado, 8 de novembro de 2008

O Drama e a Farsa

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Por J.L. Saldanha Sanches
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TELEJORNAL, 5ª FEIRA 30. Um trabalhador da Delphi, ar pouco feliz, manifesta o seu cepticismo perante notícias sobre a continuação da empresa. Com o estado em que está a General Motors, a vender cada vez menos, tinha razões para estar pouco animado. Temos todos: recordemos o sector dos componentes automóveis, quarenta mil trabalhadores, um dos sectores que exportam e que têm aguentado a economia. Um sector inteiramente dependente da conjuntura internacional e um pilar (oculto) do país.
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O mesmo telejornal, a seguir: um grupo de oficiais do exército, reformados e no activo, de copo na mão, num bar de restaurante, toma os seus aperitivos antes do jantar. Um jantar de luta. Quando chegam as câmaras põem um ar sério e iniciam variações do velho fado “agarrem-me, senão desgraço-me!”. Se alguns dos seus problemas não forem resolvidos, eles têm armas. Também têm armas. Na Fonte da Moura deve haver mais, e actos incontroláveis não faltam por esses lados.
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Portugal está mesmo na Europa? Não haverá por aqui uma indelével marca ibero-americana, sempre pronta surgir sob o verniz frágil do crescimento económico por debaixo de uma frágil superstrutura moderna e actualizada? Aquele grupo de gente que cria pequenas estruturas de excelência na investigação ou certas empresas que conseguem vender para o mundo inteiro - aquela que circula entre Portugal e o mundo, será mesmo de cá ou aconteceu apenas ter nascido aqui?
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Olhamos para o telejornal e, de repente, vemos, vindo do fundo de nós próprios, as tão tradicionais formas do quartelazo, do pronunciamento. Afinal não estamos assim tão longe do tempo em que Salazar fazia com que os nomes dos novos ministros passassem pelos quartéis antes de tomarem posse e ainda todos nos recordamos de ver um general com imensas estrelas (no cânone militar ibero-americano as estrelas compensam a falta das divisões) em Belém.
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Pensando pragmaticamente nas consequências, não é para tomar a sério. Se alguma coisa nos pode tirar o sono não serão os arranques avinhados de qualquer grupo de militares atingidos pela depressão das casernas. O que no deve preocupar é a crise da indústria de componentes automóveis. Mas é profundamente sério, pelo que revela de um arcaísmo profundo, persistente, de uma cultura que temos debaixo da pele e que nenhum euro, nem nenhuma integração europeia consegue remover.
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A actual escassez de recursos que faz com que o Estado trate mal todos os seus servidores (um mau tratamento que parece uma carícia quando o comparamos com a brutalidade com que o mercado trata os que dele dependem) traz à superfície aquelas coisas velhas e repulsivas que julgávamos sepultadas. Afinal estão vivas.
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Militares vociferando para as câmaras, ministros preocupados, comentadores servis a explicar quanto lhes devemos.
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Uma comemoração ao vivo da proclamação da República com os seus golpes militares e os seus militares (talassas ou maçónicos) sobre cujos ombros repousava a tarefa de restabelecer a honra da Pátria, degradada pelos políticos.
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O euro, a integração europeia, a tutela de Bruxelas podem evitar as derrocadas financeiras e manter-nos longe da Argentina: mas não conseguem evitar que sejamos nós próprios.
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Ainda andávamos entretidos com uma guerra colonial quando já toda a Europa se tinha esquecido das colónias. Pouco depois, nós e a Líbia tínhamos um Conselho da Revolução. Agora, ainda temos ameaças de movimentações militares. A que distância está a Europa?

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«Expresso» de 8 de Novembro de 2008 - www.saldanhasanches.pt/
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Este texto é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [v.
aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

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