Por António Barreto
ERA UM PAÍS FECHADO. Um Estado autoritário. E um povo inculto. Era Portugal do início dos anos sessenta. Pequeno, pobre e periférico. País rural, quarenta por cento da população, mais do que qualquer outro na Europa ocidental. Uma alta natalidade estava na origem da população mais jovem do continente. Uma obscena mortalidade infantil (mais de oitenta por mil) e uma esperança de vida reduzida (sessenta anos para os homens e sessenta e cinco para as mulheres) denunciavam o atraso social e económico. Os horizontes eram fechados, a escola medíocre e insuficiente, a saúde pública quase inexistente, poucos os empregos industriais e a liberdade diminuta. A maior parte dos agregados domésticos não tinha acesso aos serviços públicos de água, de electricidade ou de saneamento. As infra-estruturas eram pobres e ineficazes, as deslocações eram difíceis. Os portugueses viajavam pouco dentro do seu próprio país. O número de analfabetos elevava-se a quarenta por cento da população. Legalmente oprimidas, as mulheres tinham pouco empregos (apenas quinze por cento da população activa), eram mantidas à margem do espaço colectivo e não tinham o mesmo estatuto de cidadania que os homens: viviam e morriam, em maioria, fechadas nas suas vidas domésticas. Era assim que viviam os portugueses há cinquenta anos.
À margem da Europa, o país vivia um relativo isolamento. Virado para o Atlântico e para África, onde possuía o último e imenso império colonial, os seus contactos com os países vizinhos eram reduzidos. Para as autoridades políticas, o isolamento era uma virtude. A tradição nacional, que valorizava o catolicismo e a ruralidade, era defendida e cultivada. A memória de um passado glorioso era o substituto de um futuro incerto. O oceano, fonte de memórias antigas, abria o país ao mundo. Mas a fronteira terrestre separava-o, mais do que aproximava, do único e grande vizinho, com o qual as relações não eram, quase nunca tinham sido, próximas, boas e amistosas. O Ultramar era o horizonte. Poderoso na ideologia e na retórica, mas afastado na geografia e na economia. A versão oficial proclamava uma sociedade multirracial, da Europa à Ásia. Mas, na verdade, a sociedade portuguesa era uma das mais homogéneas de todas as europeias. Os seus traços característicos punham em evidência uma grande unidade cultural, religiosa e étnica. Uma só língua dava forma a esta homogeneidade. Nas ruas das cidades, era raro, muito raro, cruzar um africano, um asiático ou qualquer outro estrangeiro. Além de tudo isto, o regime autoritário reforçava a ausência de pluralidade na sociedade portuguesa.
Sem vocação agrícola notável e sem recursos minerais (carvão, ferro, petróleo), a economia exibia as taxas de produtividade mais baixas da Europa. O nível de vida das populações era de uma pobreza certa. A permanente emigração para o Brasil e outros países da América Latina traduzia as dificuldades do desenvolvimento. Só em finais dos anos cinquenta e início dos sessenta é que a emigração para o Ultramar, Angola sobretudo, ganhou algum relevo. Curiosamente, aumentou durante os anos de guerra.
No final desta década de cinquenta, o regime corporativo ou do “Estado Novo” conhecia uma espécie de apogeu. O país tinha sido poupado à guerra e as reservas financeiras eram boas. Apesar da pobreza do povo, o Estado era relativamente rico. O governo acreditou que poderia, a partir de então, sem correr os riscos do capitalismo de livre iniciativa, prever e conduzir o crescimento económico. Apesar da ditadura de vinte anos, Portugal acabara de ser aceite pela comunidade internacional: a OTAN, a ONU e a EFTA receberam a adesão do país. O governo não tinha cedido, após o fim da guerra, aos direitos do homem, à democracia ou às liberdades públicas. Mau grado essas circunstâncias, podia agora sentar-se à mesa internacional, ao lado das democracias ocidentais e dos vencedores da segunda guerra. O facto era tanto mais notável quanto a Espanha não fora aceite na OTAN e não apresentou a sua candidatura à EFTA. É possível que, sem esta complacência ocidental e democrática, o regime não tivesse durado tanto, ainda mais vinte anos. Não o saberemos nunca. Mas é verdade que o clima internacional, a guerra fria e a cumplicidade amistosa de bom número de governos ocidentais contribuíram para a longevidade do regime.
Mas a História tem os seus caprichos. Nos últimos anos de cinquenta e primeiros de sessenta, uma série de acontecimentos vai mudar o panorama nacional. Novas forças começam a preparar-se para que o povo, as instituições e as empresas encetem uma longa e surpreendente jornada. A campanha eleitoral de 1958, durante a qual surgiu a figura do general Humberto Delgado, deu esperança aos opositores e ameaçou o governo. O início do Concílio Vaticano II inquietou os poderes estabelecidos e abriu novas vias aos católicos portugueses. Ou, em qualquer caso, inquietações e esperanças. A famosa “carta do Bispo do Porto” deixou o governo crispado e comoveu muitos católicos. A ponto de o Bispo, no regresso de uma viagem a Roma, ter sido impedido de regressar a Portugal. Os movimentos estudantis, muito activos, revelaram um embrião de classe média e uma nova audácia. O início das guerrilhas em Angola foi a prova maior. A conquista de Goa, pelos exércitos da União Indiana, em 1961, deixou o país e o seu chefe de governo em estado de choque. E nem sequer a violência indiana ou o terrorismo das primeiras acções independentistas foram motivos suficientes para conferir razão e solidez à causa do governo.
Ao mesmo tempo, a energia e a pressão económica da Europa em reconstrução estimularam uma emigração sem precedentes: mais de um milhão e meio de portugueses vão emigrar no decurso dos próximos anos. Já não vão para as Américas: é a Europa, especialmente a França, o novo destino. A integração europeia de Portugal começou então, com os cidadãos, antes do Estado. Ao mesmo tempo, o turismo fez vir ao país milhões de estrangeiros. Em conjunto, estas novas realidades, emigração e turismo, tiveram consequências indeléveis nas mentalidades e nos comportamentos. No mesmo sentido contribuiu, apesar do controlo do Estado, a televisão, criada em 1957. Nessa altura, a escola ainda não assumia uma cobertura completa do país e a escolaridade estava longe de ser universal. Quer isto dizer que a televisão se transformou no principal unificador cultural do país. Antes de os portugueses saberem todos ler e escrever, antes de terem adquirido hábitos de leitura, nomeadamente de jornais, já se tinham adaptado à televisão como meio de informação.
Na economia, preparava-se uma nova era. A adesão à EFTA teve efeitos imediatos: a abertura comercial permitiu um formidável crescimento industrial. Os investimentos estrangeiros apareceram e novas empresas viradas para a exportação instalaram-se por todo o país. Criaram-se novos hábitos. Uma nova organização do trabalho, uma produtividade elevada e salários superiores eram agora possíveis. Em muitas áreas rurais, foi esta a altura da revolução industrial. Tanto para a manufactura, como mesmo para certo tipo de agricultura, abriam-se novas oportunidades. Cerca de 1974, o país conhecia o pleno emprego, para o que contribuíram a industrialização, a guerra colonial e a emigração. Pela primeira vez, havia emprego abundante para as mulheres. Vinte anos mais tarde, elas serão metade da população activa.
Toda a sociedade estava em mudança. Por efeito de várias forças, incluindo a guerra do Ultramar que ocupava, anualmente, bem mais de cem mil soldados. As consequências deste esforço foram devastadoras. Tanto social, como económica e politicamente. A guerra esgotava os recursos e os espíritos. Por causa da guerra, as hipóteses de democracia eram menores. Por causa da guerra, jovens partiam para o estrangeiro. Mas, paradoxalmente, a guerra tinha outros efeitos. Por um lado, provocou a mistura, o “brassage” das populações, até então fechadas nas suas regiões e nas suas comunidades rurais. Por outro, estimulou a democratização dos costumes: a hierarquia militar e a camaradagem reinam na guerra e no regimento onde as divisões sociais se esbatem. A mudança surgia por todo o lado. Só a política parecia resistir. Apesar de se terem desenhado alguns conflitos dentro das esferas do poder, os responsáveis políticos estavam convencidos de que era possível resistir e fazer frente à nova sociedade que nascia sob os seus pés e diante dos seus olhos. Sem as colónias, dizia-se, o regime acabaria e Portugal não sobreviria. A primeira parte da previsão seria talvez verdade, como se verificou. A segunda era evidentemente retórica. Portugal mudaria com certeza. Autista, a elite política preparava o seu túmulo e seria varrida de cena em 1974. Mas a revolução e a contra-revolução que se seguiram e conduziram à fundação do primeiro regime democrático português, foram sobretudo o resultado das mudanças sociais que as precederam.
Aparentemente, a revolução de 1974 teve como causa a recusa dos soldados de prosseguirem uma guerra sem solução à vista. A descolonização que se seguiu foi feita à pressa e desajeitadamente, num processo que não deixa razões para orgulho. Em casa, o movimento político transformou-se rapidamente em revolução. Democrática para uns, socialista para outros. Na verdade, como todas as revoluções, foi ambígua. Depois de um ano de vitórias radicais (com nacionalizações de empresas e sectores produtivos, ocupações de casas e terras, expropriações sem compensação, prisões arbitrárias e controlo estatal da imprensa e da televisão), os moderados levaram a melhor e, como quase sempre depois de acontecimentos deste alcance, ganharam as eleições. Militares e partidos de extrema-esquerda são afastados do governo. Entre 1976 e 1982, as instituições do poder político ficam civis e legítimas. Uma espécie de normalização democrática corre o seu curso. Começaram as reprivatizações. A pluralidade de partidos, da imprensa e de opiniões é restaurada, ou antes, estabelecida.
Apesar do êxito deste processo, Portugal perdeu tempo. Precioso, segundo o que sabemos hoje. Com a guerra que se eternizava, o regime autoritário que se arrastava, uma revolução que perturbou e uma contra-revolução que se improvisou, o país perdeu tempo, energias e recursos, assim como criou conflitos e abriu feridas. Que perturbaram ou atrasaram a evolução futura. Conhecemos hoje, da península Ibérica à Europa central e de Leste, experiências pacíficas de transição rápida, tão surpreendentes quanto a portuguesa, que demonstram como, com outros tipos de mudança radical, se ganhou tempo e energia, em vez de perder.
É possível, no entanto, que, de todo este processo, não tenham sobrado, para além da evidente crispação da vida política que dura até hoje, sequelas irreversíveis. O crescimento económico, o regime democrático inexperiente mas funcional e a integração europeia ajudaram a esta espécie de reconstrução necessária depois das vicissitudes políticas. A ponto de se poder falar, hoje, pela primeira vez em dois séculos, de uma espécie de “consenso constitucional”. Apesar das divergências e dos conflitos, mau grado a crispação, o essencial parece ser aceite pela maioria. Ninguém fica de fora: não há exilados, deportados ou refugiados; não existe o delito de opinião, não há presos políticos nem censura. Monárquicos e republicanos, católicos e ateus, capitalistas e socialistas, judeus e muçulmanos, todos coexistem. “Coisa pequena”, dirão alguns. Talvez. Mas, em Portugal, acontece pela primeira vez.
Até ao fim dos anos 1990, vários ciclos caracterizam a vida colectiva dos portugueses. Aqueles foram percorridos a uma grande velocidade. Em primeiro lugar, o crescimento económico. Segundo, a transição demográfica. Terceiro, a fundação do Estado democrático. Finalmente, a integração europeia. Não obstante as dificuldades e a sucessão de crises que levaram o país à beira de desastres maiores, estas diversas etapas foram completadas com uma certa euforia. Nesse período, o espírito do tempo foi feito de muitos e contraditórios sentimentos. O de libertação e de paz, depois de uma guerra e de uma ditadura. O de abertura a espaços e horizontes ilimitados. O do consumo e do conforto material acrescido. O das benfeitorias de um Estado de protecção universal e igualitário. O do acesso generalizado à escola e à cultura. O da modernidade longamente adiada. O do crescimento das aspirações sem entraves. Os portugueses passaram a sonhar menos com glórias do passado e a pensar mais, com realismo relativo, no presente. Na verdade, o balanço de três décadas vividas a passo estugado é impressionante.
Em trinta ou quarenta anos, a mudança foi vasta e profunda. Um país tradicionalmente patriarcal e “machista” cedeu diante da nova igualdade entre sexos. As mulheres são finalmente integradas na vida pública, no trabalho e na escola. Estão ainda longe de chegar aos cargos mais altos da política e da grande empresa económica e financeira, mas já fazem parte, sendo por vezes maioritárias, da Administração Pública e das Universidades. Ainda não obtiveram a igualdade de salários na empresa privada, mas aquela já vigora na administração. O seu estatuto social e político é talvez equivalente ao das mulheres europeias, mas foi conseguido num curto espaço de tempo. Foi esta, com certeza, uma das principais revoluções silenciosas do Portugal contemporâneo.
Ainda neste período, a população mais jovem da Europa, com uma alta natalidade e uma baixa proporção de idosos, envelheceu rapidamente e regista hoje muito baixas natalidade e fecundidade, fenómeno que, estranhamente, parece não preocupar, nem sequer ocupar as atenções dos responsáveis ou das elites. No decurso desta transição demográfica, graças ao desenvolvimento da saúde pública e dos costumes, a mortalidade infantil recuou para níveis surpreendentes: a sua taxa é hoje uma das mais baixas do mundo. Paralelamente, as famílias reduziram-se e estão limitadas a duas gerações e a menos de três pessoas em média. O número de pessoas vivendo sozinhas cresce. Aumenta rapidamente o número de idosos a viver em instituições especializadas. A permissividade de costumes está na origem da diversidade de famílias: casamentos serôdios, filhos “fora do casamento”, divórcios, segundos e terceiros casamentos e uniões de facto são numerosos. Estas são tendências previsíveis e semelhantes às que se verificam noutros países. O que surpreende é a rapidez da transição, assim como o seu carácter tardio.
Herdeiro aparente de uma só cultura, Portugal era um país homogéneo onde se falava apenas uma língua, se rezava a um só Deus, se obedecia a um patrão, seguia um partido ou pertencia a uma etnia. Este país já quase não existe, está em transformação acelerada. A pluralidade de pessoas e culturas é visível nas ruas e nos espaços colectivos. Mais uma vez, é como alhures na Europa, mas, para os portugueses, é uma novidade absoluta e uma realidade construída de fresca data. Da mesma maneira, um poder opressivo, piramidal, vertical, unitário e fortemente centralizado fragmenta-se e divide-se: hoje existe uma diversidade de centros de poder, nacionais e locais, políticos e económicos, sociais e culturais.
Um fornecedor tradicional de mão-de-obra para as Américas e África e, mais recentemente, para a Europa, transformou-se, desde os anos noventa, num país de acolhimento de centenas de milhares de imigrantes de África, do Brasil e da Europa central e de Leste. Esta é uma viragem absoluta e uma ruptura fundamental com o Portugal tradicional. Depois de séculos de emigração, eis que o país é também acolhimento. Antes dos imigrantes, já o país tinha recebido, num só ano, cerca de 600.000 ditos “retornados”, naquele que foi talvez o maior e mais rápido movimento de população, em tempos de paz, da história da Europa. A relativamente fácil e pacífica integração desta população constitui ainda hoje um feito ímpar e pouco estudado.
O crescimento industrial e de serviços foi, durante vinte a trinta anos, muito significativo e semelhante ao dos “tigres asiáticos”. Entre 1960 e 1990, Portugal registou um crescimento superior a todos os países europeus. Taxas anuais da ordem dos 7% ou 8% eram possíveis. Crescimentos industriais anuais superiores a 15% verificaram-se neste país, onde, aliás, caso único na Europa, a população activa industrial nunca foi maioritária. Com efeito, a população do sector dos serviços passou directamente do terceiro para o primeiro lugar.
Uma sociedade que deixava os mais fracos, os idosos, os pobres e os doentes ao cuidado da sorte, da caridade, do gesto privado e das igrejas conseguiu organizar, em muito pouco tempo, um Estado de protecção, um Estado Providência. Este, embora pobre, é universal e não discrimina. Em 1960, a Segurança Social apoiava cerca de 120.000 pensionistas. Estes são hoje perto de dois milhões e meio, o que não deixa de criar problemas muito sérios, dada a pressão demográfica e financeira exercida sobre o sistema. Com efeito, só 1,7 trabalhadores activos suportam um pensionista, o que é o mais baixo rácio de toda a Europa.
Uma sociedade onde o “caciquismo”, a “cunha”, o favor cúmplice, o nome de família e os “conhecimentos” tinham, ainda recentemente, toda a importância, começa a conhecer um volte face. Não que o mérito tenha já, de um dia para o outro, ganho o predomínio. Mas percebem-se os sinais de começo de uma nova ordem, de novos costumes. A igualdade perante a lei é reconhecida. O mérito e a avaliação técnica independente começam a ser praticados. O reconhecimento do primado do cidadão e de seus direitos foi um passo importante. Cada vez mais, pensa-se que os conflitos possam ser resolvidos em tribunal ou, pelo menos, com recurso ao Direito. Todos os domínios da vida, da família à herança, do comércio ao trabalho, são abrangidos pelo novo entendimento da força da lei e do Direito. Os cidadãos tomam consciência dos seus direitos. A procura de Justiça cresce. Os empresários e os trabalhadores, assim como os proprietários, os inquilinos e os agricultores assinam contratos escritos e formais. Estamos ainda longe de uma sociedade meritocrática, mas os símbolos e as formas começam a ser visíveis.
Uma população pobre, realmente pobre, mal alimentada, frequentemente doente, mal alojada e sem acesso aos serviços públicos básicos, conheceu finalmente trinta anos de melhoramento constante do seu bem-estar. Mais de dois terços das famílias vivem hoje em casas de que são proprietárias. A quase totalidade é servida de água, gás e electricidade, usufruindo de cozinha, de uma qualquer forma de aquecimento e de água quente. Tudo isso está longe, muito longe dos menos de um terço dos agregados familiares que tinham esses benefícios. Entre os anos setenta e oitenta, o primado foi para os grandes equipamentos colectivos, as redes de esgotos, de electricidade, de gás e de água. Depois, com os anos noventa, chegou o tempo dos electrodomésticos: telefone, televisão, frigorífico, automóvel e outros. Gradualmente, a estrutura de despesa e de consumo dos agregados mudava também. A alimentação e a renda de casa representam uma muito menor proporção, enquanto as deslocações, a roupa, a educação e a cultura aumentam a sua parte.
Desde a década de ouro, na economia, dos anos sessenta a setenta, os portugueses viveram vinte a trinta anos de progresso permanente. É verdade que fizeram a experiência de várias crises, na política ou na economia. Mas nada interrompeu, de modo profundo, um melhoramento real do bem-estar. A esperança era mais do que um sentimento: era uma certeza. O presente parecia bom, o futuro ainda melhor. No entanto, por volta dos finais dos anos noventa, a euforia começou a ser posta em causa. A incerteza apareceu. Seguida de perto pela dúvida e a inquietação. O que parecia ter sido adquirido já o não era. O progresso já não era constante e linear. Depois de ter conhecido as delícias do crescimento e do conforto, os portugueses compreenderam que nada é definitivo. A democracia não era, afinal de contas, igual a educação, emprego ou eficiência da Administração Pública. A Europa não era a garantia do bem-estar e da segurança. O país começou a ver as suas taxas de crescimento abrandar e ficar aquém das médias europeias. Não era uma tragédia, mas, sofrendo de uma espécie de obsessão comparativa, com os outros países da Europa, descobriu-se que, desde o início dos anos 2000, o endividamento nacional aumentava muito rapidamente. Gastava-se muito mais do que se tinha e produzia. No conjunto, Estado, empresas, bancos e famílias devem mais de cem por cento do produto nacional. Este estado de coisas fica a dever-se ao crescimento rápido, a bastante demagogia política e ao consumo público e privado quase sem limites. Mas também a um défice comercial permanente. A parte dos recursos naturais e dos bens manufacturados ronda um terço da produção nacional, o que é sinal alarmante, sobretudo num país cujos serviços são pouco competitivos. A insuficiência de recursos tornou-se evidente: além da pobreza natural, faltava inteligência profissional, organização e capital.
A própria vida política tornou-se fonte de inquietação. A aparente estabilidade era, afinal, frágil. Um número excessivo de ministros (mais de vinte e cinco...) nalguns postos chave (Educação, Saúde, Obras Públicas, Finanças...), em trinta anos, mostra uma das razões pelas quais as políticas públicas não foram constantes, a ponto de darem frutos. Sinais de corrupção apareceram com insistência. Em dez anos, dois Primeiros-ministros abandonaram as suas funções e um foi demitido. Por duas vezes, realizaram-se eleições antecipadas. Por duas vezes, o Parlamento foi dissolvido, uma delas contra a vontade da maioria dos deputados. Uma legislatura completa, de quatro anos (de 2005 a 2009), não bastou para criar o sentimento de estabilidade. Até porque foi seguida, há poucos dias, de um Parlamento e de um governo sem maioria.
A explosão das classes médias, em plena expansão da sociedade de consumo, foi acompanhada do crescimento das desigualdades sociais e económicas. Não houve, é certo, aumento dos excluídos, mas a distância entre os mais ricos e os mais pobres é maior. Sabe-se que o progresso económico, assim como o da educação e da formação profissional, podem, numa primeira fase, reforçar as desigualdades. Foi o que aconteceu em Portugal. Todas as classes sociais ganharam e viram aumentar o seu nível de vida, mas as diferenças entre elas são mais nítidas. Há, na tradição, na cultura, nas políticas públicas e nas estruturas sociais, factores que reforçam a desigualdade. Nesse sentido, a sociedade portuguesa é injusta.
O desemprego, que nunca atingiu em Portugal os valores da maior parte dos países europeus, recomeçou a crescer bem antes da grande crise de 2008/2009. As empresas portuguesas têm dificuldade em suportar a concorrência dos países asiáticos, tanto quanto a de países mais produtivos da Europa. A chegada, ao mercado interno europeu, dos países da Europa central e de Leste, deixou a economia portuguesa debaixo de uma pressão para a qual não estava preparada. Apesar dos esforços de vários governos, as finanças públicas não conseguem chegar a um equilíbrio sustentado. A instabilidade financeira ameaça os sistemas sociais públicos, cuja despesa é já superior, proporcionalmente, à da maior parte dos países europeus. Aquando da grande crise de 2008-2009, um elemento perturbador surgiu ainda: o Estado português, tal como tantos outros na Europa, demonstraram crescente incapacidade de prevenção e deficiente capacidade de reacção diante dos problemas modernos e as ameaças contemporâneas.
Depois de um crescimento extraordinário, a educação pública revelou uma qualidade medíocre: o abandono e o insucesso são os mais elevados do mundo ocidental; a formação cultural e técnica dos alunos deixa a desejar, como o demonstram as estatísticas internacionais. Em termos comparativos, as capacidades técnicas da mão-de-obra portuguesa são muito inferiores às dos países parceiros ou concorrentes. A produtividade dos trabalhadores portugueses encontra-se no fundo da escala. E as tentativas de reforma, feitas em sucessão, parecem não melhorar significativamente este estado de coisas, numa altura em que a ideia de aprendizagem, quase lúdica, se sobrepõe à de ensino, que desvaloriza. Num tempo em que a equívoca noção de competência adquire o primado sobre a de saber. Ou numa altura, enfim, em que se tenta reduzir a Universidade a um tecto, retirando-lhe o papel orientador da ciência e da investigação que devia ter.
Por sua vez, o sistema de saúde pública, o Serviço Nacional de Saúde, não mostra resultados em linha com o enorme esforço financeiro de que é responsável. Não parecem faltar médicos, enfermeiros, hospitais ou equipamentos, em paralelo com os nossos vizinhos: mas a organização dos serviços e o poder das corporações profissionais são tais que o tempo de espera médio e o desperdício de recursos, segundo o Tribunal de Contas, são enormes.
O sistema de Justiça, servido proporcionalmente por mais juízes, procuradores e advogados que em outros países europeus, está em crise séria desde há vários anos: os atrasos são excessivos, os custos são elevados e a confiança que os cidadãos depositam nos seus juízes e tribunais, encontra-se, segundo sondagens sustentadas, no mais baixo ponto.
A abertura económica à Europa e ao mundo, provável responsável por alguns dos êxitos mais notáveis das últimas décadas, está também na origem de ameaças de que se não tem tomado suficiente consciência. As empresas, pouco habituadas à mudança e à inovação, largamente dependentes do Estado ou de grupos internacionais, têm dificuldade em colocar as indústrias e os serviços à altura da concorrência internacional. Em certa medida, muitas recorrem ainda a um trunfo do passado: o custo reduzido da força de trabalho. Mas é agora tarde demais: outros, na Europa de Leste e na Ásia, fazem-no melhor.
É verdade que a indústria portuguesa está longe do que era há trinta anos. O têxtil já não é o primeiro sector de exportação e os recursos naturais já quase não pesam na balança. Agora, são as indústrias mecânicas, electrónicas e do automóvel que ocupam os primeiros lugares na produção e na exportação. É verdade. Mas a dependência do exterior e a fragilidade subsequente, nomeadamente em tempos de crise internacional, são sinais de fraqueza do sector no seu conjunto. A isso acrescenta-se o declínio das actividades do mar, da terra e da floresta. A euforia da industrialização tardia e da urbanização dos anos sessenta a oitenta relegou estes sectores para as margens das preocupações políticas e das orientações estratégicas nacionais.
A União Europeia, com as suas políticas comuns desenhadas para outros países e outros climas, estimulou no mesmo sentido. Deu-se uma espécie de troca: a indústria, as estradas, as comunicações e a energia contra o mar, a agricultura e a floresta. Os recursos europeus e nacionais foram canalizados para as primeiras, enquanto nos outros sectores, considerados pertencerem ao passado, o esforço foi sobretudo o de retirar activos. O país importa hoje mais de dois terços da sua alimentação e metade dos produtos do mar que consome. Em poucos anos, a população activa na agricultura e outros sectores primários passou de 40% a menos de 6% do total. Trata-se de uma mudança previsível, em acordo com as tendências das sociedades contemporâneas, mas que decorreu demasiado rapidamente sem deixar uma agricultura produtiva à altura das necessidades. O mundo rural português é hoje povoado de pessoas idosas ou simplesmente abandonado. Muito poucas explorações tiveram êxito na reconversão e na adaptação às exigências europeias e internacionais.
Paralelamente, uma urbanização demasiado rápida conduziu milhões de pessoas às áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Inevitavelmente, nestas condições e na ausência de um Estado com tradição e competência de ordenamento, este processo foi desordenado, mesmo caótico em muitos casos. Os principais problemas sociais contemporâneos encontram-se hoje nestas áreas urbanas. Não mais, como se dizia há três ou quatro décadas, no mundo rural atrasado e pobre, mas no universo urbano descuidado, onde, além do mais, morrem os centros urbanos históricos e se desvitaliza uma parte essencial da identidade nacional.
É nestas aglomerações que o tráfico automóvel se transformou num problema maior. Os portugueses renderam-se ao automóvel, no que foram ajudados por uma política de construção de auto-estradas que mudou o país. As deslocações internas, tradicionalmente difíceis, podem hoje ser rápidas e simples num país “mais pequeno” onde todos estão perto uns dos outros. Mas o tempo perdido, todos os dias, nos movimentos pendulares, mostra que os ganhos em eficiência tiveram um preço elevado.
Na vida pública e política, a corrupção tornou-se entretanto um problema real. Ajudada pela democracia, assim como pela liberdade de imprensa, a informação sobre a corrupção está generalizada, se bem que quase nunca fundamentada e identificada. O dinheiro aparentemente fácil, as tentações de um mercado aberto e a inexistência de poderes de regulação eficazes ajudam. Os hábitos dos grandes grupos económicos que viveram sempre perto do Estado e o peso excessivo de uma Administração minuciosa criaram uma situação pouco confortável, agravada pela eventual colaboração de alguns políticos e eleitos. Pior: parece haver poucos meios de luta contra esta praga. A Justiça funciona mal e não está à altura. Há momentos em que se tem a sensação de que não existe antídoto para a actividade dos predadores do Estado e do bem público.
O crescimento rápido da população estrangeira, mais de 5% do total, é uma das grandes novidades da sociedade portuguesa. Africanos de Cabo Verde, de Angola e da Guiné, Brasileiros e Ucranianos formam os principais grupos de estrangeiros estabelecidos. Esta nova experiência, a coexistência com imigrantes dentro das nossas fronteiras, revelou-se, após duas ou três décadas, geralmente positiva. Isto é, estabeleceram-se relações cordiais, sem atritos ou conflitos excessivos, entre as várias comunidades. As condições sociais de alguns destes grupos, nomeadamente nas concentrações em bairros degradados de carácter étnico, não são as melhores e podem transformar-se em fonte de perturbações. Mas pode dizer-se que, até hoje, ocorreu uma espécie de integração natural. De qualquer modo, esta realidade, paralela ao movimento de emigrantes portugueses para o estrangeiro, obriga a sociedade e as autoridades a reflectir na inescapável natalidade e na dinâmica demográfica. São estes problemas invisíveis, que as populações evitam, mas que estão sempre presentes. Em geral, quando se tornam evidentes, é tarde de mais.
Os portugueses vivem muito melhor do que há trinta anos. A Europa, a globalização, o crescimento económico e a liberdade diminuíram os efeitos dos principais constrangimentos históricos: a pequena dimensão, a pobreza de recursos e a situação periférica. No entanto, apesar de transformados, ainda pesam. Ainda somos periféricos, pobres e de relativa pequena dimensão. E sobretudo incultos, que é uma forma de pobreza. Vivendo numa sociedade aberta, aspiram ao que conhecem, que é quase tudo, os mais altos níveis de consumo, segurança e conforto. Viajando, recebendo turistas e olhando para a televisão, os portugueses formam as suas aspirações, as ideias de bem-estar ao qual sentem ter o direito. Mas, sendo os mais pobres do grupo dos mais ricos, sabem que são, entre todos, os que estão mais afastados da possibilidade de satisfazer as suas expectativas.
Entre os anos sessenta e os noventa, os portugueses revelaram uma surpreendente plasticidade, quer dizer, uma enorme capacidade de adaptação a novas circunstâncias: a guerra e a paz, o autoritarismo e a democracia, a África e a Europa, a sociedade fechada e a aberta, a emigração e a imigração. Fizeram-no por vezes com energia dramática, correndo riscos, mas sempre souberam evitar o pior. Da ditadura, da guerra, da revolução e da contra-revolução sobram talvez recordações crispadas, mas não sequelas irreparáveis. Os sectores mais abertos à sociedade e ao mundo exterior, à comparação e à emulação, souberam ser flexíveis e empenharam-se numa via de renovação e reconversão. São os casos da banca, das telecomunicações, da grande distribuição, da hoteleira, de alguns serviços de turismo e de certas actividades ligadas à ciência e à cultura. Noutras, reina ainda um certo imobilismo e é mais difícil o desenvolvimento, como são exemplos a justiça, a educação e a Administração Pública, ao lado de sectores produtivos como os têxteis, a construção, a metalurgia e o agro-industrial. São em geral sectores fechados à exposição externa, à sociedade e à emulação. São sectores e sistemas organizados sobretudo com vista à satisfação dos interesses dos seus corpos instituídos aos quais os poderes democráticos não souberam impor uma lógica de serviço público ou um ânimo concorrencial.
A democracia, apenas nascida em 1974, ou antes, em 1976, era uma esperança maior. A Europa também, como horizonte capaz de substituir os antigos sonhos atlânticos e africanos. Temos democracia e temos Europa, pelo que se poderia falar de êxito. Mas eram também, com mais ou menos fantasia, o resumo e o símbolo de todas as esperanças e aspirações, do desenvolvimento à justiça, do conforto à educação e à cultura. Nisso, a democracia e a Europa foram também uma ilusão.
A Europa, em especial, mais concretamente a União Europeia, obriga-nos, obriga todos os povos, a uma reflexão essencial e permanente, o que está longe de acontecer. A Europa é talvez o mais forte motor de mudança que se conhece. Mudará tudo, da civilização material à cultura. Até à alma, poder-se-á dizer. Apesar desta enorme importância, o debate público, motivador de consciência, é quase inexistente. Nem em período de eleições, nem em tempos normais. Os Estados, os poderes públicos e os partidos políticos não querem partilhar com os cidadãos as suas reflexões sobre a Europa, sobre a realidade futura do Estado e da nação, nem sequer sobre as dificuldades do nosso país. A Europa não se discute. A Europa não discute. A Europa não quer ser discutida.
Sob o peso de uma identidade forte, os portugueses encontram-se hoje diante da necessidade de se comportar como toda a gente. De considerar que o seu país é como os outros. Os quarenta anos de ditadura não são mais desculpa nem pretexto. Os traços especiais que distinguiam Portugal, a pobreza, o atraso, o analfabetismo e a falta de liberdade, esbateram-se. Ser como os outros pode parecer um programa vil e triste, mas é, em última análise, uma grande ambição. Com uma certeza: apesar de igual aos outros, é o nosso.
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