quarta-feira, 28 de abril de 2010

Lenine, segundo Aguiar-Branco

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Por Baptista-Bastos

O PRECONCEITO é a forma mais agressiva de violência e a manifestação mais abstrusa de tolice. A diferença suscita a desconfiança, já se sabe; e o culto da brutalidade nasce dessa espécie de insegurança em si mesmo, própria de quem, afinal, se julga ou se deseja excluído. O preconceito provoca, em todos os sectores, não só o sentimento profundo de incapacidade de saber, como a quebra irreparável dos laços sociais.

Na sessão comemorativa do 25 de Abril, Assembleia da República, o dr. Aguiar-Branco criticou essa figura de intolerância e, sem renunciar às suas convicções (como a seguir se viu), citou Lenine, Rosa Luxemburgo, José Afonso e Sérgio Godinho, mas, também, António Sardinha, corifeu do Integralismo Lusitano. Acontece que, criticando o preconceito, o discurso do dr. Aguiar-Branco criticava a perda de referências culturais que, à Esquerda ou à Direita, goste-se ou não, pertencem ao bragal comum da nossa civilização.

Se compreendo o embaraço das bancadas do PSD e do CDS, tenho dificuldade em entender os risos absurdos do PCP e do Bloco. Ambas as demonstrações conduzem ao mesmo fim. A função simbólica do poder, cuja identificação se revela nas fórmulas paradoxais de eliminar autores ou de os integrar, consoante a "família" política ou estética a que pertencem, divide um património que é de todos. Esse preconceito conduz à queima de livros e à perseguição de escritores e filósofos, de que a História está repleta.

Por que razão Aguiar-Branco não pode citar quem quer que queira, sem suscitar o riso tolo ou o espanto ignaro? Os resquícios de um passado tenebroso emergiram nos comportamentos dos deputados. Sou do tempo em que a Censura suprimia dos textos de jornais e revistas os nomes de Karl Marx, de Engels, de Lenine, de Estaline, e que, nas faculdades, o marxismo era praticamente ignorado. Obrigava-se os portugueses a renunciar ao pensamento, ao cultivo da razão, à adopção do desconhecimento como condição e prática. Servíamo-nos de truques grotescos: Karl Marx era Carlos Marques; Lenine, Vladimir Ilitch.

As proibições, as omissões e as rasuras fazem, infelizmente, parte de uma concepção despótica do mundo, longe de estar extinta. Mas a luta dos valores humanos e culturais é a charneira paradigmática da aventura da liberdade, e prova que, amiúde, aqueles aparentemente "progressistas" são, na realidade, os mais reaccionários.

A TEMPO: Na mesma sessão, o dr. Cavaco proferiu um discurso banal pela ausência de novidade, e medíocre porque é mesmo assim. Quanto ao verdete que ele tem ao cravo vermelho, e ao que o cravo vermelho representa, a crítica ao preconceito, formulada pelo dr. Aguiar-Branco, aplica-se-lhe, por inteiro.
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«DN» de 28 Abr 10