quarta-feira, 21 de abril de 2010

Português Técnico

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Por Helena Matos

NUM TEMPO muito antigo as frases tinham sujeito, predicado e complemento directo. A presente realidade portuguesa criou-nos uma outra forma de falar em que umas pessoas alegadamente praticam umas acções que jamais se provam, sendo que essas acções, sem responsáveis nem beneficiários identificáveis, acabam invariavelmente a prejudicar o país em milhões de euros. Ou seja, na vida de todos nós diz-se que o João comeu o bolo, a Maria comprou um carro etc. Na vida pública e política, e quando os euros se começam a contar por milhões, as frases não só deixam de ter esta ordem como se aboliu a voz passiva. Assim, se é válido concluir que se a Maria come o bolo, logo o bolo foi comido pela Maria, jamais se pode dizer que sendo A acusado de corromper B, B teria de ser corrompido por A.

Igualmente na vida política se aboliu o complemento indirecto. Na nossa vida é claro que quem dá ou paga, dá ou paga uma coisa a alguém. Assim, as criancinhas aprendem que o Luís pagou o livro ao Miguel. Mas se em vez do Miguel e do Luís se tratar de dinheiros públicos, pagando campanhas partidárias, campos de golfe ou pareceres em vez de livros, quem paga nunca assume que pagou e quem recebe raramente é identificável.

Assim, sem passiva nem complemento indirecto chegamos ao desaparecimento do determinativo. Por outras palavras toda a gente diz que cumpre ordens mas nunca se percebe de quem.
A transposição da nossa perversão moral para a forma como nos exprimimos levou ainda a que o complemento circunstancial de lugar se tenha tornado num caso de polícia: actas de contratos desaparecem de edifícios públicos sem que alguém perceba como. Ou seja uma empresa ou um pobre condomínio tem de ter um livro de actas. Mas as actas dos grandes negócios do Estado, como compras de material militar, ou até as decisões do Conselho de Estado sobre a descolonização essas desapareceram e desaparecem de edifícios oficialmente seguríssimos e vigiadíssimos sem que ninguém explique como foi possível.

Neste ficar sem palavras nem sintaxe se encerra grande parte do nosso presente drama: o que acontecerá se nomearmos aquilo que nos rodeia? Sem palavras nem frases sempre vamos sobrevivendo. A bem da situação.
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In Público e Blasfémias