quarta-feira, 21 de abril de 2010

O enxovalho de Praga

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Por Baptista-Bastos

A IMPRENSA, as rádios e as televisões andam cada vez mais preocupadas com o folclore dos dias do que com a real importância dos factos. Cansaram-nos com os relatos do humor (santo Deus!) do dr. Cavaco; com a espórtula do distinto casal aos músicos de rua na ponte Carlos; com as jovialidades dos transbordos de automóveis, o percurso dos autocarros, os "kits" com comida para as personagens consideráveis. No que se refere ao enxovalho, à injúria, à humilhação com que o Presidente da República Checa, por duas vezes, mimoseou o seu convidado, e o que o seu convidado representava, a Imprensa, as rádios e as televisões limitaram-se a bocejos laterais. E o dr. Cavaco perdeu a memorável ocasião de provar ser "o Presidente de todos os portugueses."

Vaclav Klaus, Presidente da República Checa, e antigo e experimentado governante, excedeu, em grosseria, tudo o que se presume dever ser a compostura canónica de um estadista, e, com surpreendente rudeza, inquiriu se os portugueses não se sentiam nervosos com o défice de 8 por cento, facto que, com ele, jamais sucederia.

Sorridente, disperso e confuso, o dr. Cavaco murmurou não ser governante, admissão entendida por Vaclav como fraqueza ou pusilanimidade, pelo que voltou à carga, noutra cerimónia de Estado. Nem um escasso protesto, nem a mais diminuta desaprovação, nem a mais exígua frase indignada. Mais tarde, o extraordinário dr. Cavaco, contemporizador e tranquilo, resignava-se à ignomínia (porque de ignomínia se tratou) esclarecendo que o Presidente checo era, por natureza, "pouco ortodoxo." O dr. Cavaco admitia a incivilidade e a infinita grosseria do checo; porém, graciosamente, engoliu o insulto (além de outros, reiterados como um ressentimento absurdo) e confinou-se à vergonha do silêncio comprometido.

Que levou o Presidente português a este comportamento tão pesaroso quanto desacreditante? Não se encontra explicação nem redenção para um acto que o envolve pessoalmente, infama a instituição que encarna e o país que representa. Dir-se-á: quis evitar um incidente diplomático. Nessa perspectiva, a ausência de reacção teria de ser entendida como exorbitante prudência, pois a gravidade das declarações de Vaclav Klaus não devia passar sem adequada e consistente resposta, tanto mais que a responsabilidade do incidente cabia, por inteiro, ao checo. O sorridente mutismo do dr. Cavaco saltou da conveniência momentânea para a conivência sem remissão.

A viagem a Praga é a arrepiante expressão de um novo género de actuação política e a cartografia de um jornalismo feito de frivolidades, desprovido do magnífico empenho de desvendar o outro lado das coisas.

«DN» de 21 Abr 10