Por Maria Filomena Mónica
COMECEI A ENVELHECER aos 66 anos e cinco meses, quando me transformei numa espécie de Lego que se desmorona. Já sentira ameaças, mas nunca, como no último Verão, a coisa se tornara tão clara. Na antevéspera de ir para Inglaterra, ao ingerir, de manhã, um bocado de cereal, parti um dente. Embora o facto revelasse decrepitude, estava tão contente de me ir embora que me dirigi ao consultório sem apreensão. Ao entrar, caí.
Uma vez em casa, notei que o pé estava demasiado inchado para poder abstrair do facto. Nas Urgências, a médica diagnosticou um estiramento de tendões, após o que colocou uma meia elástica, me entregou duas canadianas e confirmou que podia voar. Sendo verdade que, em Oxford, as dores do tornozelo não abrandaram, o bom humor continuou. Estava triste por não poder andar de bicicleta, mas chovia tanto que o desgosto ficou atenuado. Mantive-me em frente do portátil, durante sessenta dias, a escrever o livro sobre a família açoriana que ando a investigar. A 31 de Agosto, entrava na minha casa da Lapa, ostentando na mão a pen com o rascunho da obra.
Quando soube do estado do meu tornozelo, uma amiga considerou que eu estava louca, tendo ela própria marcado a consulta para um fisioterapeuta. Este disse-me que não só a meia, que me havia sido colocada, estava demasiado apertada, mas que, tendo andado com a canadiana debaixo do ombro errado (eu optara por só levar uma), aquele se elevara. Havia pior: o facto de ter estado 400 horas, quase sem parar, num computador, dera cabo de três cervicais (daí a dormência da mão esquerda) e de uma omoplata. Tudo isto foi confirmado por uma ressonância magnética.
Dir-me-ão que o desastre me poderia ter acontecido aos 20 anos: não, não podia, pelo menos no que diz respeito à cartilagem do ombro. Claro que logo houve quem me dissesse, com ar de superioridade, que se tivesse feito exercício, não teria chegado ao meu estado, mas é demasiado tarde para reflectir sobre as vantagens de fazer o pino versus ouvir Mahler deitada.
Caso não quisesse ficar impossibilitada de andar – o que não me maçaria por aí além – e de escrever – o que já me afectava – teria de fazer fisioterapia diária, ao longo de sete meses. Desde o dia 1 de Setembro, atravesso a cidade, a caminho do Saldanha, a fim de ser medida, contorcida e massajada. Mesmo antes de Ronaldo ter conseguido a proeza, (como é óbvio, acompanhei a evolução do seu pé com uma atenção maníaca), o meu tornozelo curou-se. Invocando o caso do futebolista madeirense, vários amigos tentaram consolar-me, mas não me convenceram de que esse factor – os anos – era despiciendo, uma opinião partilhada pelas velhas que todos os dias encontrava na rua, as quais, com sadismo, me preveniam que nunca mais poderia andar como dantes. Envelhecer é isto.
Na melhor das hipóteses, não se sofre de uma doença grave, mas de um sem fim de maleitas. No dia em que acordar sem nada sentir, é porque estou morta. É verdade: esquecera-me de mencionar que sou mulher. Há dias em que o sexo me parece tão pouco relevante que minimizo a coisa, mas não devia, porque o envelhecimento feminino é particularmente injusto. Enquanto, nos homens, as cãs lhes dão sex appeal, ao menor sinal de cabelo branco as mulheres correm para o cabeleireiro, não aconteça os maridos trocá-las pelas adolescentes que empregam como secretárias. Há ainda a questão da menopausa, mais grave, ao que parece, do que a andropausa. Tendo sido, julgo, a primeira portuguesa a tomar a pílula anti-concepcional, fui igualmente a primeira a sujeitar-me ao THS («Tratamento Hormonal de Substituição). Tomo um comprimido todas as noites, sem, lagarto, lagarto, me terem provocado, até agora, efeitos secundários.
É tempo de acabar, mas não o poderia fazer sem mencionar o que, na velhice, é verdadeiramente dramático: a morte de amigos. Nos últimos dez anos, perdi o meu cunhado Luís, devido a um cancro nos pulmões, e o João Paulo, que sofria de esclerose múltipla. A minha vida nunca mais voltou a ser a mesma.
«Expresso» de 6 Mar 10
COMECEI A ENVELHECER aos 66 anos e cinco meses, quando me transformei numa espécie de Lego que se desmorona. Já sentira ameaças, mas nunca, como no último Verão, a coisa se tornara tão clara. Na antevéspera de ir para Inglaterra, ao ingerir, de manhã, um bocado de cereal, parti um dente. Embora o facto revelasse decrepitude, estava tão contente de me ir embora que me dirigi ao consultório sem apreensão. Ao entrar, caí.
Uma vez em casa, notei que o pé estava demasiado inchado para poder abstrair do facto. Nas Urgências, a médica diagnosticou um estiramento de tendões, após o que colocou uma meia elástica, me entregou duas canadianas e confirmou que podia voar. Sendo verdade que, em Oxford, as dores do tornozelo não abrandaram, o bom humor continuou. Estava triste por não poder andar de bicicleta, mas chovia tanto que o desgosto ficou atenuado. Mantive-me em frente do portátil, durante sessenta dias, a escrever o livro sobre a família açoriana que ando a investigar. A 31 de Agosto, entrava na minha casa da Lapa, ostentando na mão a pen com o rascunho da obra.
Quando soube do estado do meu tornozelo, uma amiga considerou que eu estava louca, tendo ela própria marcado a consulta para um fisioterapeuta. Este disse-me que não só a meia, que me havia sido colocada, estava demasiado apertada, mas que, tendo andado com a canadiana debaixo do ombro errado (eu optara por só levar uma), aquele se elevara. Havia pior: o facto de ter estado 400 horas, quase sem parar, num computador, dera cabo de três cervicais (daí a dormência da mão esquerda) e de uma omoplata. Tudo isto foi confirmado por uma ressonância magnética.
Dir-me-ão que o desastre me poderia ter acontecido aos 20 anos: não, não podia, pelo menos no que diz respeito à cartilagem do ombro. Claro que logo houve quem me dissesse, com ar de superioridade, que se tivesse feito exercício, não teria chegado ao meu estado, mas é demasiado tarde para reflectir sobre as vantagens de fazer o pino versus ouvir Mahler deitada.
Caso não quisesse ficar impossibilitada de andar – o que não me maçaria por aí além – e de escrever – o que já me afectava – teria de fazer fisioterapia diária, ao longo de sete meses. Desde o dia 1 de Setembro, atravesso a cidade, a caminho do Saldanha, a fim de ser medida, contorcida e massajada. Mesmo antes de Ronaldo ter conseguido a proeza, (como é óbvio, acompanhei a evolução do seu pé com uma atenção maníaca), o meu tornozelo curou-se. Invocando o caso do futebolista madeirense, vários amigos tentaram consolar-me, mas não me convenceram de que esse factor – os anos – era despiciendo, uma opinião partilhada pelas velhas que todos os dias encontrava na rua, as quais, com sadismo, me preveniam que nunca mais poderia andar como dantes. Envelhecer é isto.
Na melhor das hipóteses, não se sofre de uma doença grave, mas de um sem fim de maleitas. No dia em que acordar sem nada sentir, é porque estou morta. É verdade: esquecera-me de mencionar que sou mulher. Há dias em que o sexo me parece tão pouco relevante que minimizo a coisa, mas não devia, porque o envelhecimento feminino é particularmente injusto. Enquanto, nos homens, as cãs lhes dão sex appeal, ao menor sinal de cabelo branco as mulheres correm para o cabeleireiro, não aconteça os maridos trocá-las pelas adolescentes que empregam como secretárias. Há ainda a questão da menopausa, mais grave, ao que parece, do que a andropausa. Tendo sido, julgo, a primeira portuguesa a tomar a pílula anti-concepcional, fui igualmente a primeira a sujeitar-me ao THS («Tratamento Hormonal de Substituição). Tomo um comprimido todas as noites, sem, lagarto, lagarto, me terem provocado, até agora, efeitos secundários.
É tempo de acabar, mas não o poderia fazer sem mencionar o que, na velhice, é verdadeiramente dramático: a morte de amigos. Nos últimos dez anos, perdi o meu cunhado Luís, devido a um cancro nos pulmões, e o João Paulo, que sofria de esclerose múltipla. A minha vida nunca mais voltou a ser a mesma.
«Expresso» de 6 Mar 10