sexta-feira, 30 de abril de 2010

Mau como o Pintam

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Por Antunes Ferreira

QUANDO EU ERA PUTO, perguntou-me um tio qual era o homem pior de Portugal. Na altura, se já tivesse alguma formação política, podia perfeitamente ter dito que era o Salazar. Mas, aos oito anos de idade, claro que não tinha. E fiquei a olhar para o tio Armando, irmão de minha mãe e meu padrinho. Por isso sou também Armando. Henrique Armando Antunes Ferreira.

Contam que eu estava um verdadeiro boi a olhar para um palácio. Isto porque o meu olhar bovino correspondia à incapacidade de responder. Sabia lá eu quem era a criatura. Porém, ele insistia, qual era o pior fulano que havia em Portugal. Como fora o meu interrogador que me iniciara nos mistérios da bola de cótechu, como então se dizia, e me industriara para me arregimentar no seu clube, que era o Sporting, pensei mais umas vezes, já então em termos futebolísticos.

Neste particular, o segundo sargento da Força Aérea Armando Antunes tinha atingido o plano que arquitectara. Não um qualquer plano de voo. Nada disso. O engenhoso sistema de captação de mais um adepto dos leões que, na altura, ainda eram do Campo Grande, surtiu efeito. Até hoje sou o que os adversários mais mesquinhos e soezes chamam «lagarto».

Daí que tivesse adiantado, talvez com algumas reticências (francamente, não me recordo de todo o episódio, mas tenho mais do que uma vaga recordação), que era o Félix, o defesa central dos «lampiões», de acordo com a terminologia armandina. O que deu motivo para umas largas e sonoras gargalhadas do meu tio e, naturalmente, uma intervenção discreta do Ferreira pai, no sentido de morigerar a situação. O meu progenitor sempre foi uma excelente pessoa, ainda que usasse fato cinzento.

O tio Armando, sossegou o riso e disse-me que não, infelizmente não, o Félix não era bom, lá isso não era, mas, de forma alguma, era o pior habitante de Portugal. E elucidou-me que era o Pintam. Esbugalhei, por certo, os meus olhos já exageradamente esbugalhados. O pai Ferreira, admirado igualmente, pediu ao cunhado que esclarecesse, por favor, pois, quem era esse Pintam. Não conhecia ninguém com tal nome, ainda que, em Portugal tudo fosse possível.

E o brioso militar tentou clarear a questão. Já não era directamente comigo que ele tratava; era com o meu progenitor. A resposta era um verdadeiro enigma, quiçá mais difícil de desembrulhar do que a pergunta que lhe dera motivo. A boquiaberta criança que eu era tinha ficado de lado. Creio que não me terei apercebido disso, mas dizem que fiquei um tanto chateado. Menino, não se diz isso, é – aborrecido. O certo é que estava a modos que.
E veio o esclarecimento. «Ó Ferreira, então você não sabe que em Portugal nunca há ninguém tão mau como o pintam?» Tudo acabou num tal coro de casquinadas e registo de decibéis, que as senhoras que estavam na cozinha vieram, açodadas, de avental e colher de pau, a perguntar o que acontecera.

Tudo isto me veio à lembrança porque, de repente, no meio da tempestade económico-financeira em que estamos mergulhados até às pontas dos cabelos, e quem sabe se um pouco mais até, surgiu o Senhor Brian Coulton em entrevista ontem publicada pela agência noticiosa Bloomberg a afirmar que «o quadro da economia portuguesa não é negro como o pintam».

O citado cavalheiro é um dos manda-chuvas da Fitch, que é uma agência de notação alemã. Esta opinião parece ser importante: ela surge na sequência do facto de uma outra agência de notação financeira, a Standard & Poor’s ter cortado drasticamente o rating de Portugal. Mas o especialista em tais temas não foi de modas. E ainda disse mais.

Portugal, com um défice de 9,4% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2009, tem, na sua opinião, uma situação menos grave do que aquela que a Grécia enfrenta e relembrou até que o Executivo de José Sócrates tem um historial de redução do défice público. Mas, foi mais longe: a Espanha está em piores condições do que o nosso País.

E o Governo português tem muito mais credibilidade do que o executivo de Papandreou e já tomou muitas medidas no sentido da redução do défice antes de a crise se declarar. A finalizar recordou que, em 2008, Lisboa conseguiu a proeza de reduzir o défice para 2,7% do PIB, que é até à data presente o mais baixo de Portugal em tempo de democracia.

Percebo muito pouco destes assuntos financeiros, não sei muito bem o que é o rating, aprendi mais ou menos o que é o défice, penso que entendo o que é uma agência de notação. Em resumo, sou deficitário e muito no domínio financeiro-económica. E, apesar do não vás sapateiro, jamais me esquecerei de que não há ninguém tão mau como o pintam.

Eureka!

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Por João Paulo Guerra

Por obra e graça do Bloco Central – com esse ou outro nome – os portugueses e o mundo ficaram a perceber no que consiste a crise em que o país está mergulhado. Havia quem pensasse que Portugal estava a ser alvo da acção de especuladores. Como havia quem admitisse que o endividamento, mais dia, menos dia, dava para o torto. Outros opinavam que o consumo privado e a despesa pública estão fora de controlo. Mas, afinal, feitas as contas pelo Bloco Central a grande questão é outra. E a descoberta levou o Bloco Central a tomar medidas. Já há quem critique o excesso como quem critique o defeito.

A verdade é que nenhuma outra entidade para além do Bloco Central - como tal ou de outro modo designada - sabe em que consiste a crise. A verdade é que tem sido o Bloco Central a governar e a desgovernar Portugal, a comandar as iniciativas e comportamentos que endividam e desequilibram. Estando o PS no Governo e o PSD na oposição, ou vice-versa, o Bloco Central está de facto no poder. E foi assim que agora, o Governo do PS foi pedir ajuda ao PSD para aplicar a agenda do próprio PSD e mesmo do CDS. É o Bloco Central na sua plenitude.

E a agenda é a seguinte. O grande problema de Portugal, por cima do endividamento, sobrevoando a despesa pública, olhando de cima para o consumo privado é o número de desempregados. Não pelo problema social do desemprego que atingirá mais de 600 mil trabalhadores, para além do milhão de precários para os quais o desemprego é o horizonte. O único social que está na moda é o da capa das revistas cor-de-rosa. Mas o problema do desemprego é que tantos desempregados custam caríssimo. A este preço quase não compensa mandar pessoas para o desemprego. Eureka! O Bloco Central descobriu a pólvora para rebentar com a crise.

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«DE» de 30 Abr 10

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Passatempo-relâmpago de 29 Abr 10 - Solução

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A referência à já proverbial inoperância da polícia no que toca ao estacionamento selvagem nesta avenida (especialmente aos fins-de-semana) é feita na pág. 107 do livro «A Arte de Morrer Longe», de Mário de Carvalho.

Mercado

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Por João Paulo Guerra

A expressão “o mercado funciona” como “o mercado regula” perdeu todo o sentido embora tenha ganho um enorme significado.

O MERCADO não funciona e portanto não regula. O que funciona, e à grande, é a especulação. E nas mãos dos especuladores, os destinos de países e de povos parecem barquinhos de papel lançados ao mar no Cabo das Tormentas.

À crise provocada pela delinquência financeira segue-se a crise provocada pelos especuladores. Ninguém o quer reconhecer mas o que está verdadeiramente em crise é o capitalismo. Depois de enterrar de vez toda e qualquer preocupação de índole social, depois de arrasar conquistas sociais históricas, o capitalismo submerge numa imensa crise porque não consegue satisfazer todos os patamares de ganância sem que ele próprio se afunde.

Há poucos meses, dos "capitalistas selvagens" aos "socialistas modernos" - que dificilmente se distinguem dos capitalistas do século XIX - todos diziam que nada voltaria a ser como dantes em matéria de direitos sociais ou seja, de direitos humanos de âmbito social: Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; todos têm direito ao trabalho, à protecção contra o desemprego, a remuneração justa e satisfatória, ao repouso e ao lazer, a um padrão de vida capaz de assegurar a saúde e bem-estar. Mas agora ninguém se entende porque os vencedores dessa guerra contra direitos humanos não conseguem chegar a acordo quanto à partilha do saque. O "capitalismo selvagem" passou os limites da selvajaria.

E depois as receitas são sempre as mesmas, sejam quais forem os agentes ou as causas das crises: espremem-se mais um pouco os que vivem do trabalho assalariado. Nunca como hoje se percebe tão bem o que queria dizer Almeida Garrett ao falar do número de pobres necessário para fazer um rico.
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«DE» de 29 Abr 10

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Garzón

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João Paulo Guerra

O JUIZ BALTAZAR Garzón enfrenta em Espanha uma perseguição miserável.

É o revanchismo por parte dos derrotados da História, os adeptos mais ou menos disfarçados de turvas ditaduras. Toda a sua vida profissional, Garzón foi um homem de grande coragem que enfrentou poderes ocultos, cumplicidades do passado mais tenebroso, fazendo-lhes frente. Mais do que isso, Garzón deu a milhões de pessoas, por todo o mundo, uma réstia de esperança para crer na justiça. Talvez nem ele próprio se aperceba da dimensão que adquiriu e do símbolo em que se transformou: o símbolo da vitória da justiça sobre a grande injustiça dos fascismos, da opressão, da repressão surda ou sangrenta.

O juiz Baltazar Garzón tem um largo passado. Mas foi uma acção do presente que espoletou a ofensiva brutal que com contra ele foi desencadeada e que tem em vista impedi-lo de exercer a magistratura. O momento preciso em que a ofensiva foi desencadeada identifica quem se mexe nas sombras por detrás da acção contra o magistrado. Garzón estava a mexer numa ferida que a sociedade espanhola sempre procurou mitigar com paninhos quentes: a questão dos desaparecidos na guerra civil e no franquismo. Os escrupulosos bonzos que saltaram dos seus cadeirões, e que nunca usaram o Direito para que se fizesse justiça, querem travar a investigação do juiz Baltazar Garzón. Ao mesmo tempo, na rua, manifestações falangistas evocam os tempos em que a "justiça" era cometida por manifestantes fanáticos e arbitrários em cenas de linchamento.

Num momento particularmente sensível da História, com uma crise financeira a galopar sobre o fundamentalismo capitalista, a ofensiva contra o juiz Garzón prefigura um inquietante regresso ao passado. Foi com estas e outras que surgiram e se impuseram os fascismos.
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«DE» de 28 Abr 10

Lenine, segundo Aguiar-Branco

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Por Baptista-Bastos

O PRECONCEITO é a forma mais agressiva de violência e a manifestação mais abstrusa de tolice. A diferença suscita a desconfiança, já se sabe; e o culto da brutalidade nasce dessa espécie de insegurança em si mesmo, própria de quem, afinal, se julga ou se deseja excluído. O preconceito provoca, em todos os sectores, não só o sentimento profundo de incapacidade de saber, como a quebra irreparável dos laços sociais.

Na sessão comemorativa do 25 de Abril, Assembleia da República, o dr. Aguiar-Branco criticou essa figura de intolerância e, sem renunciar às suas convicções (como a seguir se viu), citou Lenine, Rosa Luxemburgo, José Afonso e Sérgio Godinho, mas, também, António Sardinha, corifeu do Integralismo Lusitano. Acontece que, criticando o preconceito, o discurso do dr. Aguiar-Branco criticava a perda de referências culturais que, à Esquerda ou à Direita, goste-se ou não, pertencem ao bragal comum da nossa civilização.

Se compreendo o embaraço das bancadas do PSD e do CDS, tenho dificuldade em entender os risos absurdos do PCP e do Bloco. Ambas as demonstrações conduzem ao mesmo fim. A função simbólica do poder, cuja identificação se revela nas fórmulas paradoxais de eliminar autores ou de os integrar, consoante a "família" política ou estética a que pertencem, divide um património que é de todos. Esse preconceito conduz à queima de livros e à perseguição de escritores e filósofos, de que a História está repleta.

Por que razão Aguiar-Branco não pode citar quem quer que queira, sem suscitar o riso tolo ou o espanto ignaro? Os resquícios de um passado tenebroso emergiram nos comportamentos dos deputados. Sou do tempo em que a Censura suprimia dos textos de jornais e revistas os nomes de Karl Marx, de Engels, de Lenine, de Estaline, e que, nas faculdades, o marxismo era praticamente ignorado. Obrigava-se os portugueses a renunciar ao pensamento, ao cultivo da razão, à adopção do desconhecimento como condição e prática. Servíamo-nos de truques grotescos: Karl Marx era Carlos Marques; Lenine, Vladimir Ilitch.

As proibições, as omissões e as rasuras fazem, infelizmente, parte de uma concepção despótica do mundo, longe de estar extinta. Mas a luta dos valores humanos e culturais é a charneira paradigmática da aventura da liberdade, e prova que, amiúde, aqueles aparentemente "progressistas" são, na realidade, os mais reaccionários.

A TEMPO: Na mesma sessão, o dr. Cavaco proferiu um discurso banal pela ausência de novidade, e medíocre porque é mesmo assim. Quanto ao verdete que ele tem ao cravo vermelho, e ao que o cravo vermelho representa, a crítica ao preconceito, formulada pelo dr. Aguiar-Branco, aplica-se-lhe, por inteiro.
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«DN» de 28 Abr 10

terça-feira, 27 de abril de 2010

Passatempo Calimero de 27 Abr 10 - Solução





Lisboa, Praça D. Pedro IV (Rossio)
27 Abr 10 - 11h

Visitas

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Por João Paulo Guerra

ESTA FOI
a quinta vez que o chefe de Estado visitou o 25 de Abril e ali depositou um discurso.

Antes desta, o chefe de Estado tinha visitado o 25 de Abril quatro vezes. Na primeira, em 2006, o chefe de Estado preocupou-se com a exclusão e apelou à inclusão social. Na segunda, em 2007, preocupou-se com a qualidade da democracia. Na terceira, em 2008, preocupou-se com a venda de ilusões na política e com a ignorância dos jovens. Na quarta, em 2009, preocupou-se com o alheamento dos jovens relativamente à vida cívica e política do país. Na quinta, em 2010, preocupou-se com os casos de riqueza imerecida.

E com tão amplo e condoído leque de preocupações é bem possível que o chefe de Estado visite o 25 de Abril por mais cinco vezes, de 2011 a 2015, pois motivos de preocupação não faltam a este País. Só um irremediável distraído como o chefe de Estado da República Checa não dá pelas preocupações dos portugueses em geral e do chefe de Estado português em particular. E havendo tanto motivo de preocupação, será irrecusável o apelo interior que o chefe de Estado vai sentir para que continue a preocupar-se. E assim, depois da quinta teremos, para o ano que vem, a sexta visita do chefe de Estado ao 25 de Abril e assim sucessivamente, carregando a cruz de um povo feliz por ter quem se preocupe com ele ou mesmo por ele.

A continuar este fadário, em 2011, na sexta visita ao 25 de Abril, o chefe de Estado estará, quiçá, preocupado com a crise política e com os preceitos e preconceitos constitucionais que não lhe permitem mudar de governo como quem muda de gravata. Em 25 de Abril de 2011 faltarão ao chefe de Estado quatro meses e tanto para poder exercer a plenitude dos seus poderes. O que não deixará de ser um motivo de preocupação. A menos que não seja assim.
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«DE» de 27 Abr 10

segunda-feira, 26 de abril de 2010

País a 26

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Por João Paulo Guerra

«MARCELLO CAETANO rendeu-se no Quartel do Carmo e seguiu para a Madeira», Diário de Notícias.

«Marcello Caeteno e alguns ministros exilados nas ilhas adjacentes», O Século.

«Clima de apoteose: a população oferece flores aos soldados», Diário de Lisboa.

«Este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura», República.

«Total liberdade sindical, pede-se num documento de 15 sindicatos», República.

«Três mortos e muitos feridos à passagem de populares pela sede da DGS», Diário de Notícias.

«Libertos os presos detida a DGS/PIDE», Diário de Lisboa.

«A Assembleia Nacional teve uma curtíssima sessão dramática. Houve duas chamadas a que responderam 39 deputados e o presidente encerrou a sessão 15 minutos após a abertura», O Século.

«A Assembleia Nacional descobriu que não tinha quórum», República.

«Firmeza do escudo. Os acontecimentos de Portugal em nada alteraram a cotação do escudo no mercado londrino. O escudo firmou-se mesmo ligeiramente em relação ao dólar e à libra», O Século.

«A Santa Sé está a seguir atentamente os acontecimentos, desejando que a actual crise possa resolver-se por si própria», Diário de Lisboa.

«Expectativa em Luanda. Preocupação em Moçambique», O Século.

«Na África do Sul, o primeiro-ministro disse que os acontecimentos em Portugal podem ter consequências tremendas para o seu país», O Século.

«A NATO segue atentamente a evolução dos acontecimentos», Diário de Notícias.

«O porta-voz do Departamento de Estado disse que os acontecimentos, ao que se sabe, não causaram qualquer dano a cidadãos e instalações americanas, designadamente as da base das Lajes», Diário de Lisboa.

«Morreu o poeta Pedro Oom, fulminado por um ataque cardíaco. Não resistiu à emoção da hora. Tinha 47 anos, menos um que o regime», República.

«DE» de 26 Abr 10

domingo, 25 de abril de 2010

Depois do adeus

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Por Helena Matos

VAI VIR NOVAMENTE a fanfarra, mais os cravos e a liberdade. Sem esquecer a República e o seu farto busto que, por um extraordinário processo de reviravolta histórica, se pretende apresentar como uma antecipação do 25 de Abril. E depois? Depois nada, que a vida está difícil e nós não sabemos como vamos pagar dívidas que não contraímos. Não era de facto isto que estávamos à espera quando nos prometeram a democracia. Na verdade esperava-se muito mais.

Ao ver as imagens de Portugal em 1974 o mais espantoso é o ar sorridente e esperançado das pessoas. Hoje, rir assim só no futebol, com a desvantagem estética para este último, que a parafernália dos bonés e dos cachecóis, ao contrário do que sucedia com os cravos e as fardas, dá um ar vagamente apalhaçado a quem celebra.

Em Abril de 1974 aos portugueses foi prometido um país mais livre, mais justo, mais rico e mais respeitado. Somos hoje um país certamente mais livre do que éramos até Abril de 1974, mas certamente menos livre do que fomos anos depois.

A desmesura do Estado gerou uma multidão de avençados que se instalou em lugarzinhos de nomeação a partir dos quais se metastizam num universo de jeitos, favores e conhecimentos. Esta gente é hoje o maior obstáculo ao desenvolvimento do país não só porque produz pouco, mas sobretudo porque tem o seu seguro de vida na manutenção desse pântano político-empresarial de dinheiros públicos e interesse privados, tão privados que não são sequer confessáveis.

À parte a liberdade – e essa convém frisar que nos foi garantida pelas Forças Armadas que tão pouco dignificadas têm sido pela democracia – falhou-se em muito daquilo que dependia da competência da classe política. Os pobres são certamente menos pobres hoje do que eram em 1974, mas o sonho de conseguir subir na vida esse perdeu-se no enredo da burocracia, da carga fiscal asfixiante e da loucura dos licenciamentos e dos certificados.

Na justiça, pior seria difícil: seja por causa das leis, seja por causa de quem as aplica, seja pelo que for, Portugal vive uma crise gravíssima, pois gravíssimo é quando um povo descrê da justiça e não se reconhece nas leis que tem. O legislador sonhou-se e sonha-se nos tempos em que os iluministas esclarecidos impunham mudanças por decreto ao povo ignorante – veja-se o caso do recente Código de Execução de Penas – e os políticos, com especial relevância para o PS, fizeram o resto quando identificaram as responsabilidades éticas e morais do cidadão e político José Sócrates com a possibilidade de o actual primeiro-ministro poder vir ou não a ser constituído arguido. Esta circunstância é um dos momentos mais graves do pós-25 de Abril não só porque se identificou ética com direito penal, como se acabou a instilar a ideia de que a justiça e a investigação são passíveis de serem controladas por quem detém o poder político.

Por fim falemos do respeito. Quando se lêem os jornais pós Abril de 1974, é evidente a tónica então colocada no facto de Portugal ir deixar de ser uma nação isolada. Finalmente íamos deixar de ser criticados internacionalmente. O mesmo discurso exaltante foi depois repetido quando trocámos a incerta via terceiro-mundista do socialismo à portuguesa pela adesão à então CEE.

Os elogios feitos “lá fora” pelos dirigentes europeus à nossa prestação eram repetidos “cá dentro” por homens como Mário Soares e Cavaco Silva. Agora que o estrangeiro deixou de falar bem de nós, vivemos com embaraço as declarações do Presidente checo, tomamo-nos de brios patrióticos perante as agências de rating e descobrem-se pérfidas intenções nos economistas que nos anunciam a falência. Enfim, o habitual em casa onde não há pão.

Em Abril de 1974 os portugueses riam esperançados diante do mundo e das objectivas dos fotógrafos. Agora fazem-lhes manguitos. A culpa não é certamente da democracia e muito menos do povo. A culpa é de quem se esqueceu que “depois do adeus” à ditadura havia que falar verdade ao povo.
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In Público e Blasfémias

A necessidade da verdade em política

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Por Baptista-Bastos

GRAVES SÁBIOS, severos economistas, rudes prospectivistas do mundo e das coisas advertem-nos que Portugal está à beira do abismo, e que seguirá a Grécia na bancarrota. Tanto o Governo como o dr. Cavaco afirmam que não; o País não está assim tão mau quanto isso. Talvez entenda uns e outros. No entanto, estas opiniões tão díspares, estas afirmações tão opostas quanto o sol e a noite o são, vão-nos deixando cada vez mais inquietos e alarmados.

O português, já de si cabisbaixo e macambúzio, tenta equilibrar-se com o uso, acaso imoderado, de ansiolíticos. São os jornais que o dizem. E as farmácias que o atestam. Cada um de nós vai pagar um montão de euros a fim de não deixar que o velho barco naufrague, avisa a Imprensa. Além daquelas florestias, não sabemos, rigorosamente, o que se passa.

O prof. Medina Carreira, cujas intervenções nas televisões me parecem exemplares lições de cidadania, pese embora o cariz pessimista do seu registo, não pára de nos dizer que os nossos governantes não só ocultam a verdade do cenário, como nos mentem com descaro e pouca vergonha. Até agora, só os estrangeiros vão dizendo coisas que nos aterrorizam. Nem José Sócrates nem Teixeira dos Santos nos falam claro: ao que parece, atenuam, com panos tépidos, a extensão gravosa dos nossos problemas.

Não é assim que se mobiliza a sociedade portuguesa. Confrontado com uma situação que se adivinha complexa e problemática, o português comum vive na incerteza de um conflito social de consequências imprevisíveis. E se, de repente, nos estoirar na cara a bancarrota. Já estivemos numa situação muito próxima, e até há uma história (por mim comprovada com o próprio) que pode ilustrar a época e os protagonistas. Certa madrugada, retiniu o telefone na casa de Mário Soares. O então primeiro-ministro acordou sobressaltado. Era o economista Silva Lopes, governador do Banco de Portugal, a informá-lo de que o País ia entrar em falência, logo pela manhã. Disse-lhe Mário Soares: "Agora vou continuar a dormir e, de manhã, quando acordar mais fresco, logo se verá." As coisas resolveram-se da maneira que se sabe.

Claro que os tempos eram outros e as personagens em questão possuíam uma fibra que, infelizmente, creio ter-se perdido. A verdade é que os portugueses tiveram conhecimento da situação em que Portugal se encontrava, e não se prostraram no desespero. Estávamos informados, e não a vozes dissonantes. A actual comparação com a Grécia é tão absurda quanto o paralelismo estabelecido pelo dr. Cavaco com a Islândia e a Irlanda. Em vez de nos esclarecer acerca de uma conduta alternativa, de nos dizer sobre como havemos de proceder, esta gente continua a sacralizar a política, ilustrando o repugnante axioma segundo o qual "em política e às mulheres nunca se diz a verdade."

Vivemos entre as fórmulas paradoxais que justificam a existência das ideologias, mas que não ajudam, em certos momentos históricos, as urgências imperiosas das nações. Há dias, Pedro Passos Coelho foi recebido por José Sócrates. Não se conhece o conteúdo da agenda das conversações. Sabe-se, porém, que este novo PSD (se assim o posso designar) expôs um projecto económico para melhorar o PEC, o que é um comportamento saudável, a merecer os nossos elogios, desde o momento que constitua, mesmo, uma alteração qualitativa. Miguel Relvas falou em uma volumosa quantia de poupança. Esperemos que o Governo discuta com os dirigentes sociais-democratas, e não se quede nesse autismo característico de quem só se ouve a si mesmo.

Todos nos dizem que a situação é delicada, mas ninguém, até agora, apresentou alternativas de solução que não sejam as habituais: aumentos de impostos, despedimentos na Função Pública, ataque aos serviços sociais, desde a educação à saúde, por aí fora. Os Governos do PS e do PSD são responsáveis, todos eles, pelo estado em que nos encontramos. Talvez mais, o PS, porque detentor do poder há imenso tempo. Mas não creio que a condição fosse melhor, caso o PSD tivesse sido Governo em tempo semelhante.

Pedro Passos Coelho não oculta a vocação neoliberal, cujo simples enunciado faz apavorar qualquer pessoa. Não creio, no entanto, que a época portuguesa seja propícia à sua prática. Como me parece despropositada aquela tineta de alterar a Constituição, ou a outra, mais bizarra embora antiga, de privatizar a RTP e a TAP. Mas a verdade é que a subida de Passos Coelho à presidência do PSD descrispou a política, assinalou a derrota estrondosa das estratégias de Pacheco Pereira, guru da dr.ª Manuela Ferreira Leite, e abalou, seriamente, o que resta do cavaquismo. Nada mau.
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«Jornal de Negócios» de 23 Abr 10

sábado, 24 de abril de 2010

Ele mexe com a inveja

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Por João Duque

PARA QUE CONSTE: não sou amigo de António Mexia nem escrevo este artigo para do mesmo receber quaisquer vantagens ou benefícios da EDP.

Mas o que é facto é que me irrita profundamente ter de confessar publicamente que António Mexia me remete emocionalmente para o lado de 9.999.999 portugueses que discutem a questão da sua remuneração como executivo da EDP. Tudo porque tal como os outros 9.999.999 portugueses sofro do mesmo mal: inveja!

Irra! Mas porque é que não fui eu a receber o convite para liderar uma empresa como a EDP?

Agora olhemos para o racional da questão. Como não sou accionista da EDP apenas me interessa a óptica do Estado.

Se António Mexia não fosse remunerado, os 3,1 milhões de euros seriam mais lucro para a EDP. Isso faria com que a empresa pagasse mais impostos sobre lucros. Fazendo as contas apurei que conseguíamos ir sacar à EDP mais 775 mil euros em IRC. Sobrariam então 2,325 milhões de euros a distribuir pelos accionistas. Como o Estado é apenas detentor de 25% do capital, isso significa que o Estado apenas iria receber um quarto daquele valor. Enfim, nesta óptica, e somando as duas parcelas, o Estado iria arrecadar mais 1,356 milhões de euros...

Agora vejamos o que vai o Estado arrecadar com a remuneração de Mexia por aquele valor. Se, sobre o valor declarado, fossem pagos impostos, tomando as respectivas deduções e contribuições para a Segurança Social, o Estado irá arrecadar 42% em taxa marginal de IRS, ao qual adicionaria as contribuições para o sistema de Segurança Social. Isto é, se todos estes prémios estiverem sujeitos aos dois efeitos, o Estado irá receber aproximadamente 2,278 milhões de euros. E mesmo que muito do rendimento não seja base contributiva para a Segurança Social, o Estado continua a receber mais do que se não houvesse pagamento a António Mexia.

Quer dizer, ao pagar o que parece ser uma exorbitância a um só contribuinte, o Estado arrecada mais receita do que se a empresa não lhe pagar nada, uma vez que os milhões que deixava de pagar a Mexia passariam a ser recebidos pelos accionistas. Não pelo Estado!

E de quem é maior o mérito? De António Mexia que dirigiu a empresa ou de um accionista que, por fadado berço, herdou uma fortuna e detém apenas 1% do capital da empresa? É que se assim for este receberá muito mais que Mexia... Além de que, sendo Mexia português e muitos dos accionistas estrangeiros, pagar a Mexia é manter o rendimento em Portugal, ao passo que, remunerar accionistas estrangeiros, contrai-se o rendimento nacional.

Mexia, mexe connosco. Sente-se que o seu rendimento é quase um euromilhões. Mas se fosse assim, mesmo com inveja ninguém lhe 'tocava'. É o cheiro da 'mão invisível' do poder que dá nisto.

E se eu fosse até ao Largo do Rato fazer a inscrição? Agora que a Cimpor parece acimentada, fica vaga a presidência do banco de investimento da CGD em Angola...
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«Expresso» de 17 Abr 10

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

PORTUGAL ESCAPOU à nuvem de cinza vulcânica islandesa, mas viu as nuvens negras da desconfiança internacional adensarem-se perigosamente sobre o endividamento da economia do país. Foi uma semana de cortar a respiração. Que começou com o Presidente checo, Vaclav Klaus, a dizer na cara de Cavaco Silva que se sentia «muito surpreendido por Portugal não estar nervoso com o seu défice». E continuou com economistas como Joseph Stiglitz a afirmar que «não se pode excluir a hipótese de falência em países na situação de Portugal», ou como Simon Johnson a considerar que «Portugal e Grécia estão, em termos económicos, na vertigem da bancarrota e ambos parecem mais arriscados do que a Argentina em 2001».

Ao muito que esta semana se escreveu e agoirou sobre Portugal, respondeu o ministro Teixeira dos Santos que eram «disparates sem fundamentação sólida, reveladores de ignorância». Secundado pelo impenitente ministro Silva Pereira, ao insistir na necessidade de «grandes projectos de investimento», como o TGV, que viu já aprovada a primeira das linhas, de ligação a Madrid. O que permite comentários como o de Simon Johnson: «Temo que o Governo português esteja em estado de negação».

Já o novo PSD de Passos Coelho, no momento em que se tornou convicção generalizada a obrigatoriedade, ainda em 2010, de medidas adicionais de contenção, surgiu a contestar o aumento da carga fiscal incluído no PEC. E a propor um conjunto de medidas avulsas (que vão da poupança no Estado em licenças de software, à sempre falada centralização na compra de bens e serviços ou à redução de gastos em comunicações), com as quais promete – certamente por um golpe de magia – reduzir a despesa pública em «1.600 milhões de euros anuais». Sem esquecer que, com um estalar de dedos, também se podem poupar num ano «3.500 milhões de euros» de desperdícios na área da Saúde. O amadorismo político e a superficialidade apressada deste ‘Plano B’ do PSD fazem pensar que o B é o equivalente de Banalidades. Ou de Bagatelas.

Entretanto, as taxas de juro dos financiamentos a Portugal continuam a subir nos mercados internacionais e o relatório do FMI coloca Portugal logo a seguir à Grécia quanto ao risco de instabilidade financeira. Parecem, pois, ser múltiplas as razões para estarmos nervosos. Como diria Vaclav Klaus.
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«SOL» de 23 Abr 10

Experimente o seu milagre na Terra Santa

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Por Antunes Ferreira

NÃO TENHAMOS dúvidas, homens de pouca fé; é assim mesmo, sem tirar nem pôr. Enquanto há vida, há esperança, isto porque esta é sempre a última a morrer. Aforismos com carradas de razão – eles têm-na sempre. Mas, quem são eles? Passo a explicar, para depois tirar as conclusões que aliás são evidentes. E a sugerir ao Ministro das Finanças que atente nesta excepcional proposta.

A caixa do correio é imprescindível mas é muito perigosa. Nesta semana que passou, ela acolheu uma coisa impressa cujo título é Folha de Portugal. Tratamento privilegiado tem, já que a Dica e outros órgãos de comunicação e impressos, são colocados obrigatoriamente em cima da secretária do Sr. Eduardo Sequeira, o porteiro do prédio, que fiscaliza absoluta e cuidadosamente esse procedimento. Aqui para nós, o Sr. Sequeira é um gajo porreiro.

Esta folha é, portanto, uma excepção, para ser mais correcto a excepção. Talvez porque no título ostente na orelha direita um «sempre ao seu lado», que conforta e informa o pessoal que não há que ter incerteza, qualquer ela que surja ou mesmo que seja. Lembrou-me o «sempre, sempre ao lado do Povo», mas este era do MFA que, não sei se sabem ou se recordam era o Movimento das Forças Armadas que fez o 25 de Abril.

Nada disso, lagarto, lagarto, lagarto, t’arrenego Satanás. Esta folha semanal, com a tiragem de 50.000 exemplares de distribuição gratuita é da IURD, a Igreja Universal do Reino de Deus, com sede ali na Alameda D. Afonso Henriques, no prédio que foi o falecido cinema Império. Comandada pelo Bp, que não é a gasolineira, mas sim Bispo pastor Edir Macedo.

Nas 20 páginas que possui, o semanário – que também tem um suplemento com mais oito, o caderno Folha Centro de Ajuda Espiritual, CdeAE – podem ler-se as 39 situações em que não é cobrado nada. Grátis. Mas, lá está igualmente que «Só ensina às pessoas a VERDADE. O dízimo, como também as ofertas, são mandamentos bíblicos». Ali não se engana ninguém. Nova recordação me assalta a mente ímpia. Os da banha-de-cobra também não.

E, para que não subsistam interrogações, traz uma entrevista com Cláudia Nunes, que vive em Oliveira do Hospital, e era possuidora de vários quistos de grandes dimensões. Apesar do «intenso tratamento» (os termos vêm lá), «…as dores eram cada vez maiores» e só havia uma solução de acordo com a médica dela: «retirar o ovário».

Mas, felizmente, ela foi ao CdeAE onde «clamou a Deus para acontecer um milagre». Até entrou na «Fogueira Santa» e deu «tudo o que Deus me tinha pedido. Sacrifiquei com a certeza de que ia obter o milagre que precisava, assim coloquei no Altar todo o dinheiro que tinha juntado durante três anos». Resultado: os quistos desapareceram todos, facto comprovado pela sua médica.

Um outro depoimento, desta feita da Emília, hoje empresária com a ajuda do CdeAE. Era costureira, ganhava uma miséria «até que, um dia, o pastor estava a pregar e perguntou quem é que tinha coragem de dar o seu tudo para que a situação se resolvesse». Tinha vindo do armazém, onde recebera a féria «e mesmo tendo as contas para pagar (…) decidi dar o meu tudo». E como pedira para ser empresária, hoje é. Entregando de novo o seu tudo.

Face a isto, não admira que o anúncio de uma página afirme expressamente e em letras gordas EXPERIMENTE O SEU MILAGRE NA TERRA SANTA, a partir de 1.600 euros.

O ministro Teixeira dos Santos deveria inscrever-se já e ir e experimentar o seu milagre, numa excursão que decorrerá entre 13 e 20 de Agosto. Talvez um pouco tardia para encontrar o milagre de pôr em ordem as finanças e a economia do País. Mas, mais vale tarde do que nunca. FMI, comentadores, opinion makers, especialistas e outros render-se-ão. O CdeAE não falha; é tiro e queda.
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NOTA (CMR): Cartoon publicado com autorização do autor - http://karikamania.no.sapo.pt

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Brincar às guerras com os filhos dos outros

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Por Helena Matos

"Se o Governo quer guerra, é guerra que vai ter” – Mário Nogueira, Abril 2010.
“Se o que esta equipa ministerial quer é guerra, é guerra que vai ter.” – Mário Nogueira, Abril 2010.
“Se o Ministério da Educação quiser guerra, vai ter guerra.” – Mário Nogueira, Dezembro 2008.


MÁRIO NOGUEIRA, secretário-geral da FENPROF, deve ser o único português que anuncia guerras. Aliás passa a vida a fazê-lo. Cada equipa que chega ao Ministério da Educação é visitada pelo triunfante secretário-geral da FENPROF. Após esse primeiro encontro, sindicalistas e comentadores especulam sobre se o ministério quer a paz ou vai conseguir a paz com os sindicatos. Invariavelmente esta espécie de armistício esfuma-se ao fim dumas semanas e eis que começam os anúncios de guerra por parte de Mário Nogueira. “Se o ministério quer guerra vai ter guerra”, “se a ministra” – e cada vez mais na 5 de Outubro só existirão ministras pois os homens não estão para se sacrificar em tão funesta batalha! – “quer guerra vai ter guerra”…
Enfim, qualquer companhia de comandos é um exemplo de serenidade ao pé da FENPROF, coisa que não admira porque as guerras da FENPROF são bem diversas das guerras reais.


Em primeiro lugar há que ter em conta que esta é uma guerra travada entre funcionários que não são prejudicados por esse estado de beligerância: segundo números governamentais de 2006, existiam 1830 funcionários do Estado destacados em trabalho sindical, dos quais a esmagadora maioria afecta aos sindicatos da Educação e, em segundo lugar, da Saúde. Depois, e ao contrário do que acontece com as equipas ministeriais, ser sindicalista é uma opção para largos anos, donde o à vontade dos dirigentes sindicais ser evidente perante os sempre novatos e cada vez mais combustíveis ministros. Por fim, estas guerras travadas pelos funcionários destacados nos sindicatos com os funcionários destacados na 5 de Outubro pautam-se por ser isso mesmo: guerra entre funcionários com os danos colaterais a sobrarem sempre para os mesmos, ou seja os alunos.

Há muito que os alunos deixaram de ser o objecto e a razão de ser do Ministério da Educação. O que entretém, ocupa e absorve os funcionários da 5 de Outubro é a tentativa de gerir e controlar os funcionários-professores nos intervalos que lhes sobram dos períodos de guerra com os funcionários-sindicalistas.
Como tudo isto é muito caro, muito penoso e frequentemente palco de cenas pouco edificantes, seria um passo muito acertado que os nossos filhos fossem desmobilizados, ou seja que o Estado permitisse às famílias escolherem as escolas públicas ou privadas que quisessem, instituindo o cheque-ensino, permitindo deduções fiscais do valor das mensalidades, acabando com o critério da morada, etc… Até lá vão estar mobilizados para servirem de carne para canhão na próxima guerra entre Mário Nogueira e a 5 de Outubro.
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In Público e Blasfémias

País a 24

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Por João Paulo Guerra

“Sobre aumento de Correios e Telefones não se pode falar em “público reage”, o que dá a ideia de barulho, de contestação agressiva. "Desgostoso" é o "termo que satisfaz nestas coisas de novos preços".

"Exames de condução. Suborno dos examinadores. CORTAR". Dr. Ornelas.

"Comunicado da Ordem dos Médicos contra as contribuições - título fica só assim: "Ordem dos Médicos". No texto dizer apenas que foram enviados telegramas a membros do governo e não dizer o que eles dizem".

"Aumento do preço das viaturas automóveis de aluguer. A notícia pode dar-se. Mas é PROIBIDO enumerar os preços concretamente".

"Escalada de preços do vinho do Porto - PROIBIDA a expressão "escalada"". Coronel Saraiva.

"Assalto ao banco. Cortado o nome do banco".

"Anúncio: professoras de liceu de Lisboa querem emprego, com 14.º mês e bom ambiente. Cortar".

"Caixeiros de Lisboa: semana-inglesa. PROIBIDO". Coronel Roma Torres.

"DEMORADO o relatório da Companhia de São Pedro da Cova. Fizeram asneira em mandá-lo, porque não há ordem para mandar os relatórios". Capitão Correia de Barros. "

O relatório da Companhia de Carvões e Cimentos do Cabo Mondego, relativo a 1972 - TOTALMENTE CORTADO". Coronel Roma Torres.

"Situação na Sorefame. Não sei bem o que isto é: PROIBIDO".

"Não há aquecimento nas escolas por falta de combustível. O pormenor "na região da Guarda, onde neva" é CORTADO". Tenente Teixeira.

"Encerrado o Instituto de Económicas. PROIBIDO". Dr. Ornelas.

"Abaixo-assinado de economistas americanos em apoio do Prof. Pereira de Moura - PROBIDO". Coronel Saraiva.

"Refinaria do Norte recebe petróleo do Irão - CORTAR". Capitão Correia de Barros.

"Adis-Abeba estuda embargo de petróleo a Portugal. Não referir "a Portugal"". Coronel Saraiva.

(In "Segredos da Censura", César Príncipe, editorial Caminho)
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«DE» de 23 Abr 10

Passatempo Calimero de 23 Abr 10 - Solução

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Portugal vai falir

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Por João Duque

Antigamente eram as famílias que oscilavam em património e desabavam riquezas acumuladas em décadas à custa de infortúnio ou incúria repetida. Com o desenvolvimento das empresas passámos a associar a falência à sua morte.

NOS ANOS 70 e 80, com o desenvolvimento do crédito pessoal começaram a falar em falência pessoal o que para mim era estranho até ter encontrado um sujeito que me confessava alegremente estar falido. Achei estranha a felicidade dele quando falava no facto de não ter, nem poder vir a ter em sua posse, qualquer património, mas depressa percebi que as dívidas tinham sido activadas lentamente enquanto os activos tinham lestamente voado para a posse da filha...

Recentemente todos começaram a falar na falência dos Estados e, infeliz e preocupantemente, na possibilidade de falência de Portugal.

A falência de uma empresa ocorre quando em função de uma situação presente em que o Activo é inferior ao Passivo (falência técnica), se percebe que a situação é irrecuperável em face à actividade, custos e perspectivas de negócio futuro. Ao perceber-se a irrecuperabilidade da empresa, abre-se falência, tentam liquidar-se o maior volume de activos para pagar passivos e assim sair o mais honradamente do processo, normalmente traumático.

A expressão de falência de Estados está associada à impossibilidade de fazer face ao serviço da dívida. Mas se aplicarmos a visão acima definida para as empresas aos Estados e em particular a Portugal é então possível tentar responder à grande questão: Portugal vai falir? É possível, se...

Aplicando a Portugal, a falência sucede se, valorizando actualmente os activos e verificando que são de valor inferior aos passivos, não conseguimos descortinar qualquer viabilidade para este naco de gente aqui plantado nesta eira de terra.

Olhando para o saldo líquido sobre o exterior (diferença entre os activos e os passivos que os portugueses na globalidade detêm sobre o exterior) verificamos que o saldo é-nos muito desfavorável. De uma posição activa de aproximadamente 35% do PIB em 1974 passámos a esta situação confrangedora de mais de 110% do PIB de posição passiva em Dezembro de 2009.

Isto é, se apenas isto valesse na contabilidade de falências nacionais, o saldo entre o que temos e o que devemos quando comparado com o exterior era quase meia sentença de morte, quer dizer, falência.

Mas não é. Por enquanto os activos nacionais são bem mais valiosos do que os passivos, embora as expectativas de crescimento e dinâmica futura não seja nada animadora.

Mas o que há realmente, de momento, é uma crise de curto prazo a que se juntam os que querem aproveitar e que se nada fizermos para mudar de vida acabaremos por transformá-la numa desolante morte, que a ser feita pelo mercado nem lenta será.

Sim, Portugal vai falir, se nos deixarmos falir. E comigo não contem para esse número. Nem que para isso o país tenha de virar o rumo a quem nos governa.
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«DE» de 22 Abr 10

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Português Técnico

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Por Helena Matos

NUM TEMPO muito antigo as frases tinham sujeito, predicado e complemento directo. A presente realidade portuguesa criou-nos uma outra forma de falar em que umas pessoas alegadamente praticam umas acções que jamais se provam, sendo que essas acções, sem responsáveis nem beneficiários identificáveis, acabam invariavelmente a prejudicar o país em milhões de euros. Ou seja, na vida de todos nós diz-se que o João comeu o bolo, a Maria comprou um carro etc. Na vida pública e política, e quando os euros se começam a contar por milhões, as frases não só deixam de ter esta ordem como se aboliu a voz passiva. Assim, se é válido concluir que se a Maria come o bolo, logo o bolo foi comido pela Maria, jamais se pode dizer que sendo A acusado de corromper B, B teria de ser corrompido por A.

Igualmente na vida política se aboliu o complemento indirecto. Na nossa vida é claro que quem dá ou paga, dá ou paga uma coisa a alguém. Assim, as criancinhas aprendem que o Luís pagou o livro ao Miguel. Mas se em vez do Miguel e do Luís se tratar de dinheiros públicos, pagando campanhas partidárias, campos de golfe ou pareceres em vez de livros, quem paga nunca assume que pagou e quem recebe raramente é identificável.

Assim, sem passiva nem complemento indirecto chegamos ao desaparecimento do determinativo. Por outras palavras toda a gente diz que cumpre ordens mas nunca se percebe de quem.
A transposição da nossa perversão moral para a forma como nos exprimimos levou ainda a que o complemento circunstancial de lugar se tenha tornado num caso de polícia: actas de contratos desaparecem de edifícios públicos sem que alguém perceba como. Ou seja uma empresa ou um pobre condomínio tem de ter um livro de actas. Mas as actas dos grandes negócios do Estado, como compras de material militar, ou até as decisões do Conselho de Estado sobre a descolonização essas desapareceram e desaparecem de edifícios oficialmente seguríssimos e vigiadíssimos sem que ninguém explique como foi possível.

Neste ficar sem palavras nem sintaxe se encerra grande parte do nosso presente drama: o que acontecerá se nomearmos aquilo que nos rodeia? Sem palavras nem frases sempre vamos sobrevivendo. A bem da situação.
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In Público e Blasfémias

Arrisca

Por João Paulo Guerra

Não há nada que os interesses e o poder do dinheiro não consigam.

E É ASSIM que os ministros dos Transportes da União Europeia decidiram aliviar as restrições aos voos na Europa, apesar de nenhum especialista conseguir declarar que a erupção do vulcão de nome impronunciável acabou e quando a nuvem de cinzas vulcânicas atinge novos espaços aéreos, designadamente o português. Fosse uma questão de liberdade ou de direitos e os voos ficavam cancelados ad eternum. Mas trata-se de lucros e dividendos e perante tal situação, de uma penada, "normaliza-se" o espaço aéreo, isto é, retoma-se a circulação e a nuvem vulcânica que se remeta à sua insignificância, pois valores mais altos se levantam.

Faz-me lembrar uma história deliciosa que me contou o músico e meu especial amigo José Barros. Aqui há uns anos, num voo interno no arquipélago de Cabo Verde, durante uma digressão, foi excedido o peso de passageiros e carga permitido pela capacidade do pequeno avião. Quem sai, quem não si? Quem espera e quem não espera pelo próximo voo? Ninguém queria sair. Encetaram-se negociações mas o impasse manteve-se. Até que o comandante tomou uma decisão, comunicada aos passageiros pela hospedeira - que, essa sim, já estava decidido que ficaria em terra. "O avião vai seguir viagem com toda a gente. O comandante arrisca".

E é assim. Os ministros dos Transportes arriscam, porque as companhias aéreas, apesar de terem começado a cortar nos direitos mais elementares dos passageiros retidos, queixavam-se de prejuízos de milhões que, aliás, a UE já estuda a modalidade de compensar. O Conselho de Ministros dos Transportes arrisca. E consumando-se algum dos riscos que levaram ao encerramento dos espaços aéreos, pode sempre invocar-se "falha humana".
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«DE» de 21 Abr 10

O enxovalho de Praga

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Por Baptista-Bastos

A IMPRENSA, as rádios e as televisões andam cada vez mais preocupadas com o folclore dos dias do que com a real importância dos factos. Cansaram-nos com os relatos do humor (santo Deus!) do dr. Cavaco; com a espórtula do distinto casal aos músicos de rua na ponte Carlos; com as jovialidades dos transbordos de automóveis, o percurso dos autocarros, os "kits" com comida para as personagens consideráveis. No que se refere ao enxovalho, à injúria, à humilhação com que o Presidente da República Checa, por duas vezes, mimoseou o seu convidado, e o que o seu convidado representava, a Imprensa, as rádios e as televisões limitaram-se a bocejos laterais. E o dr. Cavaco perdeu a memorável ocasião de provar ser "o Presidente de todos os portugueses."

Vaclav Klaus, Presidente da República Checa, e antigo e experimentado governante, excedeu, em grosseria, tudo o que se presume dever ser a compostura canónica de um estadista, e, com surpreendente rudeza, inquiriu se os portugueses não se sentiam nervosos com o défice de 8 por cento, facto que, com ele, jamais sucederia.

Sorridente, disperso e confuso, o dr. Cavaco murmurou não ser governante, admissão entendida por Vaclav como fraqueza ou pusilanimidade, pelo que voltou à carga, noutra cerimónia de Estado. Nem um escasso protesto, nem a mais diminuta desaprovação, nem a mais exígua frase indignada. Mais tarde, o extraordinário dr. Cavaco, contemporizador e tranquilo, resignava-se à ignomínia (porque de ignomínia se tratou) esclarecendo que o Presidente checo era, por natureza, "pouco ortodoxo." O dr. Cavaco admitia a incivilidade e a infinita grosseria do checo; porém, graciosamente, engoliu o insulto (além de outros, reiterados como um ressentimento absurdo) e confinou-se à vergonha do silêncio comprometido.

Que levou o Presidente português a este comportamento tão pesaroso quanto desacreditante? Não se encontra explicação nem redenção para um acto que o envolve pessoalmente, infama a instituição que encarna e o país que representa. Dir-se-á: quis evitar um incidente diplomático. Nessa perspectiva, a ausência de reacção teria de ser entendida como exorbitante prudência, pois a gravidade das declarações de Vaclav Klaus não devia passar sem adequada e consistente resposta, tanto mais que a responsabilidade do incidente cabia, por inteiro, ao checo. O sorridente mutismo do dr. Cavaco saltou da conveniência momentânea para a conivência sem remissão.

A viagem a Praga é a arrepiante expressão de um novo género de actuação política e a cartografia de um jornalismo feito de frivolidades, desprovido do magnífico empenho de desvendar o outro lado das coisas.

«DN» de 21 Abr 10

terça-feira, 20 de abril de 2010

A Lei da Escola Segundo o Eduquês

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Por Guilherme Valente

1. Contra o silêncio e a indiferença, é preciso dizer que as duas mortes agora acontecidas são extremos dramáticos, picos na violência que cresce em muitas das escolas públicas. Mas nem estes casos extremos obrigaram o eduquês a mudar o discurso:

No caso do docente de Sintra, a DREL terá colocado psicólogos na turma em causa «com medo de que haja um sentimento de culpa». E não deveria haver? Não é esse o único sentimento aceitável, o mínimo que na circunstância se deve esperar? Não deve esse sentimento ser mesmo suscitado em todos aqueles jovens e nos responsáveis da escola e do ministério? Ou a escola deixou de ser, de repente, a tão badalada «comunidade educativa»?

«Trata-se de jovens que são na sua generalidade bons alunos e que não podem transportar na sua vida uma situação de culpa que os pode vir a condicionar pela negativa», disseram.

Nem mesmo a morte obriga o eduquês a pôr a mão na consciência. Ou será que estas mortes devem ser atribuídas à natureza?

2. Também Daniel Sampaio (DS), escreveu o inimaginável sobre o assunto (Pública do dia 14 de Março).

Apesar de conhecermos as suas ideias, lemos com perplexidade o que seguramente terá indignado a generalidade dos pais que diariamente são obrigados a deixar os filhos nas escolas públicas e dos professores que nelas resistem ao intolerável.

«Querer uma escola controlada pela polícia [quem é que alguma vez defendeu isso?] em que ninguém possa desobedecer ou contestar as regras, é acabar de vez [pasme-se!] com esse território de liberdade segura que caracteriza o nosso sistema educativo (…)». (Sublinhados meus).

Mas vale a pena continuar a citar DS:

«É que há em todas as escolas comportamentos que podem ser considerados violentos, mas que não são bullying [cabe ao especialista, portanto, dizer se é dor a dor que deveras sinto – meu Deus!]: a escola reproduz a sociedade [a escola do eduquês sim, até agrava mesmo o pior da sociedade; a boa escola que queremos, pelo contrário, enfrentaria o que na sociedade não é desejável] e esta não é serena [serena?], por isso são frequentes as piadas, as troças e até um insulto passageiro ou um empurrão, sem que isso seja muito grave.»

Passaria por humor, não fosse experiência de medo de tantos jovens, a preocupação de tantos pais, o receio de tantos professores, relatados todos os dias pela comunicação social. Gostaria de saber em que escola estudaram os filhos de DS.

A mansa palavra de (omitir?) clínica não consegue esconder o gelado alheamento da realidade. E, a seguir, DS prescreve a receita fácil para o caos… que também ele próprio, porventura sem se aperceber, tem ajudado a instalar.

Eu sei que o psicólogo é DS, mas desta vez sou eu a fazer o diagnóstico: continuamos perante uma estranha dificuldade do homem inteligente que é em ver a realidade. Quanto à cura, sinceramente, gostaria de não perder a esperança de boas notícias.

4. Estes textos chocantes, nas circunstâncias quase pornográficos, são, como tantos outros do mesmo teor, exemplos reveladores: o eduquês gosta da indisciplina, e, assim, vai encorajando a sua manifestação.

E assim vão fazendo o seu tricot teórico os mais ou menos discretos companheiros de jornada do eduquês, ajudando, voluntária ou ingenuamente, a impor a escola má que todos os dias atira para a ignorância, a desqualificação, o abandono e a exclusão gerações e gerações de crianças dos estratos sociais mais desfavorecidos, agravando assustadoramente as desigualdades, privando-as do ascensor cultural e social único que um bom ensino público - condição da sociedade civil - seria para elas.

Quem disse ser preciso muito tempo para se verificar o resultado do que se faz na educação?

Acolhidas e cultivadas na escola do eduquês, a ignorância e a violência explodem na sociedade. Mas não era isso o que o eduquês pretendia?
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In Público e De Rerum Natura

Lagos

Prejuízos

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Por João Paulo Guerra

Volta e meia, com uma regularidade de relógio, uma frequência de metrónomo e uma pertinácia de santo, chegam com espalhafato à opinião pública os imensos “prejuízos” da saúde e dos hospitais.

NÃO ME RECORDO de ler notícias sobre os prejuízos das polícias, do sistema prisional, da tropa, da representação política, do funcionamento e protocolo do Estado. Mas a saúde, a propósito ou a despropósito, lá vem de vez em quando com os seus milhões de "prejuízo" à mostra. É assim como os "prejuízos" da reinserção social ou do fundo do desemprego. Não sei se é para criar remorsos aos doentes de tanto pesarem no Orçamento e, por conseguinte, no bolso dos contribuintes se é alguma novidade em matéria de tratamento de choque para redimir os doentes através da assumpção das suas culpas no cartório do défice.

Ou então se tudo isto não é mais que uma espécie de champô para lavar os cérebros dos cidadãos de maneira a que se convençam da premência de substituir a saúde pública pela privada, livrando o Orçamento de umas pesada canga e o país de um défice crónico. Porque uma coisa é certa: no dia em que fosse privatizada, a saúde tornava-se uma actividade proveitosa e os hospitais tiravam de imediato vantagens do tratamento dos doentes.

As fontes de todas estas notícias são variadíssimas: vão de inesperados estudos, passam por inopinadas declarações de responsáveis ou especialistas e culminam em imprevistas revelações de dados por parte das próprias entidades da saúde pública. Já não são tão transparentes os critérios da actualidade e oportunidade de tais notícias. Aparecem como que caídas do Céu. Ou largadas de pára-quedas pelo planeamento de uma ou outra agência de comunicação. E aparecem porquê? Porque o cliente tem sempre razão.
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«DE» de 20 Abr 10

O melhor professor da América

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O actor Olmos representou Escalante no filme Stand and Deliver
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Por Nuno Crato

CHAMAVA-SE JAIME ESCALANTE e o seu falecimento foi assinalado em todos os Estados Unidos com notícias de primeira página. O presidente Obama disse que disse que «ao longo da sua carreira, Jaime abriu as portas do sucesso e da continuação dos estudos aos seus estudantes, um a um, e provou que de onde se vem não tem de determinar até onde se vai.» É uma declaração que deveria ser repensada sempre que se ouve que não se deve exigir mais dos estudantes, com o argumento de que isso prejudicaria os que provêm de meios mais desfavorecidos. De onde se vem não tem de limitar até onde se vai.

Jaime Escalante foi um professor de matemática que se tornou muito conhecido nos Estados Unidos. Escreveram-se livros sobre o seu trabalho e chamaram-lhe «o melhor professor da América». A sua história foi contada num filme de grande sucesso, «Stand and Deliver», onde a sua figura foi representada pelo actor Edward James Olmos. O filme descreve a sua luta para conseguir que estudantes vindos de um bairro problemático conseguissem aprender matemática pré-universitária e assim prosseguirem os estudos. Era o chamado «Advanced Placement» (AP), um programa de estudos mais exigentes que os estritamente necessários no final do ensino secundário.

Jaime Escalante usava todos os meios para motivar os seus alunos. Conta-se que, por vezes, usava carrinhos de brinquedo para explicar derivadas, que fazia truques de cartas para expor probabilidades e que passava música rock nas aulas para apresentar funções trigonométricas. Mas nunca ficava por aí. O essencial da sua motivação era o trabalho. Dizia e escrevia que «a chave do meu sucesso com estudantes de minorias consiste apenas numa tradição simples e honrada: trabalho duro, tanto do estudante como do professor.»

Incentivava os alunos ao trabalho sem simplificar as matérias. «O cálculo não precisa de ser tornado fácil», escrevia em slogans que pendurava na sala de aula, «o cálculo já é fácil». O necessário é ter vontade de aprender, ter «ganas», como dizia aos seus estudantes de origem latino-americana.

A sua história pessoal é também admirável. Nasceu na Bolívia, filho de professores primários, e deu aulas em La Paz. Na sequência de problemas políticos no seu país, emigrou para a Califórnia, onde serviu à mesa de uma cafetaria enquanto estudava na universidade. Em 1973 licenciou-se em matemática na Universidade do Estado de Califórnia e em 1974 começou a ensinar no liceu Garfield, nos subúrbios de Los Angeles.

Em 1982, a sua turma candidatou-se ao exame avançado (AP). Todos passaram e, em 18 alunos, 7 receberam a nota máxima. Os examinadores suspeitaram de fraude e obrigaram os que quisessem manter as suas notas a fazerem de novo o exame. As notas foram confirmadas. A partir daí, as aulas do professor Escalante passaram a atrair centenas de estudantes. Os alunos vinham mais cedo e tinham lições suplementares aos sábados. O «establishment», claro, opôs-se. Os sindicatos tentaram proibi-lo de fazer «horas extraordinárias» e os teóricos da educação da Califórnia opuseram-se a que tivesse estudantes a mais nas suas aulas.

No dia em que Jaime Escalante faleceu, com 79 anos, a sua escola em Garfield ostentava orgulhosamente uma faixa, com apenas uma palavra escrita: «Ganas».
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 17 Abr 10

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Falar com os Mortos

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Por Maria Filomena Mónica

QUANDO ESTA REVISTA ME TELEFONOU a convidar para escrever sobre uma medium, a minha reacção inicial foi negativa. Para minha surpresa, ainda não tinha desligado o aparelho e já dera comigo a dizer que sim. Apesar de avessa a fenómenos sobrenaturais, tinha curiosidade em observar alguém que supostamente fala com os mortos. Devo confessar que nem sempre fui descrente. Durante a adolescência, passei até por fases místicas. Aos 13 anos, após me ter apaixonado pela vidente Jacinta, sofri uma aparição. De cada vez que entrava na capela do colégio, julgava que Nossa Senhora sorria na minha direcção. Irradiando orgulho, anunciei às minhas amigas ser uma vidente, um segredo que estupidamente partilhei com a Madre Superiora, a qual se mostrou tão zangada comigo quanto os jacobinos, em 1917, com os pastorinhos, quando estes apregoaram ter visto, em cima de uma azinheira, «uma senhora mais branca do que o sol». A freira comunicou o facto à minha mãe, a qual, apesar de dirigente da Acção Católica, me preveniu que, se tal voltasse a suceder, ficaria de castigo. Foi quanto bastou para acabar o devaneio transcendental. Com base na obra de B. Russell, Why I am not a Christian, passei de uma fé infantil para um ateísmo consolidado. Tudo o que não fosse susceptível de ser metido num silogismo era, para mim, uma invenção de mentes subdesenvolvidas.

Antes de começar a busca de um médium, fiz o trabalho de casa, uma tarefa necessária, pois, no meu espírito, tudo - conversas com mortos, hipnotismos, fé no paraíso - andava misturado. Na Era Moderna, a ideia de ser possível falar com mortos surge com Franz Mesmer (1734/1815), o qual inquietou a Europa com as suas exibições. Em meados do século XIX, esta «ciência» era tão popular que, no seu exílio de Jersey, Victor Hugo se convenceu não só que, através de «tables tournantes», ouvira uma filha morta, mas o poeta André Chénier, guilhotinado quarenta anos antes. Actualmente, é fácil rirmo-nos, mas, durante o século XIX, tal foi a quantidade de experiências que surtiram efeito - o telégrafo, a electricidade, o telefone - que os contemporâneos não sabiam em que acreditar.

Médicos consagrados como Charcot (1823/1893) andavam a tentar legitimar a hipnose como cura para a «histeria», uma doença que, por se imaginar ligada ao útero, era vista como essencialmente feminina, tendo conseguido que as suas teses fossem aceites pela Academia Francesa de Ciência. Curiosamente, foi um padre português, o abade de Faria (1746/1819) quem introduziu o método em Paris, mas não foi ele que ficou na História de Portugal, mas Sousa Martins (1843/1897), um professor catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa, ainda hoje venerado por espíritas, como se pode ver pelo elevado número de lápides junto da sua estátua, no Campo dos Mártires da Pátria.

O meu percurso racionalista não favorecia a localização de um médium. Apenas conhecia uma pessoa que, em tempos, utilizara um bruxo, mas, quando a contactei, disse-me que o mesmo já tinha morrido. Lembrei-me de ir ao Google, colocando as palavras apropriadas – médium, vidente, espíritas – mas apenas descobri notícias sobre a próxima visita do Papa a Fátima, um anúncio do astrólogo-médium-vidente «Fofana» (que prometia êxito de casos amorosos ao fim três dias) e um sítio com o título «A tua minhoca é grande?». Não era obviamente aqui que resolveria o problema. Durante alguns dias, consultei os anúncios dos jornais, mas, em vez de bruxas, só encontrei cus, anunciando coisas como «Xupaxupa Nat Atraz Adoro 20p Lida Dou Detalhes». Eis se não quando, em conversa telefónica com a minha irmã Isabel, esta me disse que a amiga, com quem estava a almoçar, tinha uma filha que acreditava em bruxas. Era um começo: que se revelou promissor.

Depois de ter pedido uma sessão privada através de email, e de ter depositado 100 Euros no NIB indicado, tudo se passou rapidamente. Ia ser recebida pela médium inglesa Anne Germain. No dia 22, dirigi-me ao Dafundo. Vítima de mais um desastre, levava algumas compressas na boca. Em vez de ter ido para casa descansar, como o cirurgião dentista me aconselhara, calcorreei uma rua perto do Aquário Vasco da Gama. Cheguei vinte minutos antes, pelo que tive tempo de sobra para elaborar as perguntas que desejava fazer. Consistiam elas em saber o que pensava Eça de Queirós de sua mãe - um assunto que, há mais de cem anos, apaixona os queirozianos - e se alguém me tinha rogado um praga, a única explicação possível para a sequência de maleitas - um estiramento de tendões, a deslocação de uma omoplata, a destruição de três cervicais, o congelamento de um ombro, enxaquecas intoleráveis e a destruição da raiz de um dente - que, desde o Verão, sobre mim se abateu.

A ideia de «falar» com Eça de Queiroz era adequada, uma vez que, em 1892, na companhia do Embaixador português Emídio Navarro, também ele se entregara a joguinhos espíritas. A 17 de Julho, numa carta a Oliveira Martins, contava que tinha feito umas experiências com chapéus, mas que nada resultara. Depois, relatava ter Emídio Navarro aparecido em sua casa, muito impressionado, após uma «previsão do chapéu que surdiu certa». Nessa ocasião, trazia «uma mesa, uma verdadeira mesa de espiritismo, com todas as comodidades para a manifestação dos espíritos». Com o seu ar irónico, Eça acrescentava: «Mas esse móvel teima escandalosamente em permanecer imóvel ou então nada mais faz do que predizer catástrofes para a Nação; e, como para pessimista, basta o Navarro, removemos essa mesa de profecia para a condição subalterna de mesa de chá».

Ao tocar a campainha, notei que estava nervosa: ia sozinha para um encontro com uma bruxa e o dente doía-me cada vez mais. Só ao quarto toque a porta se abriu. O medo desapareceu, quando vi Anne. Não usava um chapéu negro em bico, não envergava saias orientais e não estava maquilhada de roxo. Por outro lado, a sala não ostentava uma mesa de três pés, não havia bolas de cristal a cirandar por ali nem uma panela a fumegar, como na cave da vidente Ulrica, em O Baile de Máscaras, de Verdi. Apenas notei, em cima da mesa, uma garrafa e dois enormes copos de água. Sentámo-nos, sem mais ninguém presente. A não ser, claro, os espíritos.

Sabendo que eu falava inglês, tudo se passou nesta língua. Fiz-lhe as perguntas que tinha preparado, mas Anne advertiu-me para o facto de não poder responder a nenhuma, por nada me ligar a Eça e por ela não lidar com «pragas», rogadas ou não. Depois de eu lhe ter confessado ser a primeira vez que recorria a um médium, explicou-me que tal não constituía problema, pois apenas se limitava a transmitir o que «os espíritos» tivessem para me dizer. Em suma, não precisava de fazer perguntas, o que me convinha pois as compressas quase me impediam de falar.

Fiquei, sentadinha no sofá, a ouvir o que esta mulher, de branco vestida, me comunicava. Não fez trejeitos, não imitou vozes de homens, não recorreu a truques. Depois de umas interrupções, durante as quais supostamente ouvia os tais espíritos, falou-me de pessoas que, se estivessem vivas, teriam uma idade avançada – uma delas poderia ser a minha mãe – de um homem constante – poderia ser o meu pai – das minhas ansiedades – um dos espíritos disse-lhe ser eu uma «worrier» - dos meus netos – que me dariam a paz de que necessito – e do espaço, repleto de livros, que habito. Depois de alguma informação sobre o amor, o reconhecimento e a gratidão que a tal senhora de idade por mim tinha, explicou-me que não me preocupasse, porque a dita me indicaria as respostas que eu andava a buscar nos livros. Foi aí que a interrompi para lhe dizer que não queria que o «espírito» se envolvesse nas minhas investigações, ao que ela me respondeu, com voz doce: «Não, o espírito não a quer dirigir, não há perda de livre arbítrio, fique descansada». Antes de sair, apenas lhe disse que continuava céptica e que ela era inteligente. Após o que, com ar seguro, me deu um CD com a gravação da conversa.

À porta da sala, encontrei a sua agente. Como Lisboa é uma aldeia, contou-me que vivera, durante anos, na minha rua, que conhecia a minha filha e que a sua cunhada era a filha da amiga da minha irmã. Várias hipóteses me ocorreram para o facto de Anne saber que estou rodeada de livros: ter ido à Internet consultar o meu curriculum vitae (uma professora tem livros em casa, não é?) ou ter a sua agente lido as minhas memórias. Mas esta explicação não era plausível, pois eu só fora admitida após uma desistência súbita na «lista de espera» das consultas com Anne, a qual ultrapassa já as duas centenas.

Em resumo, eis o que observei. Muitas das frases que Anne proferiu ao longo da conversa devem aplicar-se a mais de metade da população, mas ela consegue transmitir a sensação de sermos únicos. É tentador acreditar que um «espírito», qualquer «espírito», nos ama, nos admira e nos está agradecido. Saí de lá espantada, mas não convencida. Sei que a minha mãe não comunica comigo, nem através da Anne nem de ninguém, porque morreu, em 2006, jazendo o seu corpo no cemitério de Águas Belas.

No que diz respeito ao sobrenatural, sou de granito. Deve ser por isso que me reconheço na resposta que Kant deu à pergunta, que lhe foi feita, em 1784, sobre o significado da palavra Iluminismo: «Representa a ultrapassagem da imaturidade imposta. Imaturidade quer dizer a inaptidão para usar a capacidade de raciocínio sem uma direcção exterior imposta por outrem.» Como ele, penso que devemos ousar conhecer. Claro que é apetecível crer que são os residentes do Hades ou os astros celestes que determinam o nosso destino. A ideia de sermos responsáveis pelo que fazemos é aterradora. Daí que os seres emocionalmente mais frágeis possam sentir a tentação de se refugiar neste tipo de crenças. Uma coisa vos garanto: nem a pomba fala com os cardiais reunidos no Vaticano, nem os mortos comunicam com os anónimos que, em desespero, a eles recorrem.
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«Sábado» 31 Mar 10

O COMPORTAMENTO ANTI-SOCIAL

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Por Manuel João Ramos e Rui Zink

COMECEMOS POR EXPLICAR o que é um comportamento anti-social: trata-se de "toda e qualquer actividade agressiva, intimidatória ou destrutiva que provoca danos à qualidade de vida de outras pessoas" (definição do Home Office britânico).

Ao contrário de algum senso comum, não são apenas os marginais que são propensos a este tipo de comportamento. Infelizmente, também detentores de cargos públicos podem, ocasionalmente, mas com mais frequência do que se desejaria, nele incorrer. Podemos dizer que Adolf Hitler tinha um comportamento anti-social, embora tenha sido democraticamente eleito. É um exemplo extremo, mas útil: pois a partir dele, podemos "descer" às mais diversas variantes, desde a pequena corrupção ao abuso de poder, etc.

A figura do comportamento anti-social em Portugal não é criminalizada, ao contrário do que acontece, por exemplo, no Reino Unido. Mas a sua censura está implícita na lei, nomeadamente na penalização de certo tipo de infracções graves.

A história do reconhecimento da grave crise rodoviária em Portugal é recente, bem como o seu combate. Por isso, é sabido que comportamentos que hoje todos sabemos serem anti-sociais foram durante demasiado tempo tolerados. É sinal desta saudável mudança de paradigma a pena inédita (de três anos de prisão efectiva) aplicada à condutora que, conduzindo a mais de 120 Km/h no perímetro urbano, causou um trágico triplo atropelamento no Terreiro do Paço.
Ou seja, os juízes começam a revelar consciência de que certas infracções graves são, na verdade, comportamentos anti-sociais - e como tal, a tolerância tem de ser menor do que, por razões de atrasos vários, foi durante décadas.

Ora a quase-trágica colisão entre duas viaturas oficiais na Avenida da Liberdade, em 27 de Novembro último, foi evidentemente causado por um comportamento anti-social. Pois é tão ou mais gravoso circular às seis da tarde na Avenida da Liberdade a mais de 130 Km/h que a mais de 120 às cinco da manhã na Infante D. Henrique.

Não somos ingénuos. Sabemos que a infracção grave do veículo que transportou o dr. António Costa ao estádio do Algarve no passado dia 25 de Março não é coisa rara entre detentores de cargos públicos. E que até há alguma tolerância, resquício de um tempo, digamos, menos esclarecido. Mas tal como a condutora que foi condenada a prisão efectiva serviu de exemplo para casos futuros (podendo até queixar-se, com alguma "razão", de ter sido injustiçada, dado que anteriormente os homicídios na estrada não eram punidos), temos de começar por algum lado.

Infelizmente, a comunicação social, que tão útil tem sido ao longo destes anos na denúncia de comportamentos anti-sociais de quem nos governa, não conseguiu esclarecer devidamente as circunstâncias em que a viatura do dr. António Costa foi detectada a 160 Km/h perto de Grândola.

Foi autuado? Não foi autuado? A multa foi paga? Não foi paga? Se sim, por quem? Se não, porquê?

A ACA-M, pugnando pela defesa dos interesses difusos colectivos, acaba de enviar requerimentos para esclarecimento deste assunto ao Provedor de Justiça, à presidência da CML, ao Comandante Geral da GNR, à Inspecção da GNR, ao Comando Territorial de Setúbal da GNR, e aos Comandantes dos Destacamentos de Trânsito de Setúbal e Grândola.

ABAIXO: O REQUERIMENTO

Exmo. Senhor Dr. António Costa, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa

Exmo. Senhor,

Considerando:

Que o Art. 64º do Código da Estrada restringe o conceito de marcha urgente assinalada aos “condutores de veículos que transitem em missão de polícia, de prestação de socorro ou de serviço urgente de interesse público assinalando adequadamente a sua marcha”;

Que constitui um abuso do disposto no Art. 64º do CE o entendimento que dele fazem em frequentes ocasiões os detentores de cargos públicos e assim também os motoristas de veículos de fiscalização policial e de emergência médica, como bem o refere o parecer do Dr. Luís Escudeiro, formador com larga experiência técnica e teórica na área da condução em marcha de urgência (Parecer anexo).

Que os cidadãos eleitos para cargos públicos se encontram abrangidos por um dever especial de lealdade e de responsabilidade perante os outros cidadãos do país;

Que a velocidade excessiva é um, senão o, principal factor de insegurança nas vias rodoviárias portuguesas, e evidente um potenciador da gravidade dos traumas decorrentes de sinistros automóveis;

Que a circulação em auto-estrada à velocidade de 160 km/h constitui uma infracção grave de acordo com a Alínea b) do nº 1 do Art. 145º do CE, que constitui circunstância agravante o incumprimento do nº 3 do Art. 139º do mesmo CE, e que a responsabilidade do comitente nas infracções rodoviárias é definida pela alínea a) do nº 7 do Art. 135º do CE e pela legislação complementar;

A importância do bom exemplo no cumprimento das regras de sociabilidade e legalidade que acarreta o exercício de funções públicas;

O carácter socialmente contagiante dos comportamentos rodoviários de risco;

O facto de V. Exa. ter sido, de Abril de 2005 a Julho de 2007, Ministro da Administração Interna, conhecendo por isso em detalhe os problemas de saúde pública decorrentes da elevada sinistralidade rodoviária;

A notícia publicada na edição de 25 de Março último do jornal Correio da Manhã, onde se informava que V. Exa. “foi alvo de uma operação de fiscalização rodoviária, realizada no domingo dia 21 de Março, pelo Destacamento de Trânsito da GNR de Grândola. Pelas 15h00, ao quilómetro 50,9 da auto-estrada do Sul (A2), o radar fotográfico disparou, assinalando uma velocidade de pelo menos 160 Km/h. O Mercedes de serviço [de V. Exa.], onde seguiam mais duas pessoas, foi mandado encostar na área de serviço de Grândola. O condutor terá dito que viajava em missão de serviço. António Costa era um dos convidados de honra da final da Taça da Liga, entre Benfica e FC Porto. Contactado pelo CM, a assessoria de [V. Exa.] referiu que o condutor 'foi autuado e mandado seguir'.

A informação constante no Fórum da Brigada de Trânsito (http://www.brigadatransito.com/), dando conta que, diferentemente do que afirma a referida edição do Correio da Manhã, o veículo em que V. Exa. circulava ostentava, no momento em que foi fiscalizado pela patrulha da GNR, um dístico com a palavra “Polícia” na pala de protecção solar do vidro dianteiro; e que V. Exa. terá abordado o Comandante do destacamento de trânsito de Setúbal, que se encontrava no local da operação de fiscalização da GNR e, informando estar em missão de serviço, alegou a protecção do Art. 64º do CE, não tendo sido assim autuado, o que contradiz claramente a informação prestada pelo gabinete de assessoria da presidência da Câmara Municipal de Lisboa ao jornalista do Correio da Manhã. Mais informa o referido Fórum que nesta operação foram autuados cerca de noventa condutores, alguns dos quais teriam possivelmente o mesmo objectivo da missão de V. Exa. – o de assistir a um jogo de futebol;

A necessidade urgente de esclarecer publicamente a notável discrepância entre as informações publicadas na supramencionada edição do Correio da Manhã, e nomeadamente as declarações, não contraditas, do gabinete de assessoria da presidência da CML, e aquelas disponibilizadas no Fórum da Brigada de Trânsito;

O facto de o início do referido jogo só ter início previsto para as 19.15, ou seja 4.15 horas depois da infracção, às 15.00, pelo que, mesmo aceitando para efeitos de argumento, que a deslocação de V. Exa. era de interesse público, não é vislumbrável qualquer fundamento legal para ponderar ter ela sido uma “missão de serviço urgente”, já que do quilómetro 50,9 da A2 até ao Estádio do Algarve distam 217 quilómetros, bastando por isso uma velocidade média necessária de 54/h para lá ter chegado antes do início do jogo desde o quilómetro referido, e assumindo que o trajecto em viatura automóvel desde o seu local de trabalho até ao Estádio Algarve é de 268 quilómetros, conforme a rota seguinte:


1. Partindo do edifício dos Paços do Concelho, na Praça do Município, em Lisboa;

2. Virando, após 132 m, à direita na R. do Arsenal durante 240 m e continuando pela Rua Bernardino Costa durante 120 m;

3. Na Praça do Duque da Terceira, tomando, após 78 m, a 3ª saída para o Cais do Sodré e virando à direita na Av. 24 de Julho, após 120 m;

4. Percorrendo a Av. 24 de Julho durante 1700 m;

5. Virando à direita na Rua João de Oliveira Miguéns que se torna, após 270 m, a Av. de Ceuta;

6. Após percorrer 168 m da Av. de Ceuta, virando à esquerda para chegar ao IP7, percorrendo essa durante 5,6 km;

7. Mantendo o percurso até à A2 e aí seguindo a via durante 234 km;

8. Tomando a saída para a A22/E01 em direcção a Faro, durante 22,1 km;

9. Tomando a saída 13 em direcção a Faro e seguindo durante 550 m;

10. Tomando o IC4 e percorrendo-o durante 1650 m;

11. Na rotunda, tomando a 3ª saída para a via do Parque das Cidades e percorrendo essa via durante 560 m;

12. Na rotunda seguinte, tomando a 2ª saída onde, após 48 m, se atinge o Estádio do Algarve.

A admissibilidade do facto de V. Exa. se ter deslocado em missão de serviço oficial para assistir, como convidado de honra, ao final da Taça da Liga Portuguesa de Futebol;

A não admissibilidade do facto de a presença de V. Exa. na assistência de um jogo de futebol constituir objectivo válido de uma missão de polícia, de prestação de socorro ou de serviço urgente de interesse público.

A legitimidade da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados (ACA-M) na prossecução da defesa dos interesses difusos e colectivos;


Vimos requerer:

Que V. Exa. esclareça se o veículo em que se deslocava no momento em que foi parado pela operação de fiscalização da GNR ao quilómetro 50,9 da auto-estrada do Sul (A2), pelas 15h00 do dia 25 de Março último, ia ou não em missão oficial, e que confirme se circulava ou não a pelo menos 160 km/h;

Que V. Exa. esclareça se o veículo em que se deslocava ostentava ou não um dístico com a palavra “Polícia” na pala de protecção solar do vidro dianteiro;

Que V. Exa. esclareça se foi, como declarado pelo gabinete de assessoria da presidência da CML, paga ou não a coima prevista ou se alegou encontrar-se em missão oficial e sob o regime de excepção previsto no nº 1 do Art. 64º do CE, e se, em tal caso, o veículo em que circulava cumpria os requisitos do disposto nos nºs 3 e 4 do mesmo Art..

Que envie para a sede desta Associação cópia autenticada do eventual comprovativo da coima aplicada pela infracção grave detectada ao quilómetro 50,9 da auto-estrada do Sul (A2) pelo radar da operação de fiscalização do Destacamento de Trânsito da GNR de Grândola, pelas 15.00 do dia 25 de Março último.

Que nos informe se foi V. Exa. o comitente da prática de excesso de velocidade do motorista do veículo em que circulava, ou se este agiu por iniciativa própria e contra a vontade de V. Exa.;

Que, não tendo havido lugar à aplicação da coima, V. Exa. se digne esclarecer quais os fundamentos que levaram V. Exa. a colocar (ou mandar colocar) um dístico com a palavra “Polícia” na pala de protecção solar do vidro dianteiro do veículo, e a reclamar perante o Comandante do Destacamento de Grândola a anulação da coima ao abrigo do nº 1 do Art. 64º do C.E.

Que nos informe quem pagou a coima anunciada pelo gabinete de assessoria da presidência da CML, caso esta tenha sido aplicada: se V. Exa., se o motorista do veículo oficial, ou se os munícipes da cidade de Lisboa;

Que, caso o motorista tenha, por iniciativa própria, colocado um dístico com a palavra “Polícia” na pala do vidro dianteiro do veículo em que V. Exa. circulava e excedido a velocidade em pelo menos 40km/h em relação ao limite legal aplicável naquela via específica, lhe seja instalado um processo disciplinar, de acordo com a legislação correspondente;

Que, caso a informação prestada pelo gabinete de assessoria da presidência da CML se verifique incorrecta, se digne V. Exa. instaurar um inquérito disciplinar na Autarquia de Lisboa de modo a determinar a responsabilidade pela prestação de declarações falsas à comunicação social e, consequentemente, ao público em geral;

Que V. Exa. emita um esclarecimento público detalhado e fundamentado sobre a matéria substantiva a que se refere o presente requerimento.

Pede Deferimento,

Direcção da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados

Lisboa, 18 de Abril de 2010

domingo, 18 de abril de 2010





O estacionamento selvagem, desnecessário e impune, um triste ex-libris de Lagos.
Na imagem: Avenida José Afonso

sábado, 17 de abril de 2010

O homem que move montanhas

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Por Rui Zink


JOÃO GARCIA é o mais português dos portugueses e, ao mesmo tempo, o menos português. A esta hora está a escalar (a TENTAR escalar, ou seja, a escalar MESMO) o Annapurna, a mais temível das montanhas, e a única que lhe falta no admirável currículo. Pode até nem ter ainda as botas na neve. Se calhar está a comprar material, mas a escalada já começou, pois nas montanhas (como em tudo o que vale a pena) o mais importante são os preliminares. No caso do João, sei que a logística não é a sua parte favorita. Ele gosta mesmo é de estar no terreno, é aí que se encontra consigo mesmo. Mas, como bom profissional, sabe que não pode descurar a parte “entediante” da aventura. Nisso o João não está sozinho. Todas as pessoas que tentam escalar uma qualquer “montanha” (seja nas indústrias do ensino, do futebol, do calçado) sabem que assim é. Não é possível, para quem quer ser profissional, desconhecer as diversas componentes da sua arte, saber, mister.

O que deu ao João Garcia esta mania de subir montanhas? Uma resposta possível é o clássico “Porque estão lá.” E confere. Desde que a humanidade existe que não pode ver nada sem ir lá mexer. Por isso, sim, daqui a trinta anos haverá viagens Abreu para Marte (e provavelmente só de ida). Mas a melhor resposta nunca pode ser dada pelo próprio. Por sorte eu não sou o próprio e posso dá-la: ao subir o Annapurna, o João Garcia comove-me e dá-me alento para voltar àquela aula que não anda a correr bem, àquele livro que não desencalha, àquele adolescente que me anda a dar água pela barba, àquele emprego em que já não me revejo, àquele casamento a afundar-se, àquela conta que tenho para pagar e não sei onde desencantar o dinheiro. Se alguém me perguntar hoje por que raio não desisto, talvez responda: “Porque o João está lá, a escalar o Annapurna.”