sábado, 11 de setembro de 2010

Na cama com stresse

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Por João Duque

SAÍA DA VELHA Portugália, depois de um jantar no final do mês de agosto. No primeiro andar onde ainda adolescente havia jogado bilhares, tinha acabado com um ensopado bife tradicional e bebido a indefetível companheira 'imperial'. Na rua, já na Almirante Reis, onde casas de decoração vendem mobiliário para todo o tipo de interiores, havia uma especial.

A montra era preenchida quase integralmente por uma gigantesca cama armada de cabeceiras encastradas, varões doirados no topo, uma coberta em tons caramelo para condizer com o ouro fingido e duas almofadas, enormes, fofas, bordadas com motivos variados e coloridos.

A cama preenchia quase integralmente toda a profundidade da montra. Os seus pés quase tocavam no vidro transparente, impecavelmente limpo, da montra iluminada e resplandecente. A cama era o orgulho da montra que não se eximia em atribuir-lhe cores e atributos aos olhos dos passeantes potenciais compradores.

Esta montra, como tantas, fica num dos inúmeros edifícios em que os estabelecimentos comerciais estão recuados e as arcadas e pilares dão abrigo divino aos peões em momentos de inadvertidas chuvas ou abrasadores sóis como os de Lisboa neste agosto.

Mas esta montra tinha outra coisa. Junto a ela, onde a montra exibia vaidosa a sua esplendorosa cama, aos seus pés, mas do lado de fora, abrigando-se no ventre da arcada, três homens tentavam adormecer com as cabeças encostadas ao vidro da montra. Dentro, a cama era ladeada por felpudos tapetes. Fora, ao fundo da cama, estendiam-se prováveis cartões aproveitados de caixas de frigoríficos desmontadas a servirem de estrado, colchão e tapete.

As cabeças daqueles homens que repousavam sobre as lajes estavam a escassos cinquenta centímetros dos pés da extraordinária cama. A cama tinha sido feita por outros homens para que homens nela se deitassem, a colcha para que com ela se cobrissem, e as almofadas para que nelas repousassem. Outros homens, sem o poderem, e apenas separados por um vidro, jaziam no chão longe de lá se poderem deitar, cobrir ou repousar.

O que os separava da cama? O vidro? A falta de vontade ou interesse? Apesar de uma simples pedra poder quebrar a barreira, nós sabemos que a 'pedrada' teria que ser enorme para derrubar todo um sistema de propriedade que cria estas incongruências inaceitáveis.

Contei esta história ao meu amigo Zé que me recordou como a história sempre foi feita da luta entre grupos ambiciosos por ter. Como são curiosos os verbos 'ser' e 'ter', os mais 'importantes' e aos que dedicamos mais atenção...

Recordei depois a ainda recente luta entre capital (acionistas) e os seus agentes (gestores) e de como muitos me parecem equivocados acicatando invejas num eleitorado que vota, mas não em assembleias gerais...

A dúvida reside em saber qual o sistema que não cria estes potenciais acidentes... Noutros sistemas, passado pouco tempo depois da 'pedrada', nem cama já há para comparar ao catre improvisado de papelão.

«Expresso» de 4 Set 10