sábado, 11 de setembro de 2010

Submarino ao fundo!

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Por Antunes Ferreira

QUANDO ERA MIÚDO, jogava à batalha naval com o meu primo Jacinto, já falecido. Obviamente que foi antes do óbito, porque depois, nem com uma mesa de pé de galo. Em Portalegre, em casa dos nossos avós, pelas férias grandes, que, de resto, eram pequenas. Do nosso ponto de vista, claro. Era um fartote de tiros, a maior parte dos quais apenas se limitava a provocar umas quantas ondas mais provocadoras, no mar de calmaria do papel.

Usavam-se umas folhas de almaço quadriculado, onde se desenhavam dois quadrados para cada jogador. Divididos noutros mais pequenos, numa quadrícula 10x10, eram numerados no alto, na horizontal, de um a dez, e na vertical com letras do A ao J. Era o que se dizia então, um jogo de tabuleiro com dois malandrecos, no qual cada um tinha de adivinhar em que quadrados estavam os navios do oponente. Era bué da fixe – ou muito giro, como então se dizia.

Assim, jogava-se em duas grelhas para cada concorrente, uma que representava a disposição dos barcos de um deles, e outra que representava a do adversário. E vice-versa. Em cada grelha os estrategas colocavam os seus navios e registavam os tiros do camarada do outro lado. A capacidade de adivinhação andava de mãos dadas com a análise acurada dos disparos falhados, o que possibilitava a provável localização da frota do inimigo. As meninges tinham de estar bem lubrificadas, senão…

Depois, o jogo continuava numa série de rondas, uma cá, outra lá, em cada uma das quais eram disparados três tiros. As armadas eram constituídas por um porta-aviões (cinco quadradinhos adjacentes em forma de sete), quatro submarinos (um quadradinho apenas), e um barco de dois, outro de três e ainda um de quatro canos. Quantas horas passámos tentando afundar a frota inimiga, como se se tratasse de deitar ao fundo os barcos da Armada Invencível…, que nunca chegou a sê-lo.

As acusações mútuas de batoteiro eram o pão-nosso-de-cada-dia. Viste o meu mar, espreitaste sem eu dar por isso, mas eu topei-te, é só água, água, água. Adivinha lá como estão dispostos os meus navios. E assim por diante. Por vezes, a exaltação aumentava e motivava a intervenção de um poder moderador, normalmente um progenitor ou mesmo os dois dos almirantes de calções e meia alta. Mas, também, a minha Mãe, de colher de pau em punho, refreava os ânimos mais exacerbados.

Quase sempre todo esse alvorotar terminava em tom álacre e numa chávena de café com leite e pão com manteiga, quiçá umas bolachas Maria, ou uma fatia de pão-de-ló. Mas nenhum de nós era desbocado, muito menos grosseiro, não dizíamos palavrões como os que usa um tal Carlos Queiroz, ex-seleccionador nacional de futebol que, finalmente, foi-se! O meu avô Braz, dos bigodes brancos retorcidos nas pontas e encerados, dizia então que os eflúvios do lanche eram dos melhores aromas de que se podia fruir. Termos, que, para mim eram mais do que desconhecidos, misteriosos. Mas que resolvia com umas visitas ao Dicionário de Morais, obra quase tão importante como os Sagrados Evangelhos, livro que não era dos meus mais favoritos. Mas que era obrigado a ler. Estávamos, de resto, no tempo em que se lia.

Três dos meus netos, aboletados e em acampamento provisório cá em casa até à véspera do início das aulas, dedicavam-se ontem a jogar qualquer coisa – no computador, na playstation graúda ou na PSP, que, no meio da minha ingenuidade, só agora descobri que era uma coisa daquelas portable, e não a prestimosa instituição de Segurança Pública, que quer fazer greve um dia destes, o que a Constituição não permite, mas os guardas dizem que sim.

Arvorando o meu ar mais sabedor e consciente da actualidade, perguntei-lhes que jogo era. O avô não deve conhecer; é a batalha naval. Uma ova é que não conhecia. Gente, conheci, conheço e conhecerei, mas praticado a lápis em papel quadriculado. Olharam-me estupefactos. Com lápis e papel? Não pode ser. Podia, malta, podia. Se quiserem, eu explico. Sorrisinhos condescendentes e comentário interior: ganda cena; o cota deu o berro, como a selecção nacional.

Comecei a informação. De que fui interrompido, escassos segundos depois, ó avô isso era uma trabalheira, aqui no computador é parecido – mas é muito mais fácil. Basta uma cassete. Optei por uma retirada estratégica. Já no século IV a.C. o Sun Tzu ensinava como ela devia ser feita, pelo que não se tratou de nada original. Napoleão, Mao e Gyap também a usaram e não se deram mal com isso, nem se envergonharam.

Estava, pois, num prudente recolhimento, quando me dei conta que o episódio náutico/lúdico viera à superfície, (operação singela, tratava-se de batalha naval hodierna, dos dias que vão correndo, nos quais tudo é possível, mesmo o impossível) por força de uma notícia de que tomara conhecimento momentos antes desta ocorrência. Entrara oficialmente ao serviço o novo submarino da Armada Portuguesa, o Tridente.

Rezavam os jornais, com foto e tudo, que activistas do BE se tinham passeado na Baixa, com um submarino em esponja sintética, protestando assim contra a aquisição do submersível, ao qual se seguirá um irmão gémeo, tal come este, made in Germany. Com os milhões gastos podiam fazer quatro escolas e três hospitais, disseram, o que me parece um tanto exagerado. Do que eles se haviam de lembrar, os patuscos, que com tal crítica ao Governo, tinham originado estas lembranças da minha juventude…

Naquela altura, no almaço quadriculado, quando um tiro acertava no quadradinho B7, tinha de se confirmar, em voz suficientemente audível, submarino ao fundo! Não sei se no computador será assim; mas, enquanto o pau vai e vem, é melhor que a Marinha de Guerra se ponha… a pau.