Por Maria Filomena Mónica
ESTOU A ESCREVER isto a 10 de Junho [2009], um feriado cuja origem caiu no esquecimento. Em 1880, um grupo de intelectuais decidiu mostrar ao mundo que Portugal era um país culto, como se provaria pela celebração, naquela data, do terceiro centenário da morte de Luís de Camões. Como é óbvio, o impacto na cena internacional foi nulo. Após a República, veio o decreto consagrando o ócio e, com o Estado Novo, a designação de Dia de Camões, de Portugal e da Raça. O actual regime manteve o feriado, alterando a designação para Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Não gostando de comemorações, muito menos de cariz nacionalista, optei por trabalhar como se nada fosse, do que resultou acabar o dia a pensar no Zé Povinho.
Cada país tem o símbolo que merece: a Inglaterra, o John Bull (um senhor rural e divertido), a França, a Marianne (uma mulher de seio revolucionário), a Alemanha, a Germânia (uma mocetona loira com uma espada na mão). Nós temos o Zé Povinho, nascido, pela pena de Rafael Bordalo Pinheiro, a 12 de Junho de 1875, no n.º 5 da revista A Lanterna Mágica. Ei-lo, no lado direito da imagem, coçando a cabeça, com ar apalermado. Dentro de um «trono», deparamo-nos com Fontes Pereira de Melo, a fazer de Santo António, tendo ao colo o rei D. Luís, como Menino Jesus. O pedinte é o ministro da Fazenda, Serpa Pimentel, com uma bandeja na mão, a fim de sacar moedas ao dito Zé. Não fosse o caldo entornar-se, está presente o Barão do Rio Zêzere, comandante da Guarda Municipal.
Poder-se-á pensar que, em 1875, o campónio estava a ser mais espoliado do que o costume. Não era o caso: depois de um triénio terrível, o de 1868/71, o país vivia dias bonançosos. As remessas dos emigrantes haviam recomeçado, a economia retomara o seu ritmo, a situação internacional acalmara. E, no entanto, nunca tantos intelectuais criticaram tanto o regime. É neste caldo de cultura que apareceu o Zé Povinho. Este foi evoluindo até acabar imortalizado na figura do saloio a fazer um manguito, a qual receberia a consagração derradeira sob a forma de uma escultura. O gesto tem sido interpretado como uma atitude corajosa, mas poucas coisas há mais desprezíveis do que um servo que, diante dos patrões, se curva, indo fazer manguitos para a cozinha.
A figura do Zé Povinho aparece noutras caricaturas, como a de 9 de Julho de 1880, publicada em O António Maria, na qual surge com uma albarda às costas. Dois anos depois, no Álbum das Glórias, a albarda está colocada no chão, podendo imaginar-se que alguém a voltará a colocar sobre o dorso popular. O texto que acompanha o desenho é de Ramalho Ortigão: «Como desenvolvimento, ele está pouco mais ou menos como se o tivessem desmamado ontem. De músculos, porém, de epiderme e de coiro, engrossou, endureceu e calejou como se quer, e, cumprindo com brio a missão que lhe cabe, ele paga e sua satisfatoriamente. De resto, dorme, reza e dá os vivas que são precisos.» Ramalho Ortigão, aliás a alma da festarola, declarava ambicionar ver o dia em que o Zé Povinho se transformasse em Povo.
O problema residia em que ninguém sabia o que este, o Povo, queria. Desde que não saísse das pocilgas que habitava, empunhando baionetas, ninguém dava a menor atenção às obscenidades a que, lá dentro, se entregava. Uma vez por outra, o Zé Povinho arregaçava as mangas, pegava num cacete e até corria um político a pontapé. Mas nunca o vemos tentando libertar-se da albarda. Leva, resmunga e amocha. O que não está sociologicamente errado. Um país rural pode conhecer, como conheceu, motins provocados pela fome, mas dificilmente dá origem a revoluções.
O regime monárquico só caiu, já Bordalo Pinheiro tinha morrido, quando a pequena burguesia urbana entrou em cena. Em 1910, após ter pedido a demissão do cargo de bibliotecário da Ajuda, por não querer engrossar «o abjecto número de percevejos que de um buraco estou vendo nojosamente cobrir o leito da governação», Ramalho Ortigão exilou-se em Paris. Afinal, o Povo não era aquilo com que tinha sonhado.
O que impressiona, ainda e sempre, é o facto de o Zé Povinho ser admirado. Feio, patego e bronco, representa o camponês no que este tem de mais grosseiro. Apesar de o governo lhe roubar os filhos para a tropa e de lhe arrecadar os tostões ganhos com o suor do seu rosto, o idiota continua a ostentar um sorriso alvar. A característica mais notória do símbolo nacional é, como se vê, a subserviência: não nos podemos orgulhar.
ESTOU A ESCREVER isto a 10 de Junho [2009], um feriado cuja origem caiu no esquecimento. Em 1880, um grupo de intelectuais decidiu mostrar ao mundo que Portugal era um país culto, como se provaria pela celebração, naquela data, do terceiro centenário da morte de Luís de Camões. Como é óbvio, o impacto na cena internacional foi nulo. Após a República, veio o decreto consagrando o ócio e, com o Estado Novo, a designação de Dia de Camões, de Portugal e da Raça. O actual regime manteve o feriado, alterando a designação para Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Não gostando de comemorações, muito menos de cariz nacionalista, optei por trabalhar como se nada fosse, do que resultou acabar o dia a pensar no Zé Povinho.
Cada país tem o símbolo que merece: a Inglaterra, o John Bull (um senhor rural e divertido), a França, a Marianne (uma mulher de seio revolucionário), a Alemanha, a Germânia (uma mocetona loira com uma espada na mão). Nós temos o Zé Povinho, nascido, pela pena de Rafael Bordalo Pinheiro, a 12 de Junho de 1875, no n.º 5 da revista A Lanterna Mágica. Ei-lo, no lado direito da imagem, coçando a cabeça, com ar apalermado. Dentro de um «trono», deparamo-nos com Fontes Pereira de Melo, a fazer de Santo António, tendo ao colo o rei D. Luís, como Menino Jesus. O pedinte é o ministro da Fazenda, Serpa Pimentel, com uma bandeja na mão, a fim de sacar moedas ao dito Zé. Não fosse o caldo entornar-se, está presente o Barão do Rio Zêzere, comandante da Guarda Municipal.
Poder-se-á pensar que, em 1875, o campónio estava a ser mais espoliado do que o costume. Não era o caso: depois de um triénio terrível, o de 1868/71, o país vivia dias bonançosos. As remessas dos emigrantes haviam recomeçado, a economia retomara o seu ritmo, a situação internacional acalmara. E, no entanto, nunca tantos intelectuais criticaram tanto o regime. É neste caldo de cultura que apareceu o Zé Povinho. Este foi evoluindo até acabar imortalizado na figura do saloio a fazer um manguito, a qual receberia a consagração derradeira sob a forma de uma escultura. O gesto tem sido interpretado como uma atitude corajosa, mas poucas coisas há mais desprezíveis do que um servo que, diante dos patrões, se curva, indo fazer manguitos para a cozinha.
A figura do Zé Povinho aparece noutras caricaturas, como a de 9 de Julho de 1880, publicada em O António Maria, na qual surge com uma albarda às costas. Dois anos depois, no Álbum das Glórias, a albarda está colocada no chão, podendo imaginar-se que alguém a voltará a colocar sobre o dorso popular. O texto que acompanha o desenho é de Ramalho Ortigão: «Como desenvolvimento, ele está pouco mais ou menos como se o tivessem desmamado ontem. De músculos, porém, de epiderme e de coiro, engrossou, endureceu e calejou como se quer, e, cumprindo com brio a missão que lhe cabe, ele paga e sua satisfatoriamente. De resto, dorme, reza e dá os vivas que são precisos.» Ramalho Ortigão, aliás a alma da festarola, declarava ambicionar ver o dia em que o Zé Povinho se transformasse em Povo.
O problema residia em que ninguém sabia o que este, o Povo, queria. Desde que não saísse das pocilgas que habitava, empunhando baionetas, ninguém dava a menor atenção às obscenidades a que, lá dentro, se entregava. Uma vez por outra, o Zé Povinho arregaçava as mangas, pegava num cacete e até corria um político a pontapé. Mas nunca o vemos tentando libertar-se da albarda. Leva, resmunga e amocha. O que não está sociologicamente errado. Um país rural pode conhecer, como conheceu, motins provocados pela fome, mas dificilmente dá origem a revoluções.
O regime monárquico só caiu, já Bordalo Pinheiro tinha morrido, quando a pequena burguesia urbana entrou em cena. Em 1910, após ter pedido a demissão do cargo de bibliotecário da Ajuda, por não querer engrossar «o abjecto número de percevejos que de um buraco estou vendo nojosamente cobrir o leito da governação», Ramalho Ortigão exilou-se em Paris. Afinal, o Povo não era aquilo com que tinha sonhado.
O que impressiona, ainda e sempre, é o facto de o Zé Povinho ser admirado. Feio, patego e bronco, representa o camponês no que este tem de mais grosseiro. Apesar de o governo lhe roubar os filhos para a tropa e de lhe arrecadar os tostões ganhos com o suor do seu rosto, o idiota continua a ostentar um sorriso alvar. A característica mais notória do símbolo nacional é, como se vê, a subserviência: não nos podemos orgulhar.
«GQ de Julho/Agosto 2009