Por Baptista-Bastos
"HÁ RECEITAS para a felicidade?", perguntava, no Diário de Notícias, num dos seus habituais excelentes artigos, o padre Anselmo Borges. É uma busca quase desesperada, esta, que o ser humano empreende desde a idade da razão. O caminho para Deus é uma das hipóteses; a hipótese religiosa, bem entendido. Mas, pergunto, a hipótese política não conterá, em si mesma, algo de religioso? Saint-Just, na Convenção de Paris: "A Revolução Francesa proclama que a liberdade é uma ideia nova na Europa, e que a felicidade é possível entre os homens." A liberdade e, por acréscimo, a felicidade proclamadas como decreto suscitam todo o tipo de apreensões. "Mas é um princípio", para relembrar o que escreveu o filósofo católico George Santayana.
Tudo está em aberto, como se pressupõe do artigo do padre Borges, aliás minha leitura semanal. É evidente, porém, que o combate à desgraça, à injustiça, à corrupção, às iniquidades sociais configurará, sempre, uma possibilidade moral. E a consequente denúncia de um sistema predador, que torna o homem dependente de uma lógica económica insustentável, é uma imposição a que nenhum homem de bem, nenhuma instituição (como, por exemplo, a Igreja) deve fugir. Essa imposição estabelece um compromisso consigo mesma, afinal um ponto decisivo para se questionar o processo histórico.
A fome, a exclusão, são produtos típicos das novas relações de poder, nascidas da implosão do comunismo. As "regras práticas" indicadas num estudo do pensador Richard D. Precht (desconheço quem seja) e referidas pelo padre Borges, consistem, afinal, na ocupação do cérebro pelo trabalho, na constituição da família, na fruição dos prazeres simples, no entendimento das nossas limitações e na arte de se saber lidar com as dificuldades. Há qualquer coisa de passividade bucólica, nesta espécie de breviário da resignação, onde se lê estas frases surpreendentes: "Não se pode viver obcecado com o futuro. Quem só espera vir a ser feliz, nunca o será."
Pode-se, em recta consciência, acabar com a esperança que a ideia de futuro acalenta e estimula? Não são "os amanhãs que cantam"; é a própria natureza do homem que o impele para a idealidade. Brecht: "Os homens são feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos." A felicidade não se promulga por decreto, mas deve ser uma demanda infatigável e intransigente num mundo que, inclusive, está a perder a fé no homem. Emmanuel Mounier, que muitos cristãos deviam ler com mão profusa, reivindicava, simultaneamente, a revolução espiritual e a revolução das estruturas.
A nossa infelicidade advém de tudo estar submetido à hierarquia do lucro, e de o lucro ter sido erigido à categoria de necessidade total da pessoa humana. Eis a aberração levada ao extremo.
.
«DN» de 1 Set 10
"HÁ RECEITAS para a felicidade?", perguntava, no Diário de Notícias, num dos seus habituais excelentes artigos, o padre Anselmo Borges. É uma busca quase desesperada, esta, que o ser humano empreende desde a idade da razão. O caminho para Deus é uma das hipóteses; a hipótese religiosa, bem entendido. Mas, pergunto, a hipótese política não conterá, em si mesma, algo de religioso? Saint-Just, na Convenção de Paris: "A Revolução Francesa proclama que a liberdade é uma ideia nova na Europa, e que a felicidade é possível entre os homens." A liberdade e, por acréscimo, a felicidade proclamadas como decreto suscitam todo o tipo de apreensões. "Mas é um princípio", para relembrar o que escreveu o filósofo católico George Santayana.
Tudo está em aberto, como se pressupõe do artigo do padre Borges, aliás minha leitura semanal. É evidente, porém, que o combate à desgraça, à injustiça, à corrupção, às iniquidades sociais configurará, sempre, uma possibilidade moral. E a consequente denúncia de um sistema predador, que torna o homem dependente de uma lógica económica insustentável, é uma imposição a que nenhum homem de bem, nenhuma instituição (como, por exemplo, a Igreja) deve fugir. Essa imposição estabelece um compromisso consigo mesma, afinal um ponto decisivo para se questionar o processo histórico.
A fome, a exclusão, são produtos típicos das novas relações de poder, nascidas da implosão do comunismo. As "regras práticas" indicadas num estudo do pensador Richard D. Precht (desconheço quem seja) e referidas pelo padre Borges, consistem, afinal, na ocupação do cérebro pelo trabalho, na constituição da família, na fruição dos prazeres simples, no entendimento das nossas limitações e na arte de se saber lidar com as dificuldades. Há qualquer coisa de passividade bucólica, nesta espécie de breviário da resignação, onde se lê estas frases surpreendentes: "Não se pode viver obcecado com o futuro. Quem só espera vir a ser feliz, nunca o será."
Pode-se, em recta consciência, acabar com a esperança que a ideia de futuro acalenta e estimula? Não são "os amanhãs que cantam"; é a própria natureza do homem que o impele para a idealidade. Brecht: "Os homens são feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos." A felicidade não se promulga por decreto, mas deve ser uma demanda infatigável e intransigente num mundo que, inclusive, está a perder a fé no homem. Emmanuel Mounier, que muitos cristãos deviam ler com mão profusa, reivindicava, simultaneamente, a revolução espiritual e a revolução das estruturas.
A nossa infelicidade advém de tudo estar submetido à hierarquia do lucro, e de o lucro ter sido erigido à categoria de necessidade total da pessoa humana. Eis a aberração levada ao extremo.
.
«DN» de 1 Set 10