domingo, 26 de outubro de 2008

Justiça e sociedade em Portugal, 2006 - Algumas reflexões

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Por António Barreto
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DIZ-SE QUE OS “POVOS TÊM OS GOVERNOS QUE MERECEM”. Não falta quem pense que os governantes são, nas qualidades e nos defeitos, iguais aos governados. Houve um presidente da Televisão portuguesa que, perante críticas à qualidade das emissões, assegurou a opinião pública que a televisão era como o povo, nem melhor, nem pior. É frequente referir-se a condição dos dirigentes políticos como sendo igual à dos cidadãos. Já ouvi, nestes últimos anos, pessoas qualificadas garantir que os magistrados não são mais do que homens e mulheres como os outros. E já me foi dito, a mim e a milhares de telespectadores, que “os portugueses têm a justiça que merecem”.

Eis afirmações, próximas daquilo que se chama o “senso comum”, que merecem breve análise e comentário. Não concordo com nenhuma delas. A ideia de que os dirigentes são pessoas iguais às outras, que têm os mesmos limites e as mesmas fraquezas, assim como os mesmos talentos e qualidades, pode ser interessante, do ponto de vista eleitoral ou demagógico. Quem quer seduzir, procura ser igual, para ser amado. Ou, pelo menos, afirma ser igual, mesmo quando assim não pensa. Mostra humildade, mesmo que não seja sincera, ao mesmo tempo que parece promover ou louvar o seu interlocutor. Na verdade, quem assim se comporta está geralmente a reconhecer as suas fragilidades e a sua impotência. Pior ainda: a desculpar-se, com a sociedade, pelos seus erros. A culpar os níveis gerais de cultura, instrução, eficiência, consciência e civismo pelos seus próprios limites. A imputar aos “outros”, ao “sistema” ou ao “país” as responsabilidades pela sua resignação, pela sua falta de energia ou pelo seu conformismo.

Estas ideias decorrem de uma espécie de realismo determinista. Ou antes, reclamam-se elas próprias desse realismo que consiste em estabelecer que os indivíduos e as suas capacidades são produtos das sociedades em que vivem. Os seus defensores querem fazer-nos admitir que os sistemas sociais, as organizações colectivas e os indivíduos são o que são as sociedades. Que seria improvável que, numa sociedade atrasada e inculta, aparecessem dirigentes esclarecidos. Que, de igual modo, numa sociedade pobre e eventualmente mal organizada, não é de esperar que os sistemas de educação, de justiça ou de saúde, tenham desempenho superior, em qualidade, em prontidão e em humanidade, ao da sociedade em geral.

Este pensamento, se assim se pode chamar, é a negação do papel de dirigente, de quadro superior ou de autoridade. Com efeito, o que se pede a um dirigente é justamente que seja capaz de pensar, saber e fazer melhor do que outros, do que muitos outros. Pede-se a um dirigente que conheça os problemas, que seja capaz de encontrar as soluções, que preveja a evolução das tendências presentes e que prepare o futuro. Pede-se-lhe que, na sua acção e no seu comportamento, ajude a elevar os outros. Pede-se-lhe que seja melhor do que os outros. Pede-se-lhe que se comporte como um dirigente, como membro de uma elite, como alguém em quem podemos confiar. Não se lhe reconhece um valor ontológico especial, nem se lhe atribuem direitos diferentes dos seus concidadãos, mas pede-se-lhe que dê o exemplo e que nos ajude a sermos melhores.

Esta noção de dirigente, ou de elite, tem, evidentemente, os seus riscos. Se insistirmos na ideia, se exageramos na atribuição de qualidades e funções aos membros de uma elite, depressa chegaremos à crença de que existem ou podem existir seres iluminados e vanguardas omniscientes cujo papel consiste em dirigir os seus concidadãos. Os portugueses tiveram aliás, no século vinte, as experiências das vanguardas e a do iluminado. Esses percalços, se assim se podem designar, não bastam para arredar a ideia que defendo do dirigente. Na verdade, com as liberdades de pensamento, opinião, expressão e associação; com a realização de processos democráticos regulares e previsíveis; e com a participação de uma imprensa livre e independente, as tentativas de erigir vanguardas ou de entronizar iluminados têm poucas possibilidades de se realizar. As experiências portuguesas que vingaram, por pouco ou muito tempo, recorreram ou tentaram recorrer ao despotismo e à força, não à legitimidade e à legalidade. Essas experiências nunca foram legitimadas pela opinião livre ou foram até por ela rejeitadas.

Vêm estas breves reflexões a propósito do tema que pretendo abordar aqui. Em poucas palavras, gostaria de defender a ideia de que os portugueses não têm a justiça que merecem. Que os magistrados devem procurar ser melhores do que nós, os cidadãos. Que os responsáveis pelo sistema judicial devem fazer todos os esforços para funcionar melhor e de modo mais competente do que a sociedade em geral. Que a justiça deve ser pronta, em contraste com a morosidade e a falta de pontualidade dos portugueses em geral. Que os magistrados devem procurar sempre ser um exemplo de ponderação e independência. Que os tribunais devem ser, nesta sociedade tão frequentemente agressiva, locais de humanidade. Que os magistrados, pela sua excepcional posição na vida colectiva, devem ter sempre presentes que, ao mesmo tempo que são responsáveis e independentes, têm de ser observados e têm prestar contas. Que o conjunto dos chamados “parceiros” ou “operadores” do sistema judicial deveriam ter mais claramente a noção de que a justiça é o mais nobre bem da vida colectiva e que, por esse motivo, deveriam despender mais esforços para o bem comum e o interesse geral e menos para a defesa dos seus corpos profissionais e sociais. Que os políticos deveriam ter mais responsabilidades e mais intervenção no cuidado que merece o sistema de justiça, mas que deveriam também ter menos apetites relativamente ao controlo ou poder a exercer sobre os magistrados, os advogados, as polícias e os oficias de justiça. Que as autoridades e os partidos políticos deveriam perceber que, com uma justiça deficiente como a nossa, a liberdade e a democracia, se encontram limitadas; o mercado livre fica amputado; e os direitos e deveres dos cidadãos cerceados. Em resumo: gostaria de defender a ideia de que a justiça tem de ser em Portugal melhor do que a sociedade. Tem de ser um exemplo. E tem o dever de nos ajudar a melhorar a nossa vida colectiva. E a sermos melhores.

Não vejam nestas palavras apelos ingénuos à virtude e à bondade. Nem à solidariedade. Não creio que essas qualidades dependam da justiça. Desta, pelo seu funcionamento pronto e escrupuloso, depende o respeito de uns pelos outros; depende a salvaguarda dos direitos e dos deveres; depende a responsabilidade de cada um; depende, numa palavra, a decência da nossa vida em comum. Que os homens e as mulheres se respeitem por virtude ou por receio da justiça, é-me indiferente. O que quero é que se respeitem. E isso, só o direito e a justiça podem assegurar.

Tal como só o direito e a justiça podem obstar a que o poder abuse e a que os poderosos exagerem. Todos os poderes, sem excepção, tendem a crescer. Todos os poderosos, sem excepção, procuram mais. Todas as autoridades, sem excepção, se esforçam por aumentar e durar. Não conheço, na história, exemplo de Estado, partido, empresa ou organização que, voluntariamente, tenha querido limitar-se, reduzir ou distribuir o seu poder. Ora, os mais eficazes instrumentos de contenção do poder e dos poderosos são, uma vez mais, o direito e a justiça. A moral pode desempenhar um papel. Tal como a luta política. E a liberdade dos cidadãos. É certo. Mas são entidades desarmadas, quantas vezes impotentes! Com real eficácia, só conheço o direito e a justiça.

É possível, nas palavras que antecedem, detectar algum pessimismo. Ou uma visão muito insatisfeita com o estado da justiça em Portugal. É verdade. Há muitos anos, desde a fundação da democracia e desde o estabelecimento de uma ordem constitucional fundada na legitimidade, que se espera por um melhoramento sólido e considerável da justiça. O que não tem acontecido. Houve mudanças, mas foram poucas e lentas. Houve reformas, mas foram frágeis. Houve leis, mas foram excessivas em número e reduzidas em qualidade e eficácia. Muito se fez, dirão seguramente todos os que tiveram responsabilidades no sector. Não os desminto. Mas acrescento: muito menos do que precisávamos. Muito menos do que era necessário. A ponto de se ter a impressão de que a justiça, por não ter mercado, por não ser privatizável, por não produzir dinheiro, por não gerar publicidade, por não ser vistosa e por não ser um bem de consumo de massas, ficou para trás nas atenções dos legisladores dos governantes.

Quantas vezes se ouviu e ouve falar da crise da justiça? Parece que a justiça vive obrigatoriamente em crise. Já há mesmo quem diga que o estado normal da justiça é o de crise. Ou até quem negue simplesmente tal estado. A verdade, a meu ver, é que a justiça se desenvolveu menos, mais devagar e com mais imperícia do que outros sectores de vida colectiva. Adaptou-se tosca e lentamente à democracia, à integração europeia, à ascensão dos meios de comunicação de massa, ao mercado, à empresa capitalista, às novas tecnologias de informação e ao crescimento exponencial da litigância em Portugal.

Será necessário mencionar casos concretos? Creio que estão na mente de todos. As sucessivas alterações de códigos revelam uma instabilidade indiscutível. A fuga dos agentes económicos à resolução judicial dos seus conflitos é um sinal seguro de ineficiência. As risíveis vicissitudes do segredo de justiça são sinais indiscutíveis de desordem. As reformas falhadas, como, recentemente, a das férias judiciais, ou, antes, a da assistência judicial, são sinais de falta de perícia e de esforço legislativo guiado sobretudo pela política. A morosidade processual é de tal modo crónica que quase deixou de ser motivo de indignação. Os índices de demora, assim como as taxas de prescrição, altos em ambos os casos, revelam, de modo flagrante, uma ineficiência tal que põe em crise o fundamental direito à justiça. Alguns processos de investigação ficarão numa triste memória: nuns casos, avultam processos de interrogatório e de identificação discutíveis e condenáveis; noutros, levam-se a cabo processos de escuta, gravação e armazenamento de conversas telefónicas, próprios de países de opereta. A reorganização do mapa judicial, de que agora se fala com mais insistência, arrastou-se muito para além do aceitável em processos complexos como este.
Finalmente, estudos recentes mostraram vários fenómenos que merecem atenção. Na opinião pública, tem crescido a sensação de que existem duas justiças, a dos poderosos e a dos fracos. Como se têm avolumado os sentimentos de desconfiança dos magistrados. A qualidade da imagem pública do juiz tem-se degradado, ou porque é responsabilizado pelos defeitos do sistema; ou porque surgiram repetidos exemplos de sobranceria; ou porque certos gestos de cariz sindical lhe retiraram uma indispensável dignidade independente.

Temos de nos interrogar sobre a persistência de crises na justiça. Sobre as dificuldades de realizar reformas neste tão importante sector da vida colectiva. E sobre a passividade de tantos que, em teoria, têm a responsabilidade de zelar pelo bom funcionamento, pela constante melhoria e pela eficácia da justiça. Há anos que o tema me interessa. A mim e a tantos outros. E sei que não é fácil encontrar respostas satisfatórias. O assunto é realmente difícil.
A começar pelo facto de não ser simples definir o conceito de crise da justiça. A maior parte das opiniões publicadas refere-se-lhe frequentemente, mas cada um parece ter ideia diferente dos contornos dessa crise. E não esqueçamos que há também quem negue a simples existência de uma crise. Por definição, dizem alguns, a justiça está sempre em crise, em transe, em mudança e em transformação, fenómenos aliás que fazem parte da etimologia do sentido, se assim se pode dizer.
Para as necessidades desta exposição, aceitemos que a crise da justiça se reflecte na morosidade; numa relativa perda de confiança pública, o que leva a que em certos sectores se “fuja” aos mecanismos da justiça; na paralisia relativamente às mudanças; na deficiente definição de responsabilidades; na insuficiente relação de proximidade entre a justiça e as entidades democraticamente legítimas; na ausência de prestação de contas à sociedade; na instabilidade de algumas instituições indispensáveis à investigação e à instrução; e na dificuldade processual ou fundamental na investigação de certos domínios, como o da corrupção. Como se poderá deduzir deste breve elenco, um aspecto central desta crise reside, a meu ver, na relação entre a justiça e a política.

São difíceis as relações entre a justiça e a política. O legislador está pouco atento e raramente se apercebe das distinções entre funções. A voracidade dos partidos relativamente à Procuradoria-Geral de República é um sinal de mal-estar durável. As relações entre as duas magistraturas são frequentemente difíceis e o seu equilíbrio necessita de esclarecimento. O peso e o âmbito de competências da Procuradoria no sistema judicial português são por muitos considerados exagerados e há muito que se impõe uma revisão do seu estatuto. Mas os partidos políticos, o legislador e os executivos, parecem recear tal iniciativa ou preferem o imobilismo que pode eventualmente servir os interesses dos governos. A separação de carreiras das duas magistraturas, assim como a definição das respectivas autonomias, merecem um reexame, eventualmente uma revisão, mas quem tem o poder para o fazer parece preferir esquivar a dificuldade. As relações entre as magistraturas e a designada legitimidade democrática deveriam igualmente ser revistas, na procura de um reforço dessa ligação. Mas também aqui parece haver conformismo. Uns dirão que são as magistraturas a defender os seus privilégios, outros dirão que são o legislador e o executivo que são tímidos. A verdade é que ninguém dá sinais claros de querer debater e esclarecer tão sério problema. A independência dos magistrados, assim como a autonomia das grandes instituições judiciais, parece terem sido confundidas com autogestão. Este facto conduziu a uma indefinição das responsabilidades na área da justiça, situação que, na minha opinião, explica parte da falta de iniciativa reformadora ou, por outras palavras, parte da enorme dificuldade em reformar a justiça. A relativa passividade do Parlamento e a retracção dos ministros da justiça são sinais dessa falta de definição de responsabilidades. Houve mesmo já um ministro da justiça que, por causa da independência dos magistrados e da autonomia das instituições, declarou ser apenas “ministro das prisões e dos códigos”. É pouco, como se pode imaginar.

Será assim tão importante esta relação entre a justiça e a política? Não creio ser necessário argumentar longamente. A evidência é total. Da política dependem os códigos, os orçamentos, as leis, os recursos, os regulamentos e a organização. Quase tudo. Menos, espera-se, a competência para julgar e investigar. Além disso, e é esse o meu ponto, da política e da sociedade dependerá também a capacidade reformadora e modernizadora.

Tenho para mim que, deixado a si próprio, nenhum sistema social, administrativo ou político se reforma ou evolui favoravelmente. Pelo contrário, o que garante a evolução e a reforma são os impulsos externos. Na economia, é a concorrência. Na ciência, a abertura e o diálogo. Na política, a competição eleitoral. Na cultura, a emulação e a crítica. Na saúde e na educação, os estímulos podem ser de vária ordem, a abertura, a ciência e a concorrência. Em todos eles, indispensáveis são sempre a informação e o debate permanente na opinião pública. E na justiça? Eis uma questão interessante. Para a justiça, não se pode recomendar a concorrência, nem a competição. A justiça não é privatizável. A opinião pública tem pouco efeito, até porque a justiça, na nossa tradição continental, reveste formas majestáticas e distantes. A democracia directa, por exemplo através da eleição de magistrados, parece uma longínqua miragem e nem sequer se afigura como uma solução razoável. A ingerência directa das autoridades políticas está fora de questão, pois o passo seguinte seria a perda de independência dos magistrados. Quer isto dizer que só há, a meu ver, duas soluções. A primeira, a que mais força parece ter tido em Portugal, consiste em fazer com que o sistema de justiça seja o mais fechado possível, que não receba estímulos externos e que apenas tenha de prestar contas a si próprio ou às suas corporações. A segunda, que infelizmente se afigura pouco provável, é a que consiste em criar mecanismos de abertura que não ponham em perigo a independência dos magistrados, mas que abram o sistema, que o façam penetrar por impulsos externos e que o obriguem a prestar contas à sociedade. Uma alteração radical da composição dos Conselhos Superiores seria, por exemplo, um caminho. A presença periódica no Parlamento dos responsáveis pelos Conselhos Superiores, pelos Tribunais Supremos e pela Procuradoria-geral da República, seria também uma solução para a necessidade de prestação de contas perante uma entidade democraticamente legítima. Uma redefinição, igualmente radical, do segredo de justiça, seria outra via. Uma nova relação com a opinião pública, nomeadamente através da imprensa e da comunicação, seria outra.

É talvez ainda cedo para formarmos uma opinião fundamentada sobre o pacto assinado, a semana passada, entre os dois principais partidos parlamentares, a propósito da justiça e de algumas das reformas que se anunciam. Mas já é possível emitir algumas observações. Apesar de ser desfavorável à ideia de “pacto de regime”, podemos olhar para este acordo usando de uma velha figura jurídica: “a benefício de inventário”. Os acordos deste tipo, com esta ou outra designação, podem constituir uma perversão das tradições parlamentares. Ou configuram, muitas vezes, a impotência da maioria e a falta de carácter político da oposição. Mas, para que seja outra coisa e para que nos permita ter uma visão mais positiva do seu alcance, é necessário ver, caso a caso, os resultados legislativos desse acordo, assim como a gestão prática, administrativa, política e financeira que decorrerá do estipulado em tal acordo. Só nessa altura poderemos, em honestidade, avaliar a sua bondade e o seu desígnio.
Será que este acordo tem como objectivo, por exemplo, assegurar mais estabilidade e mais continuidade nas estruturas e na organização da investigação? Poder-se-á, a partir de agora, assistir a uma abertura das estruturas judiciais, de tal modo que a sociedade tenha mais influência na sua organização? É legítimo esperar que já o próximo orçamento de Estado traduza a relevante importância deste sector que, único, mereceu um acordo partidário inédito? Quer este pacto significar que o governo, o seu apoio parlamentar e até uma vasta maioria de deputados decidiram finalmente colocar a justiça no topo das suas prioridades e das suas preocupações? Poderá concluir-se que, finalmente, a assembleia legislativa vai assumir a plenitude das suas competências? É razoável alimentar a esperança de que, dentro de pouco tempo, veremos serem aprovadas as novas regras processuais que permitirão reduzir consideravelmente os prazos e diminuírem os atávicos atrasos da justiça portuguesa? Assistir-se-á a um esclarecimento das regras e da prática do segredo de justiça, de modo a estabelecer um novo equilíbrio entre as necessidades processuais e a salvaguarda dos direitos dos arguidos e dos assistentes, assim como as exigências de uma informação aberta e rigorosa?

Como se pode ver por esta breve lista de perguntas, qualquer avaliação fundamental, e não apenas política e partidária, do acordo parlamentar assinado pecará por prematura. Até o aspecto positivo que mais merece ser saudado, a previsão de provas públicas para o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e aos tribunais de Relação, deve esperar pela respectiva regulamentação e prática, a fim de ser melhor avaliado. Mas convêm não esquecer que matérias decisivas como o processo civil, a composição dos Conselhos Superiores e a redefinição da autonomia do Ministério Público ficaram fora do acordo. Não sabemos se apenas por impossibilidade de entendimento ou se estes temas não fazem parte das intenções do executivo e do legislador. Vamos, pois, esperar.

Mas considero um mau sinal o facto de os dois partidos não terem discutido ou não se terem entendido sobre um tema de especial relevo e grave urgência: o combate à corrupção política, autárquica, empresarial e desportiva. Este é um dos problemas mais candentes da actualidade, para o qual nem a justiça nem a política democrática têm sabido encontrar soluções. Ora, se há matéria para a qual se exige uma convergência de vários partidos, é justamente esta. Como creio que não se tratou de lapso, mas sim de gesto deliberado, lamento que tenha sido enviada uma mensagem à opinião pública a revelar menor preocupação com esta questão.

Creio, de qualquer modo, que este acordo não se destina a alcançar nenhum dos objectivos que, para a reforma da justiça, considero prioritários. O da necessidade de estabelecer mecanismos de prestação de contas. O da exigência de responsabilizar o legislador, o ministro e as máximas autoridades judiciais. E, finalmente, o de criar vínculos do sistema judicial às estruturas democráticas legítimas.

A este propósito, desejo esclarecer um ponto essencial. Não pretendo, com nenhuma das alusões feitas acima, que o sistema judicial se transforme em entidade directamente democrática, vulnerável às pulsões partidárias e à demagogia eleitoral. Tal como não desejo que as estruturas judiciais estejam cativas da luta sindical. Nem quero submeter a independência dos magistrados às funções políticas e partidárias. Pretendo, isso sim, que a justiça portuguesa se abra às influências e às necessidades da sociedade e preste contas, indirectamente, às entidades legítimas e representativas da sociedade e do soberano.

A verdade é que desde há trinta anos que se refere frequentemente a crise da justiça e a dificuldade em lhe dar solução. Também há trinta anos que os indicadores mais simples, sobretudo os que sublinham a morosidade, a prescrição, o atraso e a falta de produtividade, não registam melhoramente notável. Apesar de saber que as comparações nem sempre dão razão, não resisti a cotejar as reformas e os resultados deste sector com os de outros, como sejam, por exemplo, o da saúde e da educação. A comparação pode parecer atrevida, mas tem o mérito de obrigar à reflexão.

Tanto a saúde como a educação exibem uma mudança e um somatório de resultados muito mais impressionantes do que a justiça. Apesar de não serem mais fáceis, nem abrangerem menos pessoas, nem terem menos activos. Pelo contrário, aliás. O aumento da esperança de vida, a diminuição drástica da mortalidade infantil e materna, a redução das doenças contagiosas, as taxas de cobertura dos sistemas de prevenção e de saúde pública mostram o caminho feito e um indiscutível progresso, não desmentido pelas dificuldades ainda presentes. Na educação, o aumento das taxas de cobertura, o alargamento da rede, a expansão do sistema, o desaparecimento do analfabetismo juvenil e o desenvolvimento dos estudos avançados revelam, entre outros, uma notória mudança. É todavia verdade que, na educação, muito mais do que na saúde, a mediocridade dos resultados qualitativos quase oculta a imensidão da mudança e o êxito da expansão quantitativa. Mas esta última não pode ser negada.
Na justiça, não assistimos a uma mudança semelhante. Nem de perto, nem de longe. Numa nova sociedade onde se organizaram a democracia, os direitos dos cidadãos, o mercado, a economia capitalista, a integração europeia, o associativismo, a instrução, a imprensa e a informação livre, cresceram a litigância e os processos, assim como os números de magistrados judiciais e do ministério público, de oficiais de justiça e de advogados, mas não se assistiu a um melhoramento significativo da prontidão da justiça.

Ora, a justiça não sofreu, nestas décadas, dos males tradicionais nas sociedades em desenvolvimento: a falta de recursos financeiros, a falta de profissionais competentes, a ausência de estruturas de formação e a deficiência de outros recursos materiais. Nem sofreu, se assim se pode dizer, de falta de necessidade e de procura. Ou, se sofreu de alguns destes males, foi de modo proporcional ao dos sectores da saúde e da educação. Onde se poderá então encontrar a razão pela qual a justiça evoluiu, perante a sociedade, menos, menos bem e de modo mais deficiente?

A primeira razão, talvez a mais fácil de detectar, reside no âmago dos mecanismos democráticos. Por razões eleitorais, genuínas ou demagógicas, os políticos e as autoridades estão mais atentos às aspirações de saúde e de educação do que às de justiça. Mas isto não chega, até porque as aspirações à justiça são muitas vezes audíveis e as crises de confiança bem visíveis. Além disso, as necessidades de justiça não se limitam a momentos excepcionais da vida dos cidadãos, mas sim a toda a sua vida, na família, no trabalho, nas relações sociais, nas relações com o Estado, nas transacções, nos direitos, na cidadania e na liberdade.

A meu ver, as razões para esta evolução diferencial, tão desfavorável à justiça, residem noutros fenómenos. Em primeiro lugar, no carácter fechado do sistema. Os cidadãos, as autarquias, as empresas, as associações profissionais, as sociedades científicas e outros grupos de interesses não têm acesso aos corredores da justiça, não têm meios para a influenciar e para a fazer evoluir. Segundo, a justiça está entregue a si própria e às suas corporações, numa situação que ultrapassa, e muito, a legítima independência. Terceiro, a justiça não presta contas a ninguém, a não ser a si própria. Quarto, a justiça vive um sistema de responsabilidade circular que se caracteriza por uma ausência de responsabilidade clara e por uma transferência de culpas para o parceiro mais vizinho, o juiz, o magistrado do ministério público, o oficial de justiça, o advogado, o governo, os deputados e a administração Pública. Finalmente, o poder político é dúplice no seu comportamento: para ter o silêncio ou a cumplicidade da justiça, remete-se a uma espécie de passividade.

Os sistemas de saúde estão por definição abertos. Ou pelo menos mais abertos. Em boa parte, estão organizados em função de um princípio científico universalista e de uma tradição experimental, os das ciências da saúde, longe das doutrinas sociais e políticas. As instituições de saúde estão por vezes em competição. O recurso à medicina estrangeira pode ser frequente, pelo menos nas classes com capacidade económica. Existe uma medicina pública e uma medicina privada. As empresas, as autarquias, as associações, as sociedades científicas, os empregadores, os sindicatos, os bancos e as companhias de seguros interessam-se pelo modo como está organizada a saúde. O “ethos” científico que regula as actividades ligadas à medicina e à saúde faz com que as doutrinas nacionais e nacionalistas, o arbitrário dos programas corporativos e a “especificidade portuguesa” tenham pouca influência na organização da saúde.

Alguns destes traços são partilhados pelas actividades educativas, designadamente a concorrência e a abertura do sistema, assim como o interesse activo das entidades públicas e políticas. Infelizmente, o paralelismo não é total, o que talvez explique a mediocridade dos resultados qualitativos na educação. Com efeito, as doutrinas e as ideologias, como até as modas passageiras, têm uma influência decisiva no modo como as escolas se organizam. Mas isto não obstou a que a expansão do sistema fosse, nas últimas décadas, um êxito.

Sob este ponto de vista, a justiça parece mal colocada. A sua privatização, total ou parcial, não é recomendável, espero mesmo que seja impossível. Por motivos evidentes, não existe concorrência nem alternativa. As melhorias da justiça não parecem ter potencialidades eleitorais. E não existe um princípio científico que oriente a justiça. Quer isto dizer que a abertura do sistema de justiça, apesar de difícil concretização, é talvez o único caminho fértil. Abertura no sentido de influências externas e de envolvimento de pessoas e entidades que não pertençam às grandes corporações judiciais. Abertura ainda no relacionamento das instituições com a sociedade. E abertura também às fontes de legitimidade democrática e à prestação de contas.

Termino, dirigindo-me aos novos candidatos à magistratura. Gostaria de pensar que as minhas palavras são mais um incentivo do que um desencorajamento. Sempre, na história, a figura do magistrado, do juiz, foi objecto de admiração e de especial respeito. Também houve, é claro, juízes odiosos, corruptos, cúmplices dos poderosos e dos déspotas, de que o famoso “juiz de duas caras”, da iconografia medieval, é um exemplo. Mas, em última análise, o juiz sempre se distinguiu como aquele em quem o povo mais pode confiar. Uma espécie de última instância terrestre, o defensor da lei, o garante dos direitos de cada um, o protector dos fracos e o árbitro de conflitos. É esse o juiz que eu gostaria de ver regressar, plenamente, à nossa vida colectiva. Desejo-vos, para nosso bem, boa sorte no início de carreira.

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Centro de Estudos Judiciários - Abertura do curso de Auditores
Lisboa, Setembro de 2006.
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Este texto é uma extensão do publicado no Jacarandá [v. aqui] e no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

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