quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A felicidade das doenças

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Por Alice Vieira
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OS AUTOCARROS são o ponto de encontro de todas as mulheres doentes de Lisboa.
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Mesmo que anteriormente vendam saúde, chegam ali e zás!, ele é o reumático, ele é o fígado, ele são os rins, ele é o coração, ele são os nervos.
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Não há como uma bela doença (sobretudo se acompanhada por uma série de análises “que nunca dão nada, mas eu é que me sinto”) para estabelecer uma onda de solidariedade entre quem vai sentada e quem vai de pé. Não sei porquê, mas os homens nunca entram nesta anedota. Olham para elas em silêncio, às vezes encolhem os ombros, mas não mais do que isso. Ali, doença é património feminino.
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E os autocarros transformam-se numa espécie de sala de espera de um centro de saúde ambulante, onde o médico nunca chega e a consulta acaba por ser desmarcada, e cada uma desce na sua paragem — senão curada, pelo menos muito mais reconfortada.
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O pior é quando, no meio de toda a desgraça, surge alguém saudável - ou, pelo menos, relativamente saudável pois, como logo alguém se encarregará de explicar, saudável, saudável nunca se está.
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Foi o que aconteceu comigo, há dias, na carreira do 54. Eu não queria ser desmancha-prazeres, palavra que não queria, mas o dia tinha-me corrido bem, tinha conseguido passar uma manhã inteira sem e-mails apocalípticos sobre a crise, sem correntes tipo e-se-não-mandares-isto-a-80-amigos-engordas-20-quilos-a-tua-melhor-amiga-rouba-te-o-homem-e-o-Obama-apanha-um-balázio, encontrara um amigo que não via desde a minha juventude e me enchera de mimos — enfim, doenças era aquilo que nem me passava pela cabeça.
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De resto, talvez por ter vivido muitos anos entre gente mórbida e sempre à beira da morte (e que, evidentemente, morreu toda para lá dos 90), para quem o maior insulto era alguém dizer-lhes “está hoje com melhor cara!” - nunca tive paciência para quem passa a vida a lastimar-se.
E, não sendo eu sequer do género de meter conversa em autocarro ou táxi, dei por mim a dizer “muitas vezes as doenças estão é na nossa cabeça.”
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Para abreviar a história, e porque os caracteres a que tenho direito se estão a aproximar do limite, digo apenas que saí duas paragens antes, para a discussão não azedar o ambiente mais do que ele já estava: eu cometera o sacrilégio de abalar a profunda convicção de todas elas, de que só na infelicidade se pode ser feliz.
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E, se olhar matasse, apesar de toda a minha saúde, eu não tinha saído dali viva.

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«JN» de 24 de Outubro de 2008
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Este texto é uma extensão do publicado no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.