domingo, 5 de outubro de 2008

Os 50 anos da Televisão - Quando tudo começou

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Por António Barreto
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COMO EM TUDO NA VIDA, também a data verdadeira de início da televisão em Portugal é objecto de discussão. Para uns, foi em Setembro de 1956, quando, num perímetro reduzido à volta da Feira Popular, começaram as emissões experimentais em Lisboa. Ou em Dezembro do mesmo ano, com o segundo ciclo de experiências alargadas à cidade e arredores. Para outros, terá sido a 7 Março de 1957, data oficial das primeiras emissões “a valer”, com as grandes áreas de Lisboa e Porto já abrangidas. Mas ainda há a data legal, a da aprovação do decreto-lei que cria a RTP, em 1955. Assim como a de uma experiência feita no Porto, em 1956, por empresa comercial. Ou, finalmente, a data de chegada das imagens à minha terra, esta sim, efeméride real para tantos portugueses. É a data que eu prefiro. Foi em 1958.
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Apenas a cem quilómetros do Porto, Vila Real não ficava só para lá do Marão, ficava no fim do mundo. Para se ir de comboio até à “capital do Norte”, tinha de se passar primeiro pela Régua. Eram 25 quilómetros de via reduzida. As carruagens, muito estreitas, eram iguais às que víamos nos filmes do “Far West”. Por isso o comboio tinha a doce alcunha de “Texas”. Este demorava, ao longo de curvas apertadas do vale do Corgo, mais de uma hora para percorrer aquele curto trajecto. Depois, até ao Porto, eram duas a três horas de esperas e apeadeiros. Em alternativa, o carro ou a “carreira” tinham de percorrer as famosas “voltinhas do Marão”. Duas a três horas de enjoo, curvas e perigos. Não se ia ao Porto. Ninguém se deslocava ao Porto. Ia-se de viagem, o que era diferente. Levava-se mala, cesta e farnel. E garrafão. Mas, para a maior parte, essas viagens eram raras. Ora, havia outras necessidades, outras urgências. Assim, quando se precisava de alguma coisa da cidade, do Porto, documento oficial, renda ou medicamento difícil, era necessário recorrer ao “recoveiro”, um senhor que ia todos os dias de madrugada e regressava à noite com as encomendas que íamos, ansiosos, buscar à estação de caminho-de-ferro. Trás-os-Montes não ficava ali. Ficava longe.
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Três jornais locais, verdadeiras folhas de couve, faziam a crónica do lugar. “A Voz de Trás-os-Montes” (“A Voz de Trás”) pertencia à diocese, era impressa nas tipografias do seminário e sempre foi dirigido por um sacerdote. O “Vila-realense” era republicano, feito, do princípio ao fim, pelo senhor Heitor Matos, com a ajuda de um extraordinário amador, o José Rocha, e um cronista do outro mundo, o “Naralhas”, especialista em necrologia. O “Ordem Nova” era, obviamente, da União Nacional, estava em todo o sítio e ninguém o lia.
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As notícias importantes vinham do Porto. Quatro diários disputavam o mercado: o “Primeiro de Janeiro”, o “Comércio do Porto”, o “Jornal de Notícias” e o “Diário do Norte”. Custavam oito tostões, preço igual ao do café. Não parece, mas eram caros. A maior parte das pessoas que sabiam ler iam fazê-lo nos cafés ou nas associações. Os diários do Porto chegavam todos os dias, mas sem horas fixas: por vezes de manhã cedo, geralmente mais perto do meio-dia. Os jornais de Lisboa eram raros. Só chegavam ao fim da tarde ou no dia seguinte. Quase ninguém os tinha ou lia. Os meus amigos e eu íamos ler ao “Clube de Vila Real”, a associação da burguesia liberal da cidade e dos notáveis vagamente republicanos, simpatizantes dos Rotários. Ali nos deleitávamos com o “Diário de Notícias” e “ O Século” dos dias anteriores. Tínhamos 16 anos, líamos tudo e achávamos que Lisboa era o princípio do mundo. Os anúncios dos cinemas eram objecto de leitura atenta e inveja intensa. O exercício tinha o seu quê de masoquista: a maior parte dos filmes que acabavam de estrear em Lisboa (às vezes, no Porto) demoraria longos meses ou anos antes de chegar a Vila Real. Se chegassem.
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O Teatro Circo e o Cineteatro Avenida davam duas ou três sessões por semana. Abundavam os filmes portugueses, os de “cow boys”, os de aventuras (capa e espada e piratas) e alguns grandes dramas italianos, ditos de “faca e alguidar”. O grande herói era o Cantinflas, do mexicano Mário Moreno, que não sei se tinha, no resto do país, igual êxito. Aos seus filmes, por vezes repetidos no dia seguinte, acorriam a cidade e os arredores. Todas as classes sociais assistiam, conservando entre si, evidentemente, as devidas distâncias. Os preços dos bilhetes e a qualidade das cadeiras garantiam as convenientes fronteiras sociais: a 3ª plateia a 2$50, a 2ª a 5$00, a 1ª a 7$50, o balcão a 10$00 e o camarote a 30$00. Todos encontravam o seu lugar. Todos sabiam qual era o seu lugar...
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Teatro, “sério” ou “de revista”, era uma raridade absoluta, quase inexistente. Música, clássica ou ligeira, igualmente distante, com excepção de umas bandas, locais ou não, que passavam de vez em quando, designadamente nas romarias e nas “festas santas”: de Santo António, em Vila Real, da Nossa Senhora do Socorro, na Régua e da Senhora dos Remédios, em Lamego. Momento especial era o da passagem, de muito em muito longe, dos “Companheiros da Alegria”, de Igrejas Caeiro, “show” misto de comédia, música, variedades, concursos e publicidade e que literalmente fazia “casa cheia”. Tradição apreciada era a gala anual da “Academia” de Vila Real, pomposa designação que os estudantes finalistas do Liceu se tinham dado a si próprios. Além das festas, do baile, das ceias (com galinhas roubadas...) e dos cortejos do “Regadinho” (“Água leva o regadinho, Água leva o regador, Enquanto rega e não rega, Vou falar ao meu amor”), havia a récita do 1º de Dezembro: variedades, comédia, um entremez, cenas de revista com “compère” e muita crítica local, tudo evidentemente censurado. Não havia um lugar vago. Finalistas e suas famílias tinham os seus primeiros dias de glória.
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Havia, evidentemente, a rádio, assim nomeada pelo povo, mas que os senhores chamavam telefonia. Antes dos “transístores”, nem toda a gente tinha. Eram mesmo poucos os que possuíam um aparelho. Os mais pobres, os trabalhadores e a gente do campo, não tinham de todo. A rádio não era única. A Emissora Nacional, a Renascença, o Rádio Clube e os Emissores Norte Reunidos partilhavam a antena. A que se acrescentava uma formidável Rádio Alto Douro, mais amadora do que profissional, de uma companhia privada que emitia a partir da Régua durante meia dúzia de horas por dia e tomava conta da vida local. Era nesta rádio que se ofereciam e ouviam os “discos pedidos”, princípio ou confirmação de tantos namoros. As rádios nacionais públicas serviam para as notícias. As privadas para a música ligeira e sobretudo para o “folhetim radiofónico”, novela interminável que, a seguir à hora de almoço, mobilizava as donas de casa. A partir de certo momento, já nem se dizia “folhetim”, mas simplesmente “O Tide”, que era o nome do anunciante ou do patrocinador.
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A “vida social” era previsível. Pertencia sobretudo aos homens. Estes frequentavam os cafés depois de almoço, ao fim da tarde e depois de jantar. Cafés e pastelarias estavam separados por famílias, classes sociais, afinidades políticas e outros princípios tribais. A Gomes, a Brasileira, o Clube, o Excelsior, a Pompeia e o Queirós, além de outros, dividiam entre si os frequentadores que lhes eram mais fiéis do que às mulheres. Senhoras sozinhas nas ruas ou nos espaços públicos, só as das classes altas e às horas decentes do chá. Ou nas compras, evidentemente. Muito poucas, as mais ousadas, saíam à noite com os maridos. Desde que o tempo ficava doce ou quente, o “passeio na avenida” era obrigatório. Os rapazes tinham um pouco mais de folga nas horas de regresso a casa. Os pais saíam em família, com as filhas pela mão. Davam voltas à avenida Carvalho Araújo, pelos passeios dos canteiros centrais. As famílias cumprimentavam-se, os homens levantavam os chapéus e as senhoras trocavam as últimas informações. Os que as tinham mostravam a suas filhas em idade casadoira. A exibição começava pouco depois das oito e meia, acabava antes das dez. Às onze da noite, a cidade estava deserta. Sobravam uns jovens mais estouvados, uns professores do liceu mais novos, alguns advogados ou médicos que ficavam até tarde na intriga. E uns bêbedos. Aqui e ali, a começar pelo Clube de Vila Real, jogava-se a dinheiro, para grande desgosto de muitas “senhoras de sociedade” que, apesar disso, preferiam este passatempo dos maridos a outros divertimentos inconfessáveis.
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O culto religioso e as festas ocupavam grande parte do espaço público e do calendário. A começar pelas missas dominicais. Também estavam divididas, não só por bairros, mas sobretudo por classe social. A mais importante era a do meio-dia, na Sé. Todas as pessoas importantes ali vinham. Mulheres à frente, homens atrás. Ir “ver a saída da missa” era obrigatório na agenda: intrigar, trocar impressões ou sorrisos, mostrar-se, ver as raparigas e exibir vestidos. Depois, eram numerosas as procissões, os cortejos, as novenas e toda a liturgia da Páscoa e do Natal. Finalmente, as festas, as romarias e umas vagas peregrinações a santuários vizinhos. Era também à religião que as mulheres, com algum tempo livre, dedicavam as suas energias: Acção Católica, Conferência de São Vicente de Paula, Liga Missionária e outras.
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As organizações políticas do regime tinham pindérica existência. A Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa e a União Nacional limitavam-se ao nome e a umas actividades destinadas a fazer prova de vida, não necessariamente de actividade. Mostravam-se quando a cidade era visitada por um membro do governo ou, de quatro em quatro anos, quando se organizava uma reunião eleitoral chefiada por um ministro. Fazer política não era bem visto. E fazer a política do regime não era fazer política. Tempos estranhos...
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A educação distinguia Vila Real. Era a única cidade do distrito com direito a ter um Liceu completo (até ao 7º ano, hoje 12º). Era o Liceu Camilo Castelo Branco, baptizado pelo Estado Novo como Liceu Nacional de Vila Real. Era, curiosamente, misto, o que raramente acontecia em Lisboa e no Porto. Mas os recreios eram separados. Tinha aquecimento central a funcionar e uma confortável biblioteca, na qual, ao fundo à direita, um armário fechado à chave encerrava os livros proibidos e os não recomendados. Estavam ali, por exemplo, livros de poesia de António Botto, Guerra Junqueiro e José Régio, o livro de Egas Moniz sobre a educação sexual, “O crime do Padre Amaro” e “A relíquia” de Eça de Queirós e até a “História da literatura portuguesa” de António José Saraiva e Óscar Lopes. Como estava um pequeno livro de José João Cochofel intitulado “Iniciação estética”, pela simples razão de que tinha na capa uma mulher nua, neste caso a reprodução de uma senhora de P. P. Rubens! Em 1958, todas as turmas de ciências e letras do último ano do liceu eram frequentadas por cerca de 50 rapazes e raparigas, tantos eram os que, em todo o distrito, conseguiam terminar os estudos secundários! Muito antes da Universidade, já a escola secundária tinha feito o desbaste da segregação social. Além do Liceu, que assim pertencia à elite, havia a escola comercial e industrial, duas ou três escolas primárias e outros tantos “colégios” de raparigas, onde residiam as filhas das famílias mais abastadas do distrito. Mais de metade da população do distrito era analfabeta, o que era mais ou menos igual a todos os distritos do interior do país.
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Os mais cultos, ou com dinheiro, ou com importância, critérios nem sempre coincidentes, tinham duas ou três vezes por ano um momento alto: os concertos da Pró Arte. Vinham, do Porto ou de Lisboa, dois ou três solistas (nunca falhavam o piano e o violino) dar uma récita. Como não havia sala adequada, tinha de ser no ginásio do Liceu, por entre espaldares e plintos arrumados a um canto. As senhoras vestiam-se a preceito. Foi nesses concertos que vi, pela primeira vez, um ou outro senhor de “smoking” ou de casaco branco e calça preta. Como nos filmes...
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Apesar da doçura aparente destes costumes, em Vila Real, nos anos cinquenta, sufocava-se. Sabia-se pouco. E tarde. Conhecia-se pouco. E mal. O divertimento era raro e caro. A informação escassa. A cultura inexistente. As novidades velhas. Mesmo assim, Vila Real era privilegiada. Outras pequenas cidades e vilas (Chaves, Régua, Bragança, Mirandela, Alijó, Sabrosa, Murça, Valpaços...) e todas as aldeias estavam ainda, se tal é possível imaginar, muito mais atrasadas, muito mais distantes.
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Foi neste ambiente que se começou a falar de televisão, desde 1957, logo que foi uma promessa. Foi aqui que a televisão chegou em 1958. Já era, antes disso, assunto de todas as conversas. Uns poucos tinham visto. Os jornais do Porto escreviam sobre o tema e publicavam os programas do dia. Os primeiros “Guias” de televisão eram vendidos nos quiosques. E nós líamos, como se servisse para qualquer coisa! As emissões começaram por chegar em más condições, situação que durou um ou dois anos. Esse período, de certo modo provisório, foi horrível. Mas a má qualidade e a instabilidade das imagens, com “areia”, interferências e interrupções repetidas, não eram suficientes para fazer desistir quem queria ver. Só quando, em 1962, foi reforçado o retransmissor da Serra do Marão, é que as imagens passaram a ser excelentes. Duas casas vendiam aparelhos de televisão. O Dionísio, ou Casa dos Rádios, de Dionísio Rodrigues da Silva, e a Rádio Patinhas. Foi no Dionísio que vi a primeira emissão no dia em que chegou. O anúncio vinha sendo feito durante semanas com cartazes e aparelhos nas montras. Os comerciantes queriam vender aparelhos, mas quase ninguém comprava. Ou porque queriam ver primeiro, ou porque, razão preponderante, não tinham dinheiro suficiente. A verdade é que eram caros, muito caros. Como cara era a licença que tinha de se pagar, enquanto se não descobria o método, depois generalizado, de fugir ao pagamento da taxa. Foram os cafés e as associações que rapidamente descobriram este meio de atrair clientes.
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No dia primeiro, a emissão estava anunciada para as oito e meia. Desde as sete que, no Largo da Capela Nova, diante do Dionísio, se começaram a juntar pessoas. Alguns já tinham visto, no Porto, mas eram poucos. Mostravam evidentemente a superioridade dos que conhecem. E diziam maravilhas, para inveja dos que não tinham ainda tido a oportunidade. Mas também recordo um que sorriu com desdém, passou ao lado e murmurou qualquer coisa que acabava com um sabido “... Não é novidade nenhuma”!
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Eu tinha quinze anos e sentia que era um dia importante da minha vida. Durante semanas, antes, não se falava de outra coisa. As obras de construção da antena da serra do Marão eram seguidas pelos Vila-realenses como se fosse melhoramento essencial. Havia gente que fazia umas dezenas de quilómetros para se assegurarem pessoalmente de que as obras corriam bem e de que os prazos seriam cumpridos. Nunca, com a água ou a electricidade, se tinha tanto falado ou esperado por uma obra pública. Talvez só no século XIX, quando Emílio Biel (o grande fotógrafo e comerciante alemão do Porto) fez, em Vila Real, a primeira experiência do país de iluminação eléctrica pública. Nos finais da década de cinquenta, a maior parte das casas da cidade já tinha electricidade, mas, à volta, nas aldeias, ainda a maioria dela estava privada. No país inteiro, quase dois terços dos agregados familiares não tinham electricidade em casa. Mesmo que quisessem ou pudessem ter televisão, tal não era possível.
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Oito ou nove horas da noite. Juntei-me à pequena multidão que começava a formar-se. A praça estava cheia. Parecia que toda a cidade se tinha despejado ali. Havia pessoas que olhavam há mais de meia hora para a montra onde dois aparelhos mostravam a mira! Cá fora, no andar de cima, na varanda e virado para a rua estava o maior aparelho de todos. Na praça, murmurava-se, “davam-se palpites” e já se faziam críticas ao que nunca se tinha visto! “É a preto e branco”, resmungava um. “É muito pequeno”, desdenhava outro.
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Quando o ecrã começou a animar-se, com o símbolo da RTP e a música de abertura, a praça agitou-se. Mal apareceu a locutora, uma salva de palmas saudou-a. Alguns pediam silêncio, mas não o obtinham. Todos queriam ouvir, mas ouvia-se mal. O som era fraco e o murmurinho persistente. Mesmo assim, as pessoas ficaram ali à espera, a ver tudo. Resumo do programa, música, notícias e, se bem me lembro, uma peça de teatro. Era tarde quando os últimos deixaram a praça e foram para casa. Nessa noite, a vida em Vila Real mudara.
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Nunca esquecerei esse momento. De repente, era possível ver mais longe. O facto, percebi depois, não ajudava a querer ficar em Vila Real. Pelo contrário, aguçou o apetite por partir. Para ver “ao vivo” o que passava no ecrã. Mas, nos primeiros tempos, parecia que ajudava a respirar. Também não esquecerei esse dia por causa de um episódio singular. Ao fim de alguns minutos, depois de a emissão ter começado, senti que me batiam no ombro. Era alguém atrás de mim. Perguntava-me: “O que é? O que é que se vê?”. Achei a questão insólita. Respondi apressadamente, estava mais interessado no que se passava diante de mim. O senhor insistia: “Mas está gente dentro de uma caixa pequena?”. Só então percebi que o senhor era cego. Passei os minutos seguintes a explicar a um cego o que era ver televisão! Nunca saberei como me desempenhei da tarefa. Ele ouvia com um sorriso triste.
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Em pouco tempo, os horários das famílias foram alterados. Como demorou muito a haver televisão em casa, a grande maioria dos habitantes via em locais públicos. Os cafés foram os primeiros a perceber o negócio. Prepararam um espaço para o efeito. Os que o não tinham instalaram simplesmente o aparelho na sala única. A Gomes, a Pompeia, a Brasileira e até o Acácio da taberna (onde eu aprendera a jogar bilhar e a fumar...) estiveram entre os pioneiros. Passou a jantar-se mais cedo, pois as pessoas queriam já estar diante dos aparelhos por volta das oito e meia. Para os locais públicos, vinham famílias inteiras, pais, filhos, avós e netos. Não demorou muito até que as associações e outras instituições descobrissem a solução para os seus problemas, seja o da falta de receitas, seja o da diminuta participação dos sócios. O Grémio do comércio, o Sindicato dos escritórios, o Clube de Vila Real, as associações recreativas, o clube de futebol e a Acção Católica compraram aparelhos, prepararam as respectivas salas e passaram a abrir à noite. Os “resistentes”, uns cafés que não se actualizaram logo, depressa perceberam que tinham de seguir a onda. Poucos meses depois de ter chegado, a televisão ocupava as noites dos Vila-realenses que se espalhavam pelas instituições ou pelos cafés da sua preferência. De vez em quando, uma família desaparecia destas sessões públicas. Ficava a saber-se que tinha dinheiro e acabara de comprar o seu aparelho. Foram precisos muitos anos até que a maioria das habitações tivesse a sua televisão familiar.
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A chegada da televisão mudou os horários. Mudou a vida em família. Mudou sobretudo as conversas do dia seguinte. Nas escolas, no Liceu, nos empregos, nos cafés e nas ruas falava-se do que se tinha visto na véspera. A comunidade local enriqueceu-se com assuntos vindos de fora. Os concursos, as charlas, as notícias, as peças de teatro, as variedades e o desporto passaram a fazer parte do quotidiano. Não pensávamos nisso, mas era assim em todo o país. Os heróis contemporâneos, as modas, os modelos e os padrões começaram a ser nacionais. Fátima ganhou as suas credenciais nacionais e, mais tarde, internacionais. O Benfica, cujos grandes triunfos europeus surgem poucos anos depois de iniciada a televisão, consagrou-se, por essa via, como o principal clube nacional. Mais do que pela escola, a que muitos nunca tinham ido, é pela televisão que muitas pessoas se sentem efectivamente parte de uma comunidade nacional. Ou antes, como disse Martin Scorsese, noutro contexto, a comunidade transformou-se em sociedade.
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Muito depressa surgiram novos nomes e novas caras de que se falava. A Maria Helena (Varela Santos), o Gomes Ferreira, a Vera Lagoa (então Maria Armanda Falcão), a Maria Leonor, o Fialho Gouveia, o Henrique Mendes e tantos outros transformaram-se em referências de todos os dias. Não passaram a fazer parte da família, como por vezes se exagera, mas eram “lá de casa”. Com alguma inocência e sem a coscuvilhice de hoje, o primeiro “guia” de televisão acrescentava pormenores sobre as suas vidas. Os cantores e os actores passaram a ter rosto. O teatro e as variedades tiveram êxito imediato. Os concursos, com menção especial para o “Quem sabe, sabe”, igualmente. Mas também, estranhamente para os padrões contemporâneos, programas “sérios”, como as “Conversas de teatro” do António Pedro, as “Charlas linguísticas” do Padre Raul Machado ou as histórias e os poemas declamados pelo João Villaret. E até os programas especializados, como a culinária de Maria de Lurdes Modesto e a agricultura de Sousa Veloso, eram vistos por quase toda a gente. Não demorou muito tempo até que se vissem nas ruas senhoras vestidas como as locutoras e homens com gravatas iguais às dos apresentadores. Os produtos publicitados na televisão passaram imediatamente a “best sellers” nas mercearias e nas drogarias, dado ainda não haver supermercados. Qualquer livro mencionado na televisão desaparecia no dia seguinte das duas livrarias da cidade. Para muitos portugueses, foi também esta a primeira oportunidade para conhecerem a cara de Salazar, de que apenas conheciam, se fossem alfabetos, o retrato sem data nem tempo afixado nas paredes das escolas.
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Quando aparecem os primeiros programas estrangeiros, como “O homem invisível”, “Bonanza” ou “As aventuras de Robin dos bosques”, o entusiasmo cresceu imediatamente. A curiosidade era enorme. A técnica e o conteúdo daqueles filmes pareciam muito mais avançados e divertidos do que a produção nacional. Curiosamente, os filmes e as séries não eram dobrados. As legendas faziam a tradução. O primeiro problema, imediato, era o de, nos cafés e nas associações, arranjar lugar suficientemente perto do aparelho para poder ler as letras pequenas. Muitos iam uma hora antes do grande programa da noite “para marcar lugar”. Havia mesmo os que, para esse efeito, mandavam os filhos à frente. Mais grave era o problema dos analfabetos. Que muitos eram. Nos primeiros tempos, nem esse facto foi bastante para demover os interessados, que não desistiam. Ou pediam aos vizinhos para ir lendo e traduzindo, o que criava grande desconforto na sala, ou simplesmente seguiam as imagens e faziam por compreender. A televisão portuguesa optou, desde o início, por não dar a todos os meios de compreensão. Com quarenta por cento de analfabetos no país e quase sessenta nos distritos rurais, o regime não quis que a televisão mostrasse tudo aos analfabetos e aos mais pobres. Para esses, bastava-lhes a produção nacional. Só muito mais tarde, com os programas infantis, começaram a aparecer emissões dobradas.
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A euforia dos primeiros tempos de televisão ajudou talvez a esquecer muita coisa, sobretudo as deficiências de informação. A censura, na televisão, não parecia pior nem melhor do que nos jornais ou na rádio. Mas o valor acrescentado da imagem e do divertimento quase sugeria mais liberdade. Os desenganos vieram depressa. De 1958 a 1960, duas histórias graves, a do General Humberto Delgado e a do Bispo do Porto, passaram ao lado da televisão. Ou a televisão à distância delas. Já a fuga dos comunistas (entre os quais Álvaro Cunhal) da cadeia de Peniche, em Janeiro de 1960, mereceu notícia nos ecrãs. Mas esta foi dada, em tom grave e policial, no fim das notícias, a que foi acrescentado um apelo para que todos os que algo soubessem ou vissem imediatamente denunciassem à polícia. Sem grandes resultados, pelos vistos.
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Pior ainda foram os anos seguintes. Sobretudo 1961. O início da guerra em Angola, o assalto ao Santa Maria e a queda de Goa tiveram, da televisão, o tratamento brutal da informação do regime. Os acontecimentos de Angola, em particular os verdadeiros massacres perpetrados por terroristas no Norte da colónia, ainda serviram para comover a população. Segundo fontes britânicas, terão sido assassinados 1.400 colonos e 11.000 angolanos. Os actos tinham sido de tal modo bárbaros, que o regime não viu dificuldades em usar as informações e as notícias em proveito próprio. A análise era a do governo. A discussão não existia. Mas informação houve, ainda por cima feita no local pelos jornalistas e operadores que, por coincidência, lá se encontravam. O assalto ao vapor Santa Maria, filmado por operadores da RTP, passou quase escondido, excepto no que poderia igualmente mostrar Portugal e Salazar como vítimas do estrangeiro. Já o regresso do navio a Lisboa foi mostrado com festa e glória. Quando chegou a invasão de Goa pelos exércitos indianos, também a mão do governo e a tesoura da censura fizeram o necessário para ocultar. Toda a demagogia foi usada. Durante dois ou três dias, sem imagens (nem sequer compradas às televisões estrangeiras), a televisão limitou-se a ocultar, mentir e passar sob silêncio, conforme as circunstâncias. A televisão, a rádio e os jornais falavam de “resistência heróica” e de “centenas de mortos”, mesmo depois de se saber que não era nada disso.
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Nesse mesmo ano, tinha também havido eleições para a Assembleia Nacional. O acesso da oposição à televisão era simplesmente nulo. Aquela acabaria, mais uma vez, por desistir de ir às urnas. Discussão e debates eleitorais eram entidades desconhecidas pela televisão. Este ano de 1961 termina aliás por outro episódio invulgar para a vida política portuguesa, que deixou definitivamente, neste ano, de ser “pacata”: a 31 de Dezembro, ocorreu a tentativa de revolta iniciada pelo assalto ao quartel de Beja. No incidente, morreu o Subsecretário de Estado do Exército. A televisão deu a notícia, o chefe de Estado a ela se referiu na sua mensagem de Ano Novo, o facto foi aproveitado o melhor possível pela propaganda. Ainda nesse ano, o primeiro homem no espaço, o então soviético Iuri Gagarine, passou quase desapercebido. Era irritante que o homem fosse soviético. A fazer lembrar, uns anos antes, em 1957, aquele professor e académico que, diante do primeiro “Sputnik” igualmente soviético, declarou simplesmente que “não era possível”! Esse ano de 1961 foi, para quem ainda as tinha, o fim das ilusões. Nesse ano, a televisão portuguesa perdeu definitivamente a inocência.
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Voltemos aos anos da fundação. Consta que Salazar tinha dúvidas, do que não há evidência. E que Marcelo Caetano era o grande defensor, o que está demonstrado. De qualquer maneira, o regime, entre 1956 e 1960, sentia-se seguro. Com as excepções dos casos de Humberto Delgado e do Bispo do Porto, que deixarão sequelas para mais tarde, a vida política, financeira e económica parecia tranquila. Estavam longe os anos difíceis do pós-guerra, quando se chegou a pensar que, com a vitória dos aliados, as ditaduras ibéricas iriam também desaparecer. Com o aprofundamento dos conflitos e da rivalidade entre Leste e Oeste, o regime de Salazar é plenamente reconhecido pelas potências, pelos países democráticos do Ocidente e pela comunidade internacional. Portugal é admitido na NATO (ao contrário da Espanha), nas Nações Unidas, no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional. No fim da década, Portugal é um dos fundadores da EFTA, Associação Europeia de Comércio Livre.
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Vivia-se um ponto alto do regime. Não só externamente, como também no plano nacional. Em 1956, tinha-se criado a Fundação Calouste Gulbenkian, cuja formidável acção se começou logo a sentir. Havia dinheiro, o Estado tinha as suas finanças de boa saúde. Fazem-se esforços por criar políticas económicas e de desenvolvimento mais consistentes. Surgem os Planos de Fomento. Constroem-se barragens e estradas. Lançam-se obras de infra-estrutura e animam-se algumas indústrias de base. De tudo isso, a televisão faz-se testemunha, elevando a propaganda do regime a níveis inéditos. A RTP parecia ser o sinal mais visível de um novo edifício. A euforia inicial da televisão não era apenas a que resultava deste novo meio de comunicação e de divertimento, era também a tradução de um clima geral. Que foi de pouca dura. De 1960 a 1962, as turbulências políticas internas, as manifestações operárias, os movimentos estudantis, a guerra em Angola e a perda de Goa marcam o fim de um período maior do regime. E o princípio das grandes perturbações que vão durar alguns anos.
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Mas tratava-se também de um momento charneira, entre o país fechado e a sociedade aberta que sub-repticiamente se preparava. O crescimento económico anunciava-se vigoroso. A emigração para a Europa começou, assim como turismo de estrangeiros em Portugal. Uma vaga de industrialização, alimentada em grande parte por investimentos estrangeiros, animou a economia. As migrações dos campos para as cidades aceleram. Uma nova sociedade, urbana e industrial, começou a surgir. As classes médias cresceram mais rapidamente. Na economia e na sociedade vivia-se um novo clima. Só a política resistia. A guerra colonial vai dominar os anos seguintes. A televisão moderniza-se, desenvolve-se o grande divertimento, surgem os “Festivais da canção”, os “Jogos sem fronteiras” e outros programas que atraíam grandes audiências. Mas a censura resistia. Depois da morte de Salazar, Caetano tentou modernizar ou arejar a vida pública. Ele próprio, entusiasta desde sempre com a televisão, utilizou-a o mais possível e inaugurou, também através da televisão, os contactos “directos” com a população. Mas as pressões liberais eram demasiadas. A vontade de liberdade também. Mais do que isso, a guerra iria liquidar o regime, depois de ter afastado qualquer hipótese de liberalização real.
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A televisão portuguesa desempenhou papel importante neste processo de mudança. Tanto na abertura dos costumes, como no fechamento da política. Tanto no estímulo à curiosidade, como na propaganda. Tanto no conhecimento, como na manipulação. A RTP não foi só observadora, registo e veículo, foi também parte integrante do Estado Novo. Como o foi, depois, da revolução, da contra-revolução e da democracia. Tal como em todos os países europeus, a televisão era do Estado e estava na dependência do poder político. Se este não era democrático, a televisão também o não era. Para o melhor e o pior, a televisão traduz o regime político e a sociedade em que vive. Pode ser melhor, pode procurar elevar os padrões de vida colectiva, como pode ser semelhante, ou mesmo contribuir para o declínio cultural dos cidadãos. Por isso é grande o seu poder e é vasta a sua influência. Talvez não tanto quanto se pensa, mas de qualquer maneira “apetecível”. Por isso, os poderes políticos conhecidos em Portugal, nestes últimos cinquenta anos, tudo fizeram por a utilizar. Sem excepção. Os autoritários, os revolucionários, os contra-revolucionários e os democratas. E, dentro destes, todos os partidos com acesso ao governo fizeram o necessário por se assegurar o domínio ou a conformidade da televisão. Os dirigentes políticos e os governantes parecem ter uma confiança ilimitada na capacidade da televisão. Para moldar as consciências? Para formar adeptos? Para evitar a voz dos outros, dos opositores? Ou simplesmente para publicitar e ampliar a sua acção? Verdade é que nenhum poder político resistiu a tentar governar e usar a televisão pública, ou seduzir e conquistar a televisão privada.
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Discute-se hoje, por toda a parte, a autonomia, a independência ou o pluralismo das estações de televisão. Tanto das públicas, tuteladas pelo poder político, como das privadas, dependentes do poder económico dos proprietários e da publicidade. Mas não se duvida de que alguma dependência exista, tanto num caso como noutro. A discussão é sobre a compatibilidade entre essas dependências e outros valores, como os da autonomia, da criatividade, da crítica e do pluralismo. A discussão é interminável e o debate permanente pode contribuir para se melhorar o serviço que as televisões prestam aos cidadãos.
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A televisão é, por excelência, a comunicação da sociedade de consumo, da política igualitária, da cultura de massas, do “nivelamento” cultural e da homogeneização social e cultural. O que não quer dizer que os regimes autoritários não tenham utilizado intensamente (não utilizem ainda...) a televisão. Estes últimos, de comum com os regimes democráticos, têm os factores de homogeneização e da cultura de massas. Os novos tempos que se avizinham e que prometem, por via da tecnologia, novos modelos e novas faculdades ilimitadas, poderão mudar os dados actuais do problema. Mas ainda é cedo. Por enquanto, sabe-se que a televisão “aristocrática”, de grande qualidade, do património cultural, das vanguardas artísticas e culturais, é uma televisão socialmente desigual. Mas, do ponto de vista dos padrões estéticos e culturais, seguramente “melhor” do que a televisão de massas. Esta televisão, que correspondia aos sonhos iniciais de “elevar os padrões culturais dos cidadãos”, deu lugar a uma televisão de massas, certamente mais “democrática”. Com mercado, concorrência e publicidade, a televisão de “alta qualidade” está praticamente condenada. Só a televisão digital ou por cabo e todas as suas potencialidades poderão salvar ou ressuscitar uma televisão de qualidade. A resolução desta contradição, entre democracia e cultura, não se anuncia para breve. Nem em Portugal, nem no resto do mundo.
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NOTA 1: Este texto foi publicado no volume comemorativo dos 50 anos da RTP (2007), assim como em brochura autónoma editada pelo Museu municipal de Vila Real (2008).
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NOTA 2: Este post é uma extensão dos que estão no Sorumbático [aqui] e no Jacarandá [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.