domingo, 5 de outubro de 2008

A vozearia

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Por Nuno Brederode Santos
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AO MAIS INADIVINHÁVEL INDÍCIO de que o Presidente da República vai proclamar que o mundo é azul, Manuela Ferreira Leite antecipar-se-á, declarando, sem a propósito visível, que o mundo é azul e que há que impedir o Governo de o tornar cor-de-rosa.
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No dia seguinte, porém, Luís Filipe Menezes escreverá que o mundo é redondo e que só uma liderança sem alma nem rumo pode dar mais relevância à cor do que à forma. Acorrerá então António Borges, dizendo, em entrevista-surpresa, que é ao eleitorado que cabe decidir a cor do mundo, mas que todos os sinais da economia global apontam para que os povos o desejem azul. Passos Coelho convocará a sua Plataforma e notificará as gravatas de seda presentes de que toda a realidade é mutável e que a cor verde deve começar a ser observada com crescente atenção. Na TSF, Santana Lopes explicará que decretar o mundo azul é um exercício aventureiro, sobretudo quando ainda nem se sabe o pensamento de Cavaco na matéria. No Porto, Marco António Costa promoverá à pressa um ajuntamento a que chamará distrital, concluindo que, na opinião unânime desse órgão, o que do mundo interessa é a forma, e não a cor, pelo que a oposição do PSD devia fazer-se no sentido de impedir o Governo socialista de tornar o mundo plano. Uma hora mais tarde, Rui Rio dirá nem ter tido conhecimento da reunião e Miguel Veiga responderá à Lusa que não se deixa envolver em garotices. Carlos Carreiras emitirá um comunicado explicitando que o problema da cor do mundo não existe, porque Lisboa ainda não se pronunciou sobre ele. E, à saída de um jantar no Hotel do Guincho, António Capucho dirá aos jornalistas que tem "obra para fazer" e não "tem tempo para madurezas". Na SIC Notícias, Ângelo Correia classificará de "precipitada e leviana" a declaração da líder e revelará ser sua convicção pessoal que, uma vez bem ponderado o assunto, a cor do mundo andará entre o verde e o azul-marinho. Carlos Coelho invocará a extrema complexidade da matéria para afirmar que o partido não terá posição sobre ela até à Universidade de Verão de 2009. Algures no barlavento algarvio, Mendes Bota sentenciará que não faz sentido pronunciarem-se sobre a cor do mundo enquanto se não promover uma experiência-piloto no Algarve para apurar se ele é plano ou redondo. Esta declaração merecerá de Macário Correia, em Tavira, o comentário: "Não vejo interesse em pronunciar-me sobre as opiniões pessoais de Mendes Bota." Numa festança improvisada no Funchal, Alberto João Jardim, após denunciar à humanidade que se está nas tintas para os colonizadores do Continente, proclamará que a escolha da cor do mundo é da competência e da responsabilidade exclusivas da líder do partido; e que depois, lá para fins de Março, se discutirá se a cor foi bem ou mal escolhida, extraindo-se desse facto as devidas ilações. Correrão rumores de que, em Ponta Delgada, Costa Neves terá querido dizer alguma coisa.
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O PSD está em reflexão. É mesmo a única entidade reflexiva que reflecte melhor no alarido litigante e na confusão dispersiva do que no sossego de pedra de Rodin. O seu método não é o do diálogo prévio, num esforço centrípeto para atenuar as divergências, mas sim o de as sujeitar ao efeito centrífugo da gritaria desordenada de todos os que são (e até de todos os que se julgam) caciques de qualquer coisa, por pequenina que seja. Há muitos modos de assegurar a base agregadora de qualquer associação, mas o PSD não descobre nenhuma. Após a partida de Durão Barroso, experimentou Santana Lopes, Marques Mendes e Menezes. Muitos pensaram - eu também - que só o baronato mais urbano, empresarial e cavaquista poderia já restabelecer a indispensável coesão. Cruel engano. Na hora da verdade, um deserto de disponibilidades e capacidades obrigou a recorrer a uma líder relutante por temperamento, dispersiva nos interesses, omissiva na estratégia e ferida no currículo. A qual, como aqueles seus antecessores, entre tropeçar nos próprios erros e andar a fugir às ciladas dos seus rivais internos, não consegue correr os cem metros em linha recta nos quais o eleitorado vislumbra um caminho e entrevê um objectivo. O recente - e, aliás, sereno - episódio da ida a Belém para ouvir o Presidente sobre o Kosovo ilustra muito mais o que Cavaco pode fazer com o PSD do que o respectivo vice- versa. Até o eventual propósito de alardear sentido de Estado morreu na frase de Ferreira Leite à saída: "O Governo fez bem em ter um momento de grande pausa." A intenção era pia, mas o átrio do Palácio Presidencial não é a melhor sede para enigmas semânticos, lógicos e matemáticos. Há vidas falhadas. Há Estados falhados. Saberemos nós reconhecer, em tempo útil, um partido falhado?

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«DN» de 5 de Outubro de 2008.

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