quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Uma história simples


Por Baptista-Bastos

DESÇO A AJUDA até à Madragoa. É sábado, vou dançar à Guilherme Cossoul, calhou desta vez. Não há atenuações nem imposições: são os rituais. Cabelo com popa, brilhantina a preceito, camisa da tabela, sapato de tacão alto, calça afiambrada. Vou para o baile. Ainda não sei, mas vou saber que, mais do que ir para o baile, vou arranjar um amigo para toda a vida. Foi amizade à primeira vista, com o Raul Solnado.

A partir daí não nos deixámos de ver, de almoçar, de jantar, de ir aos bares, de falar de mulheres, de telefonar com frequência. Quando sofreu um enfarte violentíssimo, em Caracas («um enfarte do caraças», como gracejava), ralhou-me porque me atrasara na chamada telefónica. O que nos uniu, durante cinquenta anos, foi a certeza da constante presença do outro, em qualquer circunstância ou situação. Escolher esta fraternidade, ou por ela ser tocado, assenta, sem outra justificação, em cumplicidades de tipo comunitário. Modéstia à parte, éramos de Lisboa. Pertencíamos aos bairros, sempre o reivindicámos, e havia, no mais íntimo dos nossos corações, um compromisso que designava a origem comum. Um dia, no Rio de Janeiro, perguntaram-lhe de onde ele era. Respondeu: «De Lisboa!» E o interlocutor: «Sim; mas de onde?» E ele, abrindo os braços: «De toda!»

Arranjou-me empregos extraordinários em épocas de aperto e de perigo. Viajei com ele para o Brasil, na qualidade de secretário, quando assinou um contrato fabuloso com a TV-Rio e cobrou um êxito incomum. Tínhamos a paixão do samba, dançáramos com belas raparigas, pelos Santos Populares, ao som de troupes-jazz que tocavam canções de Dick Farney e de Lúcio Alves, e Copacabana não era uma praia era o paraíso sonhado. «O primeiro que for ao Brasil, leva o outro», eis o acordo. Não havia fronteiras flutuantes nesta identidade que a amizade assegurava. «Então, pá, como é que vai isso?» E ele: «Bem, muito bem. E tu?» «Estou a aguentar-me.» Quando nasceu o Zé Renato, amanhecemos numa noitada de bares e de copos. E fomos à clínica, com dois ramos de flores comprados na Ribeira Nova. Quando nasceu o meu primeiro filho, o Pedro, fui ao teatro dar-lhe a notícia e comemorar com uns uísques.

Cada um era o próprio, e não precisávamos de muitas palavras para exprimir a convivência, resultante de uma longa história comum. A amizade exige a eleição e uma confiança que se não elabora, porque genuína. Penso agora: antes de nos fazer rir, ele passou a vida a ouvir-nos para nos contar - com uma ternura inextinguível e um afecto magoado e melancólico. «Nenhuma morte é natural», disse-o Jorge de Sena. E esta é a menos natural de todas as mortes. O vazio alarga-se, tenebroso, cavo, oco, inelutável.

E agora, Raul, peço-te adeus.

«DN» de 12 de Agosto de 2009