domingo, 18 de janeiro de 2009

AMÉRICA, AMÉRICA

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Por Nuno Brederode Santos
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NÃO SEI SE O REMORSO curva a espinha e ensombra o gesto. Nem sei o que pesou mais nos últimos dias de George W. Bush. Se a memória de como planeou vingar-se do pai, parecendo querer vingar o pai; se o intuito de refazer a apagada e vil imagem que a primeira metade da vida lhe traçou; se a pulsão da epopeia, às vozes e tambores dos evangélicos; se o ter-se deslumbrado com a simples e prática cupidez de Dick Cheeney. Estes são os condimentos principais que, num filme subestimado mas interessante, Oliver Stone nos propõe para doseamento su misura. Eu não tento o meu. E não excluo uma abordagem mais singela: o que verga Bush são as sondagens de aceitação popular, nesse momento sem remédio que é a passagem aos arquivos da história americana.
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Na partida, ele faz dois grandes protestos de inocência. A ter errado - diz - pelo menos agiu em consciência. E, graças a ele e à sua insónia de sete anos, nunca mais, desde o 11 de Setembro, a América voltou a ser agredida no seu próprio território. Fracos consolos. O primeiro, porque busca salvação impossível, já que filia os erros, não numa actuação que dê margem para a repartição das culpas, mas nesse pessoalíssimo e irrenunciável éter a que chamamos consciência. Não sei o que é uma consciência errada, mas deve ser a pior companhia para a reforma. O segundo, porque dificilmente comove multidões. Tanto quanto me lembro, na sua mais do que bicentenária história, a única agressão em casa foi Pearl Harbour. Antes disso, só uma romanesca invasão pelos mexicanos de Pancho Villa, a quem Carlos Fuentes definiu o estatuto: uma rapsódia de camponeses, guerrilheiros e patriotas, agindo de acordo com regras que não podiam ser diferentes das de uma longa tradição de banditismo. Por isso, os seus sete anos e meio rasgam no mundo um sorriso amargo: é que é um critério pelo qual ele mesmo se coloca em último lugar no grande panteão dos presidentes.
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E, se dúvidas houvesse sobre a imagem com que sai, as cadeiras vazias de alguns convidados, que lhe incensaram a pior das aventuras, falam por si. São homens que não ouvem vozes interiores, mas só os megafones da luta política. Homens que entendem que a moral só emerge nas derrotas e só costuma dar futuro aos outros. Homens como Aznar, Berlusconi e Barroso. Por isso, a sua ausência é um auto de notícia. George W. Bush sai agora para a solidão de um rancho texano. Quando o ouvirem a falar sozinho, estará provavelmente a persuadir o seu cavalo de que o Iraque e o Afeganistão são democracias pujantes e os seus povos amam os EUA. Por prisioneiro que, muito justamente, o seu sucessor seja, na gaiola dos interesses de quem o elegeu e ele representa, o mais difícil do muito que o espera é um estilo e uma atitude que dêem ao mundo razões para esquecer aquele que sai.
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No entretanto, escreve Paul Krugman, no NYT de sexta-feira, 16, que, perguntado sobre se possíveis crimes, cometidos pelo Governo de Bush, seriam investigados, Barack Obama respondeu que ninguém está acima da lei, mas que é preciso olhar em frente, e não continuar a olhar para trás. Krugman comenta que esta resposta significa que os detentores do poder estão, de facto, acima da lei, porque não sofrem consequências quando abusam dele. E condena: "Para proteger e defender a Constituição, não basta a um Presidente obedecer-lhe, ele tem de responsabilizar os que a violam. Por isso, o Sr. Obama deve reconsiderar a sua aparente decisão de deixar impunes os prevaricadores da anterior administração. Porque, independentemente das consequências, essa é uma decisão que ele não tem o direito de tomar."
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Este filme é conhecido. Está na vida, muito mais perto de nós do que qualquer cinema. Interessante - e desafiador - é que ele germine aos nossos olhos, no excelente relacionamento político de dois homens que a esquerda europeia acarinhou no mesmo abraço. Obama, o primeiro Presidente negro, fez a maioria de todas as minorias e acendeu o céu americano, dando asas a todos os sonhos. A sua aventura de vida começou agora, com o dealbar de quatro - talvez oito - anos de luta entre a vontade e a contingência. Aquilo de que menos precisa é que, em nome de puros princípios e sem olhar a consequências, lhe comecem a laminar os grandes consensos que forjou para enfrentar todas as crises que Bush lhe deixa no regaço. Krugman, o intelectual e economista que escancarou o Nobel ao jornalismo, tem por aventura pessoal a pureza das causas, a coerência dos valores e um apego, sem máculas nem tardanças, a tudo aquilo que lhe trouxe a glória de hoje. E cada qual defenderá a imagem que visiona de si mesmo. Crêem na mesma divisa: prosseguir um grande desígnio com a flexibilidade necessária e que o não comprometa. Cada qual traçará a sua e subjectivíssima fronteira entre o terreno onde se pode ceder, em nome do bem maior, e aquele em que a lesão de um princípio é o mal absoluto, sendo ocioso estar a medir-lhe as consequências. Há em ambos responsabilidade e vaidade. Mas não somos todos somos assim?
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«DN» de 18 de Janeiro de 2009

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