domingo, 25 de janeiro de 2009

O PRIMEIRO PROTESTO

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Por Nuno Brederode Santos
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MANTENHO O QUE DISSE aos meus amigos aziagos: quem quiser que eu cumpra os lutos tem de deixar que eu faça a festa. E foi assim que passei entre amigos celebrantes a noite da vitória de Obama. Sem esquecer nunca que os interesses que ele irá acautelar são os dos seus, e não os meus. Quando isso se manifestasse, eu logo o notaria. Não me levando a condená-lo, exigir-me-ia pelo menos uma demarcação. Pois é o que aqui faço hoje, formulando o meu primeiro mas veemente protesto. Já vislumbro o gelo na Casa Branca, o embaraço do ministro Luís Amado e o desconforto dos meus vários amigos diplomatas. Mas eu sou a coluna de Sansão. A honradez - e outros valores éticos sortidos - fala mais alto. E também ninguém me cala.
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Obama encarnou a mais litúrgica das candidaturas. Chegou a toda a América e chegou ao mundo inteiro detonando os sonhos, usando palavras mágicas e gestos simbólicos. Evocou Jefferson, Kennedy e Luther King. Mas sobretudo grudou-se à memória de Abraham Lincoln, fazendo do Memorial mais do que é a Casa Branca e jurando a missão na Bíblia que fora dele. Como é possível que tenha escolhido - ou pior: deixado que escolhessem por ele - um Cadillac para limusina oficial do Presidente?
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Isto parece de somenos, mas não é. Compreendo que a escolha teria de recair sobre uma viatura de fabrico nacional - e daí logo adviria o primeiro desencanto. A indústria automóvel americana tem décadas de atraso sobre a europeia (e até já sobre a japonesa). Porque, se a necessidade aguça o engenho, a desnecessidade embota-o. A gasolina barata, a destruição que a II Guerra causou na Europa e a progressão dos mercados cativos no pós-guerra, permitiram que, ainda muitos anos depois, os americanos chamassem automóvel a um chasso: duas toneladas de aço pousadas sobre um "chassis" que não evoluía, mais uma roda em cada canto; lá dentro, dois bancos corridos, dois pedais e uma telefonia. Os cinquentões tardios ainda se lembram dos táxis da nossa infância: Chevrolet, Dodge, Oldsmobile e Pontiac. Uma galeria de carros indistintos, talvez com as excepções - que o foram para o bem e para o mal - dos Studebaker e Nash. As "banheiras" que, mil e uma vezes restauradas, ainda se vêem em Cuba. Dentro deles, eu sentia-me num escafandro, tão alta e exígua era a área envidraçada. Nas curvas, eles adornavam e as crianças riam muito, porque deslizavam violentamente sobre a napa dos estofos.
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Desses construtores impunes, sobressaíam o Cadillac (da General Motors) e o Lincoln (da Ford) - porque o Imperial da Chrysler ficou sempre um furo abaixo - concorrentes directos no luxo para as classes "superiores". O Caddy vendia mais: espalhafatoso, por vezes kitsch, ele encandeava com cromados e rabos de peixe os "gangsters" em fim de carreira e os surfistas da ascensão social meteórica. O Lincoln apostava numa sobriedade altiva, num culto mais antigo, mais europeu. E isto mantém-se, mesmo se os bilionários de herança e tarimba própria preferem importar os Premium europeus.
Ora o carro da Presidência, creio que até "W" Bush, era o Lincoln. O que até me dava jeito, porque o recebi como um red-neck, grunho, pífio e permeável às evangelizações de vão de escada. (Depois, essa visão complicou-se, porque a vida complica sempre o mundo da inteligência). A escolha de um armário deitado, com cinco metros e meio, concebido a custo zero em neurónios de designer, mas sabendo tudo sobre bombardeamentos e emboscadas, parecia-me a mais adequada ao personagem. Agora o mesmo já não vale para Obama. Um motor a óleos pesados, com quase sete litros, debitando uma potência exígua, bebe 34 de gasóleo para puxar pelas toneladas da blindagem, não conseguindo violar os nossos limites de velocidade e fazendo o 0 a 100 em quase 16 segundos (que me permitiriam sempre dar a volta e regressar a casa), tudo isto é impróprio de quem me for simpático. Que tem luxos, dizem eles. Mas, há 34 anos, já os tinha a famosa Chaimite do major Dinis de Almeida. Mas o pior de tudo é ele trocar o nome de Lincoln pelo do Sieur de Cadillac, um aventureiro instalador de feitorias na longínqua "América francesa". A Besta, como lhe chamam, devia ser a escolha de um plantador do Sul, mas não a de um neto dos escravos.
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Indignei-me, como já se percebeu. E rendo sentida homenagem aos cinzentos boicotadores da felicidade alheia: quinze dias são volvidos e já ele está a trair o voto que nem lhe dei. Eles viram bem: toda a ilusão traz a desilusão no seu ventre.
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«DN» de 25 de Janeiro de 2009

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