terça-feira, 10 de março de 2009

Licor darwiniano

.
.
Por Nuno Crato
.
JULGAVA QUE ERA BRINCADEIRA do passado e que o cartaz de propaganda ao Anís del Mono já não existia. Também... quem se lembraria de anunciar um Anis do Macaco?! Mas ele lá está, bem perto do centro de Barcelona, num estabelecimento de vinhos, licores e produtos regionais, na esquina das ruas Llúria e Valencia. Vale a pena passar pela loja e admirar o vitral com o cartaz concebido por Ramon Casas. Foi com essa pintura que o artista catalão ganhou em 1898 o concurso publicitário lançado pelas distilarias que fabricavam o famoso licor. É gigantesco. Mostra uma senhora de fim de século levando pela mão um mono. O animal leva debaixo do braço uma garrafa de anis.

.
O mais engraçado é o rótulo da bebida. Para o ver com cuidado é preciso comprar uma garrafa. Entra-se na loja, que está aberta até tarde: «Anís del Mono, por favor!» O empregado, imperturbável, passa-nos um talão e chama uma senhora — também ela de fim de século. Apesar de haver menos clientes do que empregados, é preciso esperar que a empregada venha para que lhe paguemos a mercadoria na caixa e que recolhamos a garrafa noutro balcão. Saímos e apreciamos-lhe o rótulo. Nele, um mono de cauda longa está sentado num caixote de bebidas. Há várias garrafas em volta e um copo. O animal tem uma cara humana, com uma careca redonda e umas barbas brancas. É uma óbvia caricatura de Darwin. Segura numa mão uma garrafa, noutra um letreiro onde se pode ler «Es el mejor, la ciencia lo dijo y yo no miento».
Não sei se é o melhor, imagino que a ciência não se pronuncie sobre a qualidade do licor, e duvido que os macacos falem verdade. Mas Darwin costumava dizer o que pensava. De entre as várias obras à venda neste ano comemorativo do grande naturalista inglês, uma das mais interessantes é a sua autobiografia. Vale a pena lê-la. Alcança apenas a centena de páginas e é comovente pela simplicidade com que está escrita.
.
Toda a mensagem do rótulo é curiosa e contraditória. Retratar Charles Darwin como um macaco era uma das sátiras em voga no século XIX para ridicularizar as suas teorias. Darwin nunca disse que o homem provém do macaco, mas sim que as espécies existentes, incluindo a nossa e as dos símios, têm prováveis origens comuns e que se transformaram por um processo longo, que durou muitos milhões de anos.
.
Ao mesmo tempo que se ridiculariza o cientista inglês, dá-se-lhe a autoridade máxima para recomendar o anis. É um rótulo publicitário — e tudo se perdoa na publicidade.
.
É curioso, venho depois a saber, que o sucesso do licoroso macaco tenha levado outros fabricantes a usarem imagens de outros animais. Surgiu na época o Anís del Tigre, que se anunciava como melhor que o do símio. Era a sobrevivência do mais forte.
O darwinismo, contudo, não fala do mais robusto em abstracto, mas sim do mais apto a sobreviver num dado meio. A publicidade do mono foi a mais apta e aniquilou a do felino alcoólico.
.
Saímos da loja e passeamo-nos pela cidade velha. Entramos no museu Picasso, um dos mais interessantes dos muitos da capital catalã. São os últimos dias de uma exposição temporária intitulada «Objectos Vivos». Nela se mostram desenhos e pinturas do artista espanhol, em que objectos inanimados se transformam em seres vivos. Entre eles há um óleo de 1915, vindo directamente de Detroit para esta mostra. No centro está uma garrafa que parece transformar-se e dançar com um arlequim. O rótulo: «Anís del Mono»!

.
«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 7 de Março de 2009 (adapt.)
NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.