Por António-Pedro Vasconcelos
HÁ DUAS ESPÉCIES de criadores: os que se destacam por uma estreia fulgurante na juventude e, depois, se apagam ou abandonam (Rimbaud, Bob Dylan, Godard), e os que fazem pacientemente a sua obra, aprendendo com a vida e com os mestres (Verlaine, Tolstoi, Billy Wilder). Os primeiros, geralmente, esgotam-se cedo, porque não conseguem manter-se à altura das suas promessas. Clint Eastwood (CE) tem a marca dos últimos.
Descoberto como ‘autor’ desde que assinou Imperdoável, CE nunca mais desiludiu, enquanto outros, os da geração do Vietname (Friedkin, Scorsese, Coppola) ficaram pelo caminho, porque, a partir de certa altura, não tinham mais nada a dizer. O que identifica um ‘autor’ é a impressão que temos, ao ver um novo filme, que ele está a construir uma obra em capítulos ou que vai aperfeiçoando a tela e afinando um estilo e um olhar. Os grandes ‘autores’ ajudam-nos a interpretar o mundo à nossa volta e a perceber quem somos, ao mesmo tempo que criam uma galeria de personagens que passam a fazer parte da nossa vida.
No espaço de poucas semanas, pudemos ver os dois últimos filmes de CE: depois de uma das suas obras-primas (A Troca), em que ele era apenas realizador, estreou-se Gran Torino, o filme em que ele faz o que diz ser a sua última aparição. Ao contrário do que acontece com o romance, a pintura ou a música, criações individuais, um filme é um objecto em cuja composição participam vários elementos e onde a capacidade de ‘emendar a mão’ a meio do processo é limitada. Gran Torino tem a marca inconfundível de CE (a descrição da América profunda, uma América que é, ao mesmo tempo, o país da liberdade e da intolerância, um melting pot de raças e culturas e um país com uma forte matriz maniqueísta, a primeira democracia do mundo e um continente marcado pela violência), mas falha aqui e ali: a conversão do personagem de Kowalski, um misantropo racista que descobre a solidariedade e a tolerância, não é consistente; CE dá-nos uma imagem folclórica dos vizinhos hmongs e passa com desenvoltura sobre algumas inverosimilhanças – o gang ataca a casa de Thao e a irmã, quando foi Kowalski que os provocou –, mas não deixa de ser um filme com a impressão digital de CE – uma pedra mais na construção da sua obra.
Truffaut escreveu um dia, e eu assino por baixo, que preferia um filme menos bom de um ‘autor’ a um filme brilhante de um técnico sem alma. Por mais hábil que seja, um filme de Ridley Scott, p. e., nunca nos enriquece tanto como um filme, mesmo imperfeito, de CE. Gran Torino é uma peça mais no retrato que CE vem fazendo do seu país, um país onde ele gostaria que os americanos aprendessem a rever-se como num espelho. Os filmes de CE são pedras que ele vai retirando, uma a uma, de um muro espesso de incompreensão e ódio, para com elas construir uma ponte de compaixão e tolerância.
«Sol» de 21 de Março de 2009
NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.