quarta-feira, 25 de março de 2009

A pátria cheia de sono

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Por Baptista Bastos
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As obras no hemiciclo da Assembleia da República trouxeram algumas alegrias aos mais cépticos dos cidadãos. Entre campainhas em surdina, computadores e assentos mais confortáveis, a grande novidade consiste na aplicação de uma luz vigilante. Vigilante de quê e de quem?, perguntará, ousadamente curioso, o pio leitor. Da tranquila sonolência que costuma embalar os destemidos deputados, e devolver-lhes sonhos do passado e bem-aventuranças do presente.
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A LUZ É UMA LUZ CIVILIZADA, embora crua e inclemente. Como as televisões e as imagens da imprensa no-lo informam, os encantadores parlamentares, digerem, dificultosamente, os almoços e deixam-se levar nos braços de Morfeu. É o momento da calma. Ninguém ouve ninguém, e ninguém está interessado em ouvir tristes realidades e objurgatórias incutidas e já conhecidas no breviário do Parlamento. A luz, a nova luz, acaso quiséssemos utilizar uma metáfora deselegante e fácil, constrange os representantes da nação a não pregarem olho. Nem um módico bocejo. Podem não prestar a mais escassa atenção ao que dizem os outros; mas salvam as aparências: estão de pálpebra aberta. Se cederem à soneira e o olho se lhes cerrar, logo a luz, ofensiva e retumbante, ataca os prevaricadores.
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Enquanto estas nobres decisões vão fazer caminho, e a sesta dos deputados está em perigo iminente, vem o Público e assevera: "Portugueses são os que dormem pior por causa da crise." Infere-se, pois, da severa notícia, que a crise não afecta, minimamente, os parlamentares, e, salvo o devido respeito, a soneca (agora ameaçada) era a doce compensação da crudelíssima chatice de terem de ali estar - investidos da espantosa glória de representar um povo cheio de sono. Cheio de sono e sem dinheiro para comprar sedativos.
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"Gestores" fazem bicha nos consultórios dos psiquiatras e dos psicólogos clínicos, para ser atendidos com a urgência que as suas angústias requerem e justificam. Um país a cair de sono e os seus dirigentes empresariais apossados de sombrios cismas. A súbita fragilidade mental dos "gestores" advém do facto de poderem ver os seus vencimentos drasticamente reduzidos? Não creio que se tivessem abandonado a tão embaraçosa emoção. Um "gestor" talvez veja, momentaneamente, a sua factura limitada. Mas tem sempre um emprego à sua espera. Enche os psiquiatras porque vive a imitação de uma importância que na realidade não tem. Vive por "objectivos"; pagam-lhe para os atingir: em troca cede à desumanização e a um cinismo que desconhece o facto moral. Como se tem visto.

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«DN» de 25 de Março de 2009

NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.