terça-feira, 24 de março de 2009

Welcome Mr. Collins!

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Por Nuno Crato
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DOIS ACONTECIMENTOS encheram-me o dia. Um deles foi um ensaio de Harry Collins na revista “Nature”. O outro foi um anúncio a um simpósio internacional sobre o processo de escrutínio de artigos nas revistas científicas.
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Harry Collins foi uma das figuras mais proeminentes de uma vaga de filósofos e sociólogos pós-modernos que, nos anos 60, criticaram a “arrogância dos cientistas” e defenderam que a ciência era apenas uma “construção social” sujeita, como outra qualquer, ao erro e às limitações dos seres que a constróem, os humanos.
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A “desconstrução” do trabalho dos cientistas, procurando mostrar que as suas limitações, invejas e lutas intestinas determinavam as conclusões científicas, tornou-se uma moda. Gerações de sociólogos e educadores foram formados na ideia de que não há verdade em ciência e que as teorias científicas são apenas uma “narrativa”.
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É claro que se pode ter uma fé exagerada na objectividade da ciência. E sabe-se que muitos textos apologéticos da aventura científica simplificam o processo de descoberta, fazendo-o parecer infalível. Mas, mesmo sendo a ciência uma construção humana, ela tem um método de trabalho e um objecto que não lhe dão a mesma liberdade que a literatura ou a mitologia: a ciência choca-se com um mundo natural que não pode contornar. A mecânica de Aristóteles não consegue construir aeroplanos, mas a mecânica de Newton consegue colocar satélites em órbita.
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Harry Collins era um dos que discordavam desta posição. Em 1981 afirmava, por exemplo, que “o mundo natural desempenha um papel pequeno ou mesmo nulo na construção do conhecimento científico” (“Social Studies of Science” 3, p. 3). A ciência pouco mais seria do que uma narrativa que importaria “desconstruir”.
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Os tempos mudaram e é uma surpresa ler o seu novo ensaio na “Nature” (458, 30–31). Diz que o pós-modernismo foi longe demais e que a ideia de “uma sociedade que rejeita inteiramente os valores da ciência e do conhecimento especializado é uma ideia demasiado horrível”. Admite que os anti-pós-modernos, a que chama “guerreiros pela ciência”, podem ter tido razão. Acrescenta que os sociólogos da ciência criaram um mito muito negativo, o de que os cientistas não passam de seres “maquiavélicos mancomunados com o poder”. Finalmente, diz que é preciso dar ouvidos à ciência nas decisões sociais, pois é a ciência que tem as observações e as teorias mais bem informadas.
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Só tive pena que Collins não dissesse explicitamente: “desculpem-me, eu estava errado”. Mas disse-o implicitamente.
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O segundo acontecimento que me encheu o dia foi um anúncio para um simpósio em Orlando, na Flórida (KGCM2009), sobre o processo de publicação nas revistas científicas. O evento anuncia-se como uma discussão crítica do sistema de revisão pelos pares (“peer review”). Diz-se, no anúncio, que o “peer review” adoptado pelas revistas científicas é “uma charada não validada”, conduzindo a uma “escolha pouco melhor que a de uma roleta”.
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Este processo de validação dos artigos tem certamente defeitos, mas é o melhor que até hoje se construiu para minorar a propagação de erros. É um processo que está na base da credibilidade das publicações científicas.
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Mais abaixo, no mesmo anúncio, explica-se que todos os trabalhos submetidos para apresentação no simpósio, e subsequente publicação nas actas, serão seleccionados por um sistema rigoroso de... “peer review”.
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Welcome Mr. Collins!

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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 21 de Março de 2009
NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.