terça-feira, 8 de junho de 2010

A múmia e o modelo do défice

.
Por Nuno Crato

BOLZANO é uma pequena cidade italiana, no sul do Tirol, muito conhecida pelos praticantes de montanhismo e de esqui. Os matemáticos lembram-se de um célebre teorema de Bernard Bolzano e pensam que a cidade terá alguma coisa a ver com esse matemático checo do século XIX. Talvez tenha, pois o pai desse académico nascera na Itália alpina. O mais famoso habitante da cidade, contudo, é Utzi, o “Homem da Neve” que foi descoberto em 1991 nas montanhas que circundam a cidade. É a múmia mais antiga do mundo. Terá vivido cerca de 3500 anos antes da nossa época, numa altura em que a Grande Pirâmide ainda não tinha começado a ser construída.

A múmia, carinhosamente chamada Utzi em referência a um vale da província, deve o seu espantoso estado de conservação a uma confluência de circunstâncias muito rara. Segundo se descobriu, trata-se de um homem que foi alvejado nas costas, teve uma hemorragia violenta, caiu na neve e ficou congelado. Mais tarde, as neves derreteram e o sol desidratou-o. Voltou a ser congelado pelas neves de inverno e ficou depois soterrado por gelo e neve até que, em 1991, dois turistas alemães o encontraram por acaso, numa altura em que o sol tinha voltado a derreter grande parte das neves. Depois de ter sido recolhido e estudado, o cadáver foi colocada em exposição no museu arqueológico de Bolzano, onde pode ser visto através de uma janela sobre uma câmara refrigerada.

Na semana passada, o moderno centro de investigação multidisciplinar de Bolzano, o EURAC, promoveu uma conferência internacional sobre divulgação científica em que Utzi foi uma das personagens centrais. Num painel sobre museologia científica discutiu-se a maneira de expor múmias em museus. Mas o que encheu o dia foi um debate sobre o actual modelo de divulgação científica.

Depois de uma época em que a divulgação era vista apenas como uma missão de cientistas para fornecerem informação ao público e assim suprirem um défice de cultura científica, a comunicação de ciência comporta hoje muito mais vertentes. Envolve museus e centros de ciência, junta educadores e profissionais de museologia. Inclui a actividade de muitos bons jornalistas, que fornecem um noticiário científico actualizado e rigoroso, enquanto outros escrevem magníficas peças de divulgação. Espalha-se pela rádio, pela televisão e pela internet, usa animações, blogues e discussões públicas.

Há umas duas décadas, o chamado «modelo do défice» foi muito criticado por ser apenas uma espécie de prolongamento da escola, em que os professores seriam substituídos por cientistas. Mas a crítica, influenciada por correntes pós-modernas então em ascensão, estendeu-se a outros aspectos. Afirmou que os cientistas não poderiam ser considerados detentores da verdade, que a ciência também erra e que era necessário o diálogo com o público, respeitando outras opiniões. Assim, a opinião do cientista não deveria valer mais do que as outras. Em vez de se tentar, de forma «paternalista», «divulgar» ou «vulgarizar» a ciência, era necessária uma «comunicação bidireccional».

Vários participantes no encontro salientaram que esta crítica apresenta algumas verdades mergulhadas num oceano de erros. Se é verdade que a ciência «também erra», quando se abordam fenómenos cientificamente estudados a ciência fornece conceitos mais fundamentados do que a simples opinião. E se é verdade a opinião dos cientistas vale tanto como a de outros cidadãos quando se trata de fazer escolhas morais, sociais e políticas, é crucial que se ouça o que a ciência tem a dizer para que essa escolha seja o mais bem informada possível. Se é também verdade que, em teoria, «a comunicação bidireccional» é preferível, nem todos têm igual informação e é desejável que os mais conhecedores em determinada área informem os outros. De outra forma, anular-se-ia a difusão da cultura. E ninguém inveja a vida que Utzi viveu nem quer voltar aos tempos da múmia.

A divulgação científica sofreria um grande retrocesso se substituísse o dito «modelo do défice» por um outro que, com pretexto na igualdade, promovesse o défice.
.
«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 5 Jun 10 (adapt.)