domingo, 6 de junho de 2010

Cegos por Israel

.
Por Rui Tavares

Para alguns fanáticos, ser “amigo de Israel” parece implicar que tudo o que um governo israelita faça, por mais brutal e desumano, seja sempre legítimo; que as normas internacionais não se apliquem da mesma forma a Israel e a outros países.

TENHO FAMÍLIA israelita e familiares judeus ou de ascendência judaica que, caso o desejassem, poderiam obter cidadania israelita. Teoricamente, parece que até eu teria direito a morar numa daquelas aldeias que nunca visitei mas onde não podem regressar os palestinianos que lá nasceram — as aldeias onde nasceram também os seus pais, avós, bisavós. O que para judeus de todo o mundo foi e é por vezes ainda uma esperança de justiça após séculos de perseguição, tem sido uma tragédia para os palestinianos. Não há afinidades — ideológicas, familiares, ou meramente caprichosas — que possam calar esta verdade.

Ao contrário do que sugerem fanáticos de toda a espécie, dentro e fora da região, o mundo sabe como resolver o conflito israelo-palestiniano. Mais pormenor, menos pormenor, a solução passa por dois estados lado a lado segundo as fronteiras de 1967, com trocas pontuais de terreno numa base 1:1; Jerusalém como capital partilhada de ambos esses estados, porventura preservada sob tutela internacional; e reparações financeiras e morais para os refugiados palestinianos, com possibilidade de viverem no seu estado independente e, em alguns casos negociados, poderem regressar às suas terras de origem. Outra solução, minoritária mas também apoiada por muita gente que quer a paz, passaria por um único estado com direitos iguais para todas as religiões e povos que vivam no seu território. Como qualquer não-fanático, não sou esquisito nos pormenores. O que desejo é isto. Desejo para os palestinianos dignidade e auto-determinação iguais às de qualquer outro povo no mundo.

Ao mesmo tempo, respeito o estado e a cidadania dos meus primos israelitas. O que não posso é respeitar as ações deste governo israelita, porque este governo não tem respeitado qualquer limite da decência, honestidade ou legalidade internacional. Nem os seus próprios compromissos têm respeitado, havendo razões para duvidar que faça esses compromissos de boa fé. É um governo pária que deve ser tratado como qualquer governo pária.

Para alguns fanáticos, ser “amigo de Israel” parece implicar duas coisas: que tudo o que um governo israelita faça, por mais brutal e desumano, seja sempre legítimo; que as normas internacionais não se apliquem da mesma forma a Israel e a outros países.

Por extraordinário que pareça, estes fanáticos por Israel conseguem justificar tudo, até a recente razia e sequestro a uma reduzida frota de barcos desarmados em águas internacionais, causando a morte de uma dezena de pessoas.

Enquanto um barco está em águas internacionais poderá ser interpelado, porventura vigiado ou no máximo escoltado. Não pode certamente ser atacado e os seus passageiros não podem ser assassinados, sob pena de este ser um ato de pirataria. Nem sequer o putativo “estado de guerra” a que alguns comentadores lançaram mão permite justificar isto: Israel não declarou guerra à Turquia (em águas internacionais, atacar um barco significa atacar o território da sua bandeira) e, mesmo que o tivesse feito, a guerra tem regras a que os estados se obrigam assinando convenções — e, mesmo quando não o fazem, os crimes de guerra continuam a existir. Decidam-se então: o que aconteceu foi pirataria, ato terrorista, ou crime de guerra. Justificável, nunca.

Diz-se que os fanáticos são os piores inimigos de Israel. É verdade. Os fanáticos muçulmanos. Os fanáticos pseudo-amigos de Israel no Ocidente. E, cada vez mais, os fanáticos no próprio governo israelita.
.
In RuiTavares.Net