quarta-feira, 2 de junho de 2010

O 'pragmatismo' contra a ideologia

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Por Baptista-Bastos

CUNHAL, SOARES e SÁ CARNEIRO possuíam convicções e tinham projectos para o País. Gostássemos ou não da natureza desses projectos, estes faziam parte dos conceitos éticos e políticos de cada um daqueles homens, mas, sobretudo, correspondiam ao carácter da época. À ideologia, às ideologias. No imediato 25 de Abril, a criação das instituições era um problema capital. Sob uma figura de significado confuso: "democracia de tipo ocidental", vivemos uma ideia dividida, por imprecisa. Na verdade, ninguém sabia, exactamente, o que era a "democracia de tipo ocidental", pela singela razão de que, nessa lógica, havia democracias para todos os gostos e recados, e, por sinal, algumas bem repressivas e arbitrárias.

Portugal não conseguia harmonizar distância reflexiva com politização. Cinquenta anos de fascismo haviam liquidado a interrogação do presente. Pouco ou nada compreendíamos das possibilidades de escolha. O tumulto do PREC envolvia uma poética das ruas, inseparável dos sinais exaltantes da liberdade, da festa. Quem viveu esses tempos, entende que a História confluía em múltiplas mas ingénuas certezas. E que tudo era aprendizagem. Até do amor, até do sexo, porque as coisas relacionavam-se como laços sociais.

A "normalização" e a ascensão ao poder do dr. Cavaco determinaram a substituição da ideologia e do sonho pelo "pragmatismo." O "pragmatismo" não transmite saber, facilita e dá cobertura a todas as vilezas políticas porque ausente de qualquer sobressalto moral. São as possibilidades circunstanciais que formam as afirmações das suas condutas. Guterres, Durão, Santana, Sócrates descendem directamente desse abaixamento, ilustrativo de uma "certa maneira de estar no tempo." Os espaços públicos de contestação e de discussão, que representavam um contra-poder, minguaram até desaparecer. A dimensão afectiva extinguiu-se. Burocratas da política tomaram o lugar das paixões do homem.

Enquanto Cunhal, Soares e Sá Carneiro, habitados pela ideia de mudança, jogaram, no regueirão da História, o que de melhor e de pior a sua experiência incorporava, aqueles que se lhes seguiram eram movidos pelos seus interesses pessoais. Acrescente-se uma nefasta mediocridade e o quadro talvez aclare esta triste desgraça em que vivemos: mentiras, vacuidade, ignorância, impunidade aos prevaricadores, enriquecimentos ilícitos.

A nossa insatisfação nasce desse jogo complexo do poder, do carácter nocivo de quem nos dirige e dos mecanismos económicos que se sobrepuseram à importância da ideologia. A decomposição social resulta da fragmentação identitária dos partidos, da ambiguidade política e da fragilidade cultural de quem conduz. E da impassibilidade de todos nós.
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«DN» de 2 Jun10