sábado, 5 de junho de 2010

Há reis e reis

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Por Antunes Ferreira

PIROLITO é a alcunha. Há muitos, mesmo muitos anos, era ainda catraio trabalhei num fábrica deles e assim fiquei. O meu nome, de acordo com o BI, é Julião Casimiro Pintado. É verdade, me posso esqueceri: tenho de ir tirar o Cartão de Cidadão. sei a queim, mas lá que tenho de o tirar, tenho. Sou natural duma convenção. De quêi? De uma convenção foi o que disse, isto éi, de Evoramonte. A caminha do Caia, na raia.

Onde, vejam lá vomecês, nã há Multibanco. Quer-se dizêri, nã existe lá nenhuma ATM, quê sei muto beim oké, mas é assim que lhe prantaram e lhe chamam. Resumindo e concluindo: aquelas mánicas metidas nas paredes das agências bancárias ou nos supermercados ou nessas coisas assim e que servem para tirarmos dinhêro, pagarmos as contas e até carregarmos os telelés… O queles inventam. Ainda entendo qual a rezão do sindicato dos bancários nã têri protestado por elas inliminarem postos de trabalho.

Se me permitem, vou aligeirar o sotaque, senão ainda me arrisco a levar um arraial de porrada dos outros alentejanos que pensam que eu estou a mangar com eles – e se calhar até têm razão. Se eu fosse o Vasconcelos, conhecem?, o Miguel, ainda me defenestravam. Dizem que é aventar pela janela. Está boa, a palavra, o trambolhão é que não. Um tipo arrisca-se a partir umas coisas. E não há cola mesmo super que lhe valha.

Pois, na segunda-feira feira, estava eu pelo fim da tarde num bar de tapas em Badajoz e apareceu-me o Fernando Lavadinho, conterrâneo da melhor colheita. O sujeito trabalha por aquelas bandas, nos painéis solares, por conta de uma firma que os fabrica, em Montemor. Que é a terra com mais semáforos de todo o Mundo, pelo menos no Alentejo é.

Eu tinha mandado vir umas gambas a l’ajillo e um tinto de verano, e ele pediu riñones al Jerez e bebida igual, que o calor começou a apertar e com muito gelo o vinho com limonada passa pelo estreito que nem faca em manteiga no Verão. Lavadinho é conhecido pelo Alforreca, não me perguntem porquê, em Evoramonte não há mar que se veja ou que se não veja. Não há.

«Vieste ontem? Apanhaste o Rei?» «Mas qual rei?», retorqui-lhe. «Então o homem não foi hoje que tomou posse?» O Lavadinho, barra, Alforreca: «Tás a gozar comigo? Um rei toma posse? Isso é um Presidente da República, um primeiro-ministro, um chefe de repartição, até um ajudante de auxiliar de praticante. Um rei é coroado. Tás cada vez mais bronco. A caminho de cota é o que é…»

A conversa estava a dar para a banda do torto, por isso e para desanuviar, chamai o camarero e encomendei uns callos com garbanzos. E mais tinto. Para selar o tratado de paz que se impunha, mesmo sendo entre Portugueses, o que é cada vez mais difícil, vejam-se o Carvalho da Silva e o João Proença nas comemorações do Primeiro de Maio.

Decidimos assentar ideias e apagar confusões. Falávamos de temas diferentes, era óbvio. O meu interlocutor passou a esclarecer. No domingo, isto era ontem, comemorara-se na cidade do Guadiana espanhol, o Día de las Fuerzas Armadas que em cada ano tem lugar em urbes diferentes espalhadas pelo país vizinho. Assim a modos que o 10 de Junho por cá, com desfiles, discursos e condecorações. Isto antes da crise, que agora o PR até já mandou todos os convidados utilizarem a via ferroviária, com a gentil colaboração da CP e da RENFER.

Su Majestad el Rey Don Juan Carlos presidira às cerimónias, Acompanhado da Reina Sofia e dos Príncipes das Astúrias, Don Felipe e Doña Letizia. Esta era a base inabalável do Lavadinho que me contou das medidas de segurança, uma caterva de ruas cortadas, polícias de todas as qualidades, feitios e tamanhos, atiradores especiais nos telhados, o trivial da precaução, que a ETA…

Fiquei embasbacado. O compatriota afinal não estava passado, do sol sobre os colectores da energia dele; dele, astro rei. Cos diabos, já eram monarcas a mais, incluindo a estrela da nossa constelação e os herdeiros do trono. Só faltava o Dom Duarte Pio. As coisas eram claras, claríssimas. Nos entretantos, o acolhedor empregado de mesa, que afinal era Portuguesíssimo de Avis, trouxera una tortilla de patatas y cebolla e dois uísques aparentemente castellanos. Con soda e muchas piedras de hielo.

Era a minha vez de elucidar o Alforreca e o gentil servidor, aliás o Teixeira (que acabara de saira de serviço e fora substituído por un extremeño con bigote), interlocutores atentos e interessados na minha explicação. Depois nos informaria que ali ganhava bastante mais do que em Portugal e a gasolina era mais barata e as compras eram mais em conta e porque torna e porque deixa.

E apesar do paro ir acima dos 22%, ele queria trabalhar e por isso arranjara-o. Já na nossa terra, ainda acrescentou, o pessoal quer é ter um emprego, não quer trabalho. Cansa muito. Ou, melhor ainda, estar refastelado no desemprego com subsídio. Anotei e continuei. Por estas e por outras é que nós não passamos da cepa torta. E também, porque a nossa produtividade é menor do que as reservas de muitos bancos. Adiante. Eu referia-me, obviamente, ao Mourinho.

Da mesa do lado, veio um comentário com acento estremocense. «Esse sim, esse é que é rei. Ou antes, é Deus…» Definitivamente em Badajoz, a percentagem dos participantes lusitanos no colóquio era alta, uns cem por cento. Os aventureiros que somos não se ficaram nos Descobrimentos.

E o último interveniente: «Patrícios, vocês não sabem daquela do Mou quando estava no Chelsea e foi para a cama com uma inglesinha entusiasmada?» Não sabíamos. E ele: «Quando chegaram aos finalmentes, a Mary começou a gemer, oh my God, oh my God!!!!» e o Special One disse-lhe docemente, «my dear, you can call me just only José…»

Eu tinha ou não tinha razão?