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segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Nevoeiro

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Por João Paulo Guerra

“Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
define com perfil e ser
este fulgor baço da terra
que é Portugal a entristecer,
brilho sem luz e sem arder,
como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!"


AS MANHÃS de nevoeiro que se abateram sobre parte de Portugal nos últimos dias são propícias a que se evoquem profecias e se alimentem ânsias como a do regresso de D. Sebastião. Não é que os portugueses se dediquem propriamente a ler, analisar e discutir a Mensagem, os mitos pessoanos. Não é nada contra o autor da Mensagem, excelente Pessoa. Os portugueses também não se dedicam propriamente ao estudo da retórica de Vieira, como não percorrem a terra Mátria de Natália, nem sequer se procuram identificar nas Profecias do Bandarra. Excluindo alguns marginais letrados que teimam em ler, pensar, expor ideias, construir teorias, idealizar e partilhar beleza, a actividade intelectual dos portugueses não vai além da Taprobana. Aqui para nós, talvez não chegue mesmo a Cacilhas.

Mas estes nevoeiros, a envolver esta crise e a emoldurar uma melancólica campanha eleitoral, sugerem figuras de Encobertos que - quem sabe? - talvez tenham na mão, ou pelo menos na ideia, a chave do nosso futuro. Ora observando a vida política actual do Portugal do nevoeiro e dos fogos-fátuos - que emanam do metano dos pântanos - dá ideia que alguns ínclitos portugueses já encontraram para lá do nevoeiro o respectivo D. Sebastião. Chama-se FMI. Que, como o outro e como dizia Pessoa, talvez venha ou não.
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«DE» de 17 Jan 11

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Promiscuidade

Por João Paulo Guerra

TENHO na minha sobrelotada estante, nas prateleiras ocupadas com obras sobre o Portugal que passou à história, um pequeno opúsculo da autoria do dr. Raul Rego, “Os políticos e o poder económico”, com data de 1969, no qual o velho republicano, socialista e ‘maçon’ recenseia e desanca a promiscuidade no trânsito entre as cadeiras do poder e os cadeirões dos conselhos de administração.

O impresso do dr. Rego diz respeito aos últimos anos do auto-denominado Estado Novo, também chamado fascismo.

Ontem, ao ler no Diário de Notícias que 40 ministros e secretários de Estado saíram directamente da política para cargos em grandes empresas fui levado a comparar a situação arrolada pelo dr. Raul Rego com a actual, em democracia. E de facto a única diferença é a democracia: o opúsculo de Raul Rego saiu em edição de autor para uma "campanha eleitoral" e recolheu logo após aos subterrâneos da liberdade de expressão, enquanto a denúncia do Diário de Notícias vem escarrapachada num jornal de referência que quem quiser pode consultar, analisar e tirar conclusões. De resto, a maxarufada é a mesma, independentemente dos tempos e dos regimes. Um considerável número de políticos metem a mão na massa da coisa pública a pensar no futuro da respectiva vidinha. E a assegurar, sabe-se lá a que preço e sob que condições, um lugar ao sol de um conselho de administração deste grupo ou daquela empresa.

O dr. Raul Rego ainda viveu quase três décadas em democracia e não se sabe se a saúde e a idade lhe permitiram entender que caminhos tortuosos e perversos seguia a democracia pela qual lutou tantos anos. Certo é que o seu opúsculo de 1969 nos revela hoje que em matéria de promiscuidade, através dos tempos, só as moscas é que variam.
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«DE» de 14 Jan 11

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Previsão

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Por João Paulo Guerra

DESDE A CRÓNICA de 1 de Outubro passado, a respeito do PEC III, que escrevo nesta coluna que a austeridade, tal como é pensada e posta em prática pelo Governo, arrastará inevitavelmente o país para a recessão económica, com todas as suas consequências.

E nem sequer estou a gabar-me de qualquer modalidade de presciência. A crónica de 1 de Outubro citava o vaticínio da Ernst & Young sobre o perigo de nova recessão, considerando errado que "a solução em que o Estado pensa sistematicamente" seja a de pedir aos contribuintes que "paguem as suas ineficiências".

Três meses volvidos, vem o Banco de Portugal prever que a austeridade, agravada entretanto para extremos inimagináveis do PEC III para o Orçamento de Estado, irá provocar a maior quebra de sempre do consumo privado em Portugal. E, como se está mesmo a ver, da previsão da queda do consumo privado no abismo à previsão da recessão económica vão só alguns parágrafos no relatório do Banco central. Portanto, só não vê quem não quer ver que são, como se sabe, os piores dos cegos.

O objectivo da austeridade em curso é precisamente a derrocada do consumo privado. O Governo entende que Portugal e os portugueses não merecem mais que o rótulo de um dos países mais pelintras da Europa. As consequências serão a diminuição brutal do nível de vida do comum dos portugueses, falências em cadeia de sectores da produção e comércio, ainda mais desemprego.

Andamos nisto há três décadas, pela mão dos partidos do costume: recessão austeridade, austeridade recessão. A única diferença é que o actual Governo, e os que viabilizam e promulgam as suas políticas, decidiram que desta vez seria muito mais doloroso e até mesmo fatal. Garrett interrogar-se-ia: quantos ricos vão engordar em Portugal à custa de tantos pobres?
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«DE» de 13 Jan 11

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Alimentos

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Por João Paulo Guerra

PORTUGAL e os portugueses, sugados pelos credores e esmifrados pelo Estado, têm ainda no horizonte a ameaça de uma nova crise alimentar.

É que os preços das matérias-primas alimentares estão a disparar nos mercados internacionais e Portugal passou a ser um país indigente sem produção própria de quase nada daquilo que come. Um trabalho do jornal Público revelava ontem os défices e fragilidades da balança alimentar do país.

A questão é que, olhando os indicadores dos textos do Público, os portugueses são necessariamente induzidos a reflectir - os que ainda reflectem - sobre o destino trágico deste país que transitou das hortas e dos latifúndios salazaristas para a destruição da agricultura e pescas: Portugal importa mais de 60 por cento da carne e dos cereais que consome, deixou de produzir açúcar, o olival é em grande parte espanhol, todos os dias abate mais unidades de pesca.

Em parte, esta política alimentar tem sido ditada pela Europa e pelos interesses dos gigantes europeus da produção agrícola. Mas a Europa não veio a Portugal arrancar culturas nem varar barcos de pesca na areia das praias. Isso foi obra de sucessivos governos de Portugal que até criaram algumas castas de "agricultores" de subsídios, que enriqueceram a arrancar culturas ou, eventualmente, a nem sequer as plantarem. Como se conta - talvez como anedota - que em França um espertalhão se inscreveu como candidato a subsídios para não criar porcos e, já agora, para ser ressarcido pela perda de rações que os porcos não criados não iriam consumir.

Décadas de políticas de liquidação da independência do país não poderiam ter outros efeitos. Mas eles aí estão, os agentes dessas políticas ruinosas, nos cadeirões do poder ou inscritos na dança das cadeiras para a valsa seguinte.
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«DE» de 11 Jan 11

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Oposição

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Por João Paulo Guerra

UM DIA DESTES dei por mim a tropeçar numa frase na leitura de uma notícia de jornal. Dizia assim: "os partidos da oposição, com excepção do PSD...". Mas espera... O PSD é da oposição? O caso concreto era que a oposição de esquerda, Bloco e PCP, e de direita, CDS, queria saber as razões da mudança nos métodos da Estatística numa altura em que se espera aumento do desemprego. O PSD não queria saber coisa alguma, nem a respeito de estatísticas, como em relação ao que for que o Governo decida. A verdade é que o Governo decide, o PSD aprova e o chefe de Estado promulga. O barco da governação tem uma tripulação tripartida e só não se sabe ao certo quem será o verdadeiro homem do leme.

Quanto ao PSD, depois das farroncas com que a direcção assumiu funções - rever a Constituição, acabar com a justa causa para despedimentos, ameaças de chumbo do Orçamento - reviu em baixa as expectativas e amodorrou-se à lareira do poder: acordou com o Governo o aumento de impostos, liquidou o inquérito da Comissão Parlamentar ao caso PT/TVI, opôs-se à greve geral, deixou passar o Orçamento, etc., etc.

De maneira que se isto fosse oposição, não haveria razões para o Governo do PS ter outras preocupações. A menos que o estatuto de oposição do PSD siga a estrelinha de Belém. Com efeito, o PSD acomodou de algum modo a sua agenda à estratégia de Belém, dando o sim do PSD ao Orçamento do PS mesmo em cima do acontecimento da apresentação da recandidatura de Cavaco Silva. E, deixando para o PS o ónus do trabalho sujo, este PSD ou outro poderá aspirar a constituir uma alternativa de poder executivo pós-presidenciais.

Seja como for, no presente o PSD é uma oposição na gaveta, sendo que todas as malfeitorias do poder têm o seu voto e a sua impressão digital.
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«DE» de 7 Jan 11

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Excepções

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Por João Paulo Guerra

TODOS OS DIAS os jornais anunciam magnânimas excepções ao regime ferrabrás do Governo contra a generalidade dos portugueses, os que pagam a crise.

Assim, enquanto congela promoções na administração pública, o poder vai abrindo mão de excepções para algumas castas de afilhados da situação. E não há dia que não saia a público a promoção de altos e intermédios funcionários que assim vão escapar, pela mão esquerda do Governo, ao que a mão direita tira à generalidade dos trabalhadores do Estado. "Pagam todos", apregoa o poder. Todos, menos os tais. Dizem os jornais que as promoções no Estado dispararam 15% após o anúncio do congelamento das carreiras. E assim, o próprio Estado contorna e sabota a sua norma de não promover nem aumentar ninguém na Função Pública, promovendo, e desse modo aumentando, alguns eleitos.

Mesmo quando decide dar um arzinho filantrópico, o poder político não esconde as suas preocupações e opções de fundo. E é assim, por exemplo, que o Estado anuncia que está a ajudar mais de 2.300 famílias a pagar empréstimos para habitação... aos bancos. Ou seja, esta é simplesmente uma outra vertente da linha que vai pôr os contribuintes a pagar o buraco deixado pela gestão anterior do BPN e, de um modo geral, a ajudar a banca.

"Pagam todos", insiste o poder político. Mas enquanto o comum dos cidadãos já começou - dando ou não dando por isso - a pagar mais impostos e preços mais elevados no consumo, a banca ainda não começou a pagar a respectiva contribuição extraordinária para acalmar a crise. E porquê? Porque o poder político ainda não teve vagar para elaborar, aprovar e pôr em vigor a respectiva portaria.

Sim, porque em Portugal qualquer portaria faz política de facto. Basta que não saia.
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«DE» de 6 Jan 11

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Carrões

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Por João Paulo Guerra

OS PORTUGUESES têm razões que a razão não entende. E em ano de crise bateram não só o recorde da compra de automóveis que se mantinha galhardamente desde 2002 - o ano da revelação do "pântano", da fuga de António Guterres e da chegada de Durão Barroso - como melhoraram também os máximos da compra de carros de luxo. Assim é que é: cabecinhas formatadas pelas escrituras do consumismo e pelos manuais do marketing, respondendo aos apelos de mais consumo, mais endividamento.

O parque automóvel português, cujo espavento é motivo de espanto por parte de europeus mais ricos e mais esclarecidos, não cede ao choradinho da crise. E se no ano passado o brilho da chapa já ofuscava a ladainha do endividamento e do défice e afrontava a crescente pobreza do país, este ano há que manter as aparências, a ostentação. E em que modalidade poderão exibir-se os portugueses? Pela elevação do saber? Pela profundidade do pensamento e da análise? Pelo civismo dos costumes? Pelo requinte dos hábitos? Nada disso: pelo topo da gama, pelo espalhafato da carroçaria, pelo aparato da cilindrada, tudo isto apresentado em locais de grande exposição, como seja em cima dos passeios ou das passadeiras.

Aliás, os portugueses são nesta matéria muito bem conduzidos e educados pelos protagonistas e figurantes da classe política. Os carrões do Estado, em frotas permanentemente renovadas e de custos invariavelmente agravados - haja crise ou, o que não há memória, não haja - revestem e disfarçam muitas vezes a mediocridade e banalidade dos ocupantes. Qualquer funcionário de meia tigela tem direito a carro e esse é um direito adquirido com direitos colaterais: o carro pressupõe a sua própria renovação, por troca com um carro melhor. Ou, pelo menos, mais pomposo e mais caro.
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«DE» de 5 Jan 11

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Indicadores

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Por João Paulo Guerra

LEMBRO-ME dos tempos em que os portugueses tinham vergonha dos indicadores sociais que identificavam um país atrasado, pobre e tacanho, um baldio de uma Europa civilizada: o analfabetismo, a mortalidade infantil, a miséria, a emigração para fugir à má sina de ser português.

Acontece que hoje, lentamente, sinistramente, esses indicadores estão a voltar a retratar a realidade portuguesa e não se dá, ao menos, que tais dados envergonhem os titulares do poder das últimas décadas, tão cheios de si, tão ufanos não se entende bem de quê, tão convencidos e, no entanto, com a verdade dos números a atestar a sua irremediável mediocridade e incompetência.

Enquanto a classe política tagarela sobre a saúde pública confrontando-se com esse problema terrível para o Estado que são os utentes, os índices da mortalidade infantil em Portugal retrocederam 25 anos: estamos nessa matéria de novo em 1985, quando em Portugal se decidiu que "quem quer saúde, paga-a". E assim, esse indicador que revela o grau de civilização de uma sociedade, depois de ter dado tímidos passos para a frente, andou para trás num recuo desordenado.

Entretanto, na educação, uma auto-avaliação do sistema concluiu que os alunos do oitavo ao décimo segundo ano de escolaridade "não sabem raciocinar nem escrever". Mas constituindo esta sentença um chumbo categórico e sem apelo de um sistema de ensino, nada acontece para lá da constatação. É assim e paciência. Os alunos não sabem o elementar para saberem mais e melhor. Mas não consta que tenha havido um ministro, um secretário de Estado, um director-geral da Educação chamado à responsabilidade.

Portugal enfrenta muitos problemas. Mas na raiz de todos eles está a incompetência de uma classe política que se perpetua e alterna no poder.
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«DE» de 4 Jan 11

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Miséria

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Por João Paulo Guerra

OS TRABALHADORES empregados vão passar a descontar para a indemnização mais barata que poderão vir a receber quando, mais dia, menos dia, forem despedidos.

Este é o requinte máximo da nova legislação laboral de um governo socialista. E aqui está o verdadeiro socialismo da miséria, como contribuição portuguesa para o ‘stock' das ideologias.

As oferendas ao patronato que, a par de outros "incentivos", poderá agora despedir mais barato e, em última instância, pagando as indemnizações com descontos dos salários dos trabalhadores, é uma das medidas do pacote laboral do PS pós-moderno, uma espécie de pós para um socialismo solúvel. Dizem especialistas que tais medidas terão impacto diminuto no combate à crise da zona euro. Ora isto apenas confirma que a crise do euro, como antes a crise da delinquência financeira, como todas as crises em que Portugal tem vivido mergulhado nas últimas décadas, está a servir de simples pretexto para reduzir a zero os direitos sociais que, para além da Constituição da República, estão inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Mas isso de Direitos do Homem também já foi chão que deu uvas. Os Direitos do Homem encheram a boca de governantes e respectivos mandantes quando se tratava de combater os países chamados socialistas. Constituíram um ‘slogan' e não uma causa. E agora já há quem tenha coragem para dizer que os direitos sociais são parte da tralha de um mundo que acabou.

Quanto ao Portugal que está a ser criado, só difere da escravatura porque ainda permite que, quem quiser, opte por morrer à fome sem trabalhar, em vez de morrer a trabalhar com salário reduzido, suspenso, em atraso, com impostos e tributos agravados para tudo e até para financiar o despedimento.
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«DE» de 17 Dez 10

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Graxa

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Por João Paulo Guerra

O MINIsTRO Fernando Teixeira dos Santos não tem culpa que lhe queiram dar e lhe dêem graxa. De maneira que a crítica vai inteirinha para o autor de uma suposta notícia que pretenderia glorificar o ministro das Finanças, apresentando-o como "o décimo sexto melhor da Europa em 2010", numa tabela elaborada pelo Financial Times e que contemplava um "total de 19 governantes". Ou seja, o ministro estaria à beira de disputar a "liguilha" para descida de divisão, se falássemos de futebol, ou em vias de despedimento, se se tratasse de avaliação pelos respectivos superiores no âmbito de uma repartição pública. Porque na verdade, "o décimo sexto melhor", num universo de dezanove, é mais propriamente o quarto pior.

Mas este é um bom exemplo para caracterizar o regresso do espírito de bajulação - se é que alguma vez ele se foi embora - tão característico dos tempos em que estava "tudo bem assim" e o chefe tinha sempre razão. Eram os tempos dos "muito bem", dos "apoiado", com que as solenes assistências pontuavam os enfáticos discursos dos próceres do regime. Alguns exageravam e conta-se que um governador civil de Lisboa, muito dado a discursos engraxadores, chegou a ser mandado calar por despacho da Presidência do Conselho.

Agora que o situacionismo instalou o faz-de-conta, a encenação, o culto da imagem sobre o inculto do discurso, a par do carreirismo, da lisonja, da adulação e também da reverência e do medo, eis de novo os homens providenciais ao leme do país, a avaliar por certas notícias publicadas no diário de bordo.

Pegar numa tabela de dezanove lugares e designar o pré-antepenúltimo como "décimo sexto melhor" é algo de caricato, que enxovalha o rigor jornalístico. Mas o mais dramático é que a caricatura é um sinal dos tempos.
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«DE» de 9 Dez 10

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Excepção

Mais uma vez, o presidente do Governo Regional dos Açores lançou uma pedrada para o pântano de águas turvas da política portuguesa.

Desta vez, o Governo do socialista Carlos César decidiu atribuir um subsídio compensatório aos funcionários que, auferindo vencimentos entre 1500 e 2000 euros, seriam abrangidos por cortes salariais. A decisão do Governo Regional dos Açores levantou de imediato uma vozearia de condenação, abrangendo um largo espectro político, de correligionários PS do líder açoriano, ao excêntrico Governo Regional da Madeira e às hostes do PSD acrescentadas neste caso pelo chefe de Estado.

A crítica mais viperina à decisão do Governo Regional açoriano procurava igualizá-la às numerosas excepções que o Governo da República tem vindo a instituir para pôr a "boysada" das empresas públicas e sectores da classe política a salvo da austeridade que vai deixar de rastos a sociedade portuguesa. Nada mais falso. O Governo do socialista Carlos César não pretende beneficiar quem já é de si privilegiado, por razões de sangue ou de cartão partidário. Não pretende salvaguardar os que auferem pensões e salários escandalosos, num país pelintra. Os visados na decisão do Governo Regional são trabalhadores comuns.

A classe política central, centralizadora e centralista, ficou em polvorosa. O chefe de Estado, que quando lhe falam no Governo dos Açores puxa logo pelas tábuas da lei, suscitou dúvidas sobre a constitucionalidade da decisão. O chefe do Governo invocou suposta falta de solidariedade. Mas o que verdadeiramente os incomoda é que o Governo Regional dos Açores por mais de uma vez se constituiu num perigoso exemplo para a estabilidade da paz podre. Nem tudo está bem assim e as coisas podem fazer-se de outra forma.
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«DE» de 7 Dez 10

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Fome

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Por João Paulo Guerra

AS REPORTAGENS mais ou menos dramáticas que começam a encher páginas de jornais e revistas com o retrato de um país de miséria e fome – este país, o País da Fome, chama-lhe esta semana a revista Visão – não retratam ainda resultados da presente crise nem da próxima austeridade.

Reflectem, isso sim, efeitos de uma política seguida nas últimas décadas. Mas, muito particularmente, reproduzem consequências da política do Governo actual: o poder de compra dos salários e das pensões degradou-se, o desemprego acelerou, o número de pessoas com trabalho em risco de pobreza explodiu, a percentagem de crianças pobres no conjunto da população escolar disparou, a desigualdade impôs-se como regra ao longo dos mandatos do governo de um partido que se chama socialista.

Já não há termos de comparação com outras situações em democracia mas lá chegaremos - a tempos mais dolorosos que os da fome em Setúbal nos anos 80 - não tanto por efeito da crise mas por consequência da cura decidida pelo Governo PS apoiado à bengala do PSD. Como chegaremos, muito provavelmente, aos tempos da penúria salazarista. Esta semana, o primeiro nevão do Outono trouxe notícias de milhares de crianças privadas de ir às aulas, porque não tinham transporte para escolas longínquas das suas residências, uma vez que as escolas mais próximas fecharam. A diferença é apenas que nos tempos negros da ditadura as crianças percorriam aqueles caminhos a pé e descalças. Mas também não sabemos se com a austeridade sobrará dinheiro para a gasolina da camioneta da Câmara e mesmo para os sapatos.

Começa a ser urgente que o Governo promova um lauto almoço de trabalho com os parceiros do costume para discutir, na hora dos fumos e dos néctares raros, o problema da fome em Portugal.
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«DE« de 3 Dez 10

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Penúria

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Por João Paulo Guerra

O LÍDER DO PSD vaticinou, qual Bandarra, 8 anos de penúria para que Portugal se restabeleça da crise. Certamente que o guru do PSD, tal como o régulo do PS, entendem que basta o vaticínio para que os portugueses amochem numa apagada e vil resignação perante os desígnios do destino. A política conduziu ao desastre, a banca promoveu o crédito e o endividamento com todas as facilidades e para todos os fins, o País caminhou para o abismo perante a alegre e irresponsável política das promessas irrealizáveis para arrebanhar votos... E agora, tomem lá oito anos de penúria, escassez, miséria, pobreza para pagar a irresponsabilidade dos políticos - que vão aliás continuar a governar em alternância de impunidade - e o endividamento mais os astronómicos lucros da banca.

Oito anos de penúria significam miséria para a generalidade do povo e perda de oportunidades para milhares de jovens construírem o seu futuro. Mas claro que isso não é questão que preocupe a classe política e económica dominante que, entre velhos e novos-ricos, vai cada vez constituindo uma casta de opulência num país de miséria. Segundo o próprio FMI, é este fosso entre ricos e pobres que está na origem da crise. Portanto, o empobrecimento geral de um país mergulhado em oito anos de penúria só vai gerar novas crises.

A greve geral do passado dia 24, para lá do ilusionismo do Governo em relação aos números, mostrou uma quantidade e qualidade de contestação raramente vista em Portugal. Mas tanto o primeiro-ministro do PS como um eventual primeiro-ministro do PSD sabem que têm na mão o queijo da democracia como a faca da repressão. Ou, em linguagem mais terra-a-terra, a imposição da política da penúria como os blindados e outro equipamento que sobrou da Cimeira de Lisboa.
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«DE» de 30 Nov 10

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Irlanda

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Por João Paulo Guerra

ESTAREI enganado ou, ao longo das últimas décadas, a classe política portuguesa apontou ao bom povo português, a torto e a direito, o exemplo da Irlanda como molde das virtudes da União Europeia, do Euro e do carácter humano do capitalismo selvagem? Não, não estou enganado. Faço uma busca nos arquivos da Coluna Vertebral – já em 11 anos consecutivos de publicação – e surgem-me catervas de referências. A Irlanda para aqui, a Irlanda para ali, no discurso directo de políticos no activo, ou na oratória indirecta de políticos de reserva, lá vinha a Irlanda à baila como exemplo de um pequeno país, um pobre povo, que soube crescer com desenvolvimento e ser feliz. A Irlanda até motivou polémicas entre os seus diversos defendentes portugueses, cada um argumentado contra os argumentos de outros. Mas todos indicando ao bom povo português que pusesse os olhos no exemplo da Irlanda.

E foi assim que chegámos à actual situação: cada português irá contribuir com cerca de 130 euros para ajudar a Irlanda. Ou, melhor dizendo, cada português vai entrar com dinheiro para salvar do colapso o sistema bancário irlandês, dado a delírios extremos e até a frenéticas delinquências na Irlanda como em todo o mundo. Porque é nisso que consiste a «ajuda» à Irlanda, como poderá vir a consistir a «ajuda» a Portugal, por parte de instituições tão «beneméritas» como seja o Fundo Monetário Internacional. Consiste em introduzir dinheiro para salvar os bancos, tendo como contrapartida uma austeridade que vai até à miséria para o povo, com perda de conquistas históricas da civilização e recuos legislativos até aos tempos da lei da selva.

Estão todos muito calados a este respeito. Provavelmente nem se recordam de alguma vez terem falado nessa tal Irlanda.
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«DE» de 24 Novembro 10

Inexorável

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Por João Paulo Guerra

O JORNAL
«Le Monde» publicou uma reportagem do seu enviado a Lisboa à qual deu o título: «Portugal desliza inexoravelmente para a pobreza». Pela reportagem desfila um conjunto impressionante de números. Dá ideia que as estatísticas se revoltaram contra a política portuguesa e aí as temos, num tumultuoso desfile contestatário, denunciando 30 anos de conluio de interesses entre três partidos governantes e as respectivas clientelas. E o resultado é a pobreza extrema que ameaça agora, no mais elementar dos direitos de subsistência, os que já eram pobres mas também a classe média.

Quarenta por cento dos novos pobres portugueses são desempregados ou endividados que anteriormente não viviam na pobreza. É assim Portugal, campeão europeu da desigualdade: novos portugueses e os mesmos ricos, acrescidos de uma casta de novos-ricos que proliferam na babugem dos velhos donos do País, cada vez mais ricos. A reportagem de «Le Monde» assinala, aliás, que Portugal chega a esta fase de crise à beira da falência «sem ter conhecido os delírios bancários da Irlanda» ou «as loucuras imobiliárias de Espanha».

Tem pontos altos a manifestação das estatísticas que desfilam contra as políticas de 30 anos de clientelismo, de destruição da indústria, das exportações, da agricultura e das pescas, tudo em favor da finança e da especulação. Desfila agora a estatística que dá conta de novo impulso da mortalidade infantil. Logo atrás vêm os números que dizem que os cortes orçamentais ameaçam afastar doentes dos tratamentos e que estão iminentes recaídas no consumo do álcool e das drogas ilícitas.

Mas isto é apenas uma manifestação virtual. De resto, e como comentava um leitor desta coluna aqui há dias, «reina a calma na panela de pressão».
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«DE» de 23 Nov 10

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Espiões

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Por João Paulo Guerra

DAVID JOHN Moore Cornwell, a.k.a (‘also known as’) John Le Carré, havia de ter gostado de inventar esta história. Mas lá na Cornualha, onde vive, não há histórias destas. E assim, o autor de "O espião que saiu do frio" tem que se contentar com a sua própria imaginação. E desse modo perde, porque a ficção a consideraria provavelmente absurda, a história do chefe dos espiões que anunciou a demissão na véspera de uma Cimeira da NATO no país cuja espionagem externa chefiava. O caso estará para a espionagem com Saltillo esteve nos anos 80 para o futebol: desencadear uma cena de contestação ao sistema mesmo em cima do acontecimento.

A verdade é que a Cimeira da NATO traz a Portugal mais de três mil espiões. Três mil credenciados, porque com os espiões a sério serão muitos mais. E num tal cenário, mais espião, menos espião não aquece nem arrefece. Acontece, porém, que o demissionário não é um espião qualquer: é, ou era, o chefe do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa, apresentado pelo conhecedor Diário de Notícias como uma espécie de "CIA portuguesa". A velha raposa David John Moore Cornwell exultaria com a informação de que o demissionário frequentou com aproveitamento o Curso de Língua Russa na Associação de Amizade e Cooperação Iuri Gagarin e não descansaria enquanto não lhe encontrasse na biografia uma passagem discreta por Cambridge. Mas isso daria apenas uma novela de ficção.

A realidade é que o chefe dos espiões portugueses anunciou a demissão em cima do acontecimento da Cimeira da NATO, apresentando como razões os cortes orçamentais que vão levar ao encerramento de várias estações da espionagem portuguesa.

A Cimeira da NATO começa com uma brecha no Ocidente e com Portugal a ter que tapar um buraco.
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«DE» de 19 Nov 10

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Cimeira

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Por João Paulo Guerra

VINTE E UM anos após a queda do Muro de Berlim, 20 anos depois da reunificação da Alemanha, 19 anos passados sobre a dissolução da União Soviética e a extinção do Pacto de Varsóvia, a NATO é o derradeiro arsenal, unipolar, da guerra fria. É o armazém da tralha de 46 anos de corrida armamentista e de chantagem nuclear. Não tem qualquer razão de existir, a não ser para fomentar o chorudo negócio do armamento, o poder do complexo e da clique militar-industrial que comanda a política americana, e dar emprego a milhões de apóstolos da guerra, formados em cursilhos na doutrina do poder e do terror militar, que agora pregam pelo Mundo, em vez da extinção do único bloco político-militar, o alargamento da NATO.

O objectivo é velho e relho. Já nos anos 60 do século passado, quando a NATO constituía o maior sustento do aparelho militar português nas guerras coloniais, os falcões da Aliança e os peneireiros de Lisboa sustentavam que o Trópico de Câncer deveria ser entendido "cada vez mais como um limite imaginário", de modo a não perturbar "a eficácia da Aliança". Mas terminada a guerra fria, não há justificação racional para a persistência e globalização da NATO. As ameaças invocadas - como o terrorismo ou a pirataria marítima - podem e devem ser enfrentadas num quadro multilateral de cooperação entre estados no seio nas Nações Unidas. E querer atribuir à NATO funções na luta contra o aquecimento global é o mesmo que entregar o comando das corporações de bombeiros a um incendiário. As guerras da NATO na Europa e no Médio Oriente contribuíram decisivamente para a destruição ambiental em vastas áreas do planeta.

Mas claro que a Cimeira vai aprovar tudo o que lhe aprouver. E assim será até que o mundo construído pelos senhores da guerra lhes rebente nas mãos.
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«DE» de 18 Nov 10

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Boato

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Por João Paulo Guerra

EMPRESAS COTADAS
no PSI 20, que aumentaram lucros em 40 por cento nos primeiros nove meses do ano, devem estar a cantar hossanas à crise. Tal como as grandes empresas que ganham milhões escapando legalmente ao Fisco, apesar das subidas dos lucros. Assim como os milionários da Bolsa, com participações acima dos 10% e por esse motivo isentos de tributação, devem estar a aplaudir a bem-aventurança desta crise que se abate sobre o mundo, a Europa, o país mas, aqui chegada, distingue quem sofre e quem acumula.

E como é assim que se passam as coisas, não faltará daqui a pouco quem diga que a crise é um boato e que aquilo que verdadeiramente se passa é que os imensamente ricos precisam de esportular os derradeiros cêntimos dos bolsos dos últimos dos pobres para encherem um pouco mais o saco. Não me canso nunca, nesta coluna, de citar o velho e grande João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett: "E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico". Garrett foi um liberal do tempo em que os ideais liberais derivavam da liberdade contra a escravatura, e não, como hoje, procuram um étimo na liberdade de escravizar e explorar o próximo até mais não.

Por estes dias, se em Portugal a democracia e as instituições funcionassem, ter-se-ia produzido um profundo abalo com as duríssimas críticas da Igreja à absoluta insensibilidade social da classe política, uma casta que trata da vidinha, em vez que cuidar da causa pública.

E assim vai a crise. Com a miséria anunciada de uma absoluta maioria e a riqueza acumulada dos ricos que se produzem com milhões de pobres.
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«DE» de 16 Nov 10

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Blindados II

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Por João Paulo Guerra

A ADMINISTRAÇÃO não consegue já conciliar as suas mentiras sobre o folhetim dos blindados.

A campanha promocional para compra de seis carros blindados para a PSP foi rodeada do maior alarmismo sobre a iminência de ataques terroristas em Portugal a propósito da realização da Cimeira da NATO. A Administração, ao mesmo tempo que jurava não querer espalhar "cenários alarmistas", foi semeando cenários alarmantes: pululam por aí grupos extremistas, alguns dos quais já receberam treino de acções terroristas, patati, patatá.

A primeira mentirola foi detectada quando a GNR veio dizer publicamente que estava em condições de emprestar à PSP blindados que eram para ter sido usados no Iraque, mas não chegaram a tempo e foram substituídos por carros emprestados pelos italianos. O que não impediu a GNR de adquirir blindados que chegaram fora de tempo e, por esse motivo, estarão a enferrujar por falta de uso. Alguém terá percebido então que o alarmismo se destinava simplesmente a explicar o gasto de cinco milhões para compra de seis blindados excedentários em relação às necessidades da PSP e GNR.

Certo é que, sendo dado adquirido que os blindados não chegam a tempo da Cimeira, a encomenda se mantém. Até parece que Portugal não tem mais nada em que empatar dinheiro a não ser em material repressivo.

Finalmente, quando se confirmou que os blindados não iam chegar a tempo da Cimeira, a Administração deixou escapar que afinal os blindados se destinam a possibilitar a entrada da PSP nos "bairros problemáticos". E como todos os antecedentes de casos deste tipo demonstram, os bairros tornar-se-ão muito mais "problemáticos" com patrulhas de blindados.

Uma verdade parece flutuar à superfície de tanta mentira: os blindados destinam-se a combater "inimigos internos".

«DE» de 12 Nov 10

Vento

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Por João Paulo Guerra

NÃO ESTAVA previsto, como garantiu um membro do Governo, mas passou a estar: Sexta-feira há tolerância de ponto em Lisboa, excepto para 60 chefes de Estado e de Governo, respectivas comitivas e guarda-costas, para além de um batalhão de polícias mobilizado para garantir a segurança da Cimeira da NATO, em especial contra a ocorrência de um atentado terrorista que o ministro da Administração Interna tem a profunda convicção que estará iminente.

O ministro foi acusado de "alarmista", mas que seria dos sistemas de alarmes se não fossem os alarmistas? Se não houver atentado - como se espera - o ministro vai dizer que mais vale prevenir que remediar. Se houver, o ministro vai proclamar a sua presciência: "Eu não dizia?".

A convicção do ministro baseia-se na presença, que já terá sido detectada em Portugal por serviços secretos "amigos", de elementos ligados a grupos extremistas, treinados no uso de armas e explosivos, muitos deles antigos polícias e militares. E aqui, a convicção do ministro começa a fazer algum sentido. É que antigos polícias e militares, juntos, ao vivo e em número de "muitos", das duas, uma: ou andam infiltrados entre outros extremistas para ver em que param as modas, ou preparam alguns efeitos especiais que virão a dar razão ao ministro e justificarão, por parte da Cimeira, a adopção de medidas de maior dureza e largueza contra o inimigo sem rosto do "terrorismo". Porque quanto ao terrorismo com rosto, o que se conhece, o próprio Bin Laden, foi uma criação de um serviço secreto.

E agora, a vigilância aí está. Sexta-feira passada, em comunicação telefónica com um edifício na zona limite da área da Cimeira foi-me dito que se notava um certo "vento" na linha. Mas, como toda a gente sabe, "o vento não bate assim".
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«DE» de 15 Nov 10