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sábado, 12 de fevereiro de 2011

O algodão não engana

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Por João Duque

POR QUE RAZÃO anda o Banco de Portugal a dar conselhos onde não deveria ser chamado? Afinal os bancos são ou não privados?

Nos dias de hoje a dúvida que ronda os conselhos de administração é a seguinte: vamos, ou não, propor à assembleia-geral o pagamento de dividendos aos acionistas?

À medida que são apresentadas contas públicas, é cada vez maior o número de empresas portuguesas cotadas que anunciam que não vão "abrir os cordões à bolsa" para pagar dividendos.

A questão é antiga e sempre foi e será discutida não só pelos executivos, mas também pelos académicos.

Se os impostos forem exatamente iguais para qualquer tipo de remuneração (distribuição de resultados ou mais-valias) do ponto de vista teórico será exatamente igual para os acionistas receber ou não receber dividendos. Quem quer liquidez que se desfaça de uma parte das suas ações. Quem não quer que fique com elas. Se receber dinheiro direto ou indireto é manter intacta a riqueza do acionista, é então indiferente pagar ou não pagar dividendos.

E até a ideia de entregar ações a acionistas em lugar de dividendos em dinheiro é indiferente porque no dia em que os acionistas receberem as novas ações o valor das 'velhas' cai na exata medida do valor das 'novas' distribuídas, e a riqueza do acionista fica exatamente igual.

E pode suceder que pagar dividendos seja prejudicial para os acionistas se o mecanismo fiscal penalizar mais o pagamento às mais-valias.

Ora quando a fiscalidade é neutra, então há outras forças que influenciam a decisão, e a mais importante, como sempre, é a psicológica, ou não fosse a economia uma ciência social...

Se uma empresa não distribui lucros, fica mais forte do ponto de vista do equilíbrio financeiro, com mais capital próprio acionista a suportar as dívidas contraídas, fica com mais dinheiro disponível para aplicar na sua atividade e por isso o custo do dinheiro tenderia a baixar porque estaríamos perante uma empresa mais sólida.

Mas se não paga dividendos, o mercado poderá ler isso como uma preocupante fraqueza de tesouraria, um aumento dos capitais próprios que são os mais caros para remunerar, e mais dinheiro nas mãos da gestão que pode ser menos cuidada na defesa do interesse do acionista nas suas aplicações... E aqui o algodão não engana.

Qual das duas teses vai vingar na atual situação de Portugal? Depende. Na maioria dos casos o mercado vai ler caso a caso. Mas na banca vai ler sectorialmente. Aqui todos sabemos que a banca portuguesa não consegue a liquidez que desejava e necessita de reforçar os capitais próprios por exigências crescentes da regulação bancária internacional. Se não fosse o Banco Central Europeu a usar um mecanismo de financiamento de curtíssimo prazo para sustentar a banca (e o Estado português) no médio prazo (sim, porque já lá vai mais de um ano nesta marmelada de financiamento europeu), a atividade económica em Portugal já tinha sido pulverizada.

A decisão de distribuição de dividendos cabe aos acionistas e deve partir da iniciativa da gestão. Por isso não se compreende por que razão anda o Banco de Portugal a dar conselhos onde não deveria ser chamado. Afinal os bancos são ou não empresas privadas?

«Expresso» de 21 Jan 11

sábado, 29 de janeiro de 2011

Medo, pânico ou pavor?

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Por João Duque

A CHINA com medo da fraqueza do dólar. Os cristãos com medo dos árabes. Os árabes com medo da dívida portuguesa.

Andam todos assustados. Os funcionários públicos com medo do dinheiro não chegar ao fim do mês. Os açorianos dependentes do orçamento, com medo de não poderem ser compensados pelos cortes. Os médicos reformados com medo de não poderem acumular. Os bolseiros com pavor por terem de devolver parte do que receberam. Os jovens licenciados com medo do desemprego.

O desemprego com medo do INE. O INE com medo de não conseguir baixar o número de desempregados com a nova metodologia. O IGCP em pânico com os leilões. O mercado com medo de Portugal. As escolas privadas com medo de fecharem.

Manuel Alegre assustado só de pensar em ficar atrás de Fernando Nobre. Francisco Lopes de ficar atrás do Coelho da Madeira. A Alemanha com medo da crise espanhola. A França com medo das atitudes alemãs. O Governo com pavor de não conseguir travar as providências cautelares dos professores. A minha filha com medo de não terminar o curso.

O Ministério das Finanças em pânico com a execução orçamental. A Direção-Geral dos Impostos com medo de não cobrar o que todos lhe imploramos. Os juízes com medo dos cortes nos complementos salariais.

O BCE com medo de ficar demasiado exposto aos créditos exorbitantes a bancos portugueses e ao Tesouro nacional. José Sócrates com pavor do FMI. A China com medo da fraqueza do dólar. Os cristãos com medo dos árabes. Os árabes com medo da dívida portuguesa. As Fundações e institutos públicos com medo do FMI. José Eduardo Bettencourt com medo das derrotas do Sporting. Os reformados com medo de cortes nas pensões. As eólicas com medo de serem devidamente avaliadas. Os irlandeses, gregos e portugueses emitentes com medo das agências de rating. Teixeira dos Santos com medo dos 7%, dos 8%, dos 9%... As agências de rating com medo de serem pouco conservadoras.

A Caixa Geral dos Depósitos com medo do BPN. A Galp com medo do Amorim. O mercado com medo de Steve Jobs. O José Mourinho com medo de não ganhar a liga espanhola. O Bloco de Esquerda com medo de ter razão. Os nossos submarinos com pavor de meterem mais água. A WikiLeaks com medo de não ter mais informações para divulgar.

Os portugueses com medo do estado do Estado Social que lhes mentem manter. As famílias numerosas com medo da perda do subsídio. O FMI com medo de Portugal. O Reino Unido com medo da inflação. O Benfica com medo de não ganhar nada. A RAVE com medo de não ter TGV. Todos com medo dos preços do petróleo. O Banco de Portugal com medo do preço do ouro. Os exportadores com medo do euro. Os importadores com medo do euro.

O Medina Carreira em pânico porque tem razão. O Alberto João Jardim com medo de fumar. E eu com pavor da Conceição!

Que raio de maneira de começar a década!

Até o António de Almeida está com medo...
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«Expresso» de 21 de Jan 11
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NOTA (CMR): O António de Almeida referido no fim do texto é o autor das crónicas publicadas no «Expresso-Economia», nas colunas ao lado das de João Duque.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

E se não desculparmos?

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Por João Duque

PORTUGAL está assim. A organização do acto eleitoral fica manchado pela incapacidade dos sistemas electrónicos funcionarem adequadamente em momento da exigência.

O planeamento desta actividade falhou. A execução da mesma foi gravemente desadequada. Não houve maneira de resolver o assunto nem forma de o mitigar. Tratou-se de um assunto menor, trivial? Não. A base da Democracia é o voto e o sistema eleitoral. Por isso, há delegados dos organismos internacionais às eleições dos países emergentes. Em qualquer país da Europa o ministro tinha pedido a demissão. Em qualquer ditadurazeca o ministro tinha sido posto no olho da rua. Em Portugal pede-se desculpa. Por cá só Jorge Coelho assumiu as responsabilidades políticas pela queda de uma ponte. Queda da ponte que não supervisionou, por uns burocratas que não mandaram vistoriar, por um sub-director geral que não sub-dirigiu, por um director geral que não dirigiu, por um Secretário de Estado que não secretariou... O assunto foi grave. Ele assumiu. Isso elevou o estatuto da política em Portugal.

2. O Ministro das Finanças apresenta a execução orçamental de 2010. Apesar de estar há 5 anos no lugar e de ser urgente tomar medidas para corte nas despesas do sector Estado, o resultado da péssima execução de 2010 é feito à custa de aumento de despesa financiada por um aumento de receita. A ideia foi simples: como dá trabalho e é impopular cortar despesa, como é difícil escolher, vai-se buscar onde "ele" está, e que é o bolso dos portugueses, sempre na ideia vã de que fazendo as coisas sob a tutela do Estado se faz melhor que no privado. Para o subsector Estado o saldo primário, o saldo corrente e o saldo global, tiveram pior desempenho que os do ano de 2009. Salvou-se o saldo dos Fundos e Serviços Autónomos à custa do célebre artifício contabilístico do Fundo de Pensões da Portugal Telecom. Viva a habilidade! O dinheiro que recebemos é receita de hoje, mas a sua contrapartida que são as pensões a pagar no futuro, são despesa dos que as pagarem! Quem vier atrás que feche a porta e apague as luzes. Aqui nem desculpas houve.

O Governo embandeirou em arco com a vitória de um défice mascarado e irreal, abaixo do prometido, e a única satisfação que me dá, no meio de tudo isto, é saber que os actuais ministros e primeiro-ministro irão ser mais tarde pensionistas de Portugal, e que assim, irão ficar com as migalhas do pão que eles próprios destruíram. É pouco o consolo, mas é algum e a prazo...

O reconhecimento do erro de más execuções sistemáticas é agora patente. O Governo acaba de aprovar o Decreto-Lei que estabelece as normas de execução do Orçamento do Estado para 2011. E aqui se reconhece como não se pode funcionar. E como só se mexe em equipa que perde, esta perdeu. Desculpe?...
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«DE» de 27 Jan 11

sábado, 15 de janeiro de 2011

A ilha do Tesouro

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Por João Duque

O ESTADO emitiu pelo menos 5000 milhões de euros em dívida pública que é detida pelo próprio Estado! O Estado a dever a si próprio!

Terra à vista, capitão!

E avistada a prometida guarida costeira, mandou o nosso capitão, o terror dos mares meridionais, fundear a nau e aparelhar a escuna com 15 homens que com ele foram em expedição a terra seca.

E chegados a terra, foi o capitão orientado pelo mapa em pele de índio pintado, alcançando o almejado local onde antes o escondeu. Deitaram mãos ao labor os mais fortes da marinhagem. A expectativa crescia pois as enxadas, que a terra atacavam, nada traziam, nem deixavam adivinhar sortes melhores que as de uma toca maninha. Onde estaria o Tesouro? Tê-lo-iam roubado? Estaríamos a escavar em descuidado lugar?

Fizeram saber que 18 gestores públicos, não acatando as ordens do Ministério das Finanças, terão aplicado 315 milhões de euros fora do Tesouro. Isto é, o tesouro das empresas fora 'escondido' fora do Tesouro da fazenda nacional.

A ideia do Ministério das Finanças é óbvia: concentrar toda a tesouraria e disponibilidades de todas as instituições públicas para assim evitar que o Estado se endivide mais. Para quê pedir dinheiro emprestado pagando juros elevados para financiar uns se há outros com excesso de tesouraria que o aplicam a taxas mais baixas? Quem ganha com a intermediação? Os intermediários. Quem perde com a intermediação? O Estado.

Os gestores públicos defenderam-se argumentando que nem sempre o cofre da fazenda pública permite o tipo de operações que eles desejam: contratos de fixação de taxas de juro a prazo, credit default swaps, forwards cambiais, opções sobre matérias-primas ou produtos energéticos, etc. Esses depósitos podem então ser vistos como um custo implícito destas empresas para acederem a produtos financeiros de que necessitam e que os concorrentes usam.

Nesta incessante e fundamental busca pelo corte de custos, algo me escapa com muito maior dimensão. É sabido que o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social terá um património aproximado de 9,5 mil milhões de euros. Também se sabe que, por regulamento, mais de 50% deste património têm de estar aplicados em títulos representativos de dívida pública portuguesa ou outros garantidos pelo Estado português. E é aqui que o caso parece bizarro pois o Estado emitiu pelo menos 5000 milhões de euros em dívida pública que é detida pelo próprio Estado! O Estado a dever a si próprio!

E para quê? Para fazer face a oscilações do orçamento da Segurança Social (Estado), dizem. Mas se para poder responder a compromissos assumidos tem de vender o que tem em carteira (dívida pública nacional) como é que isso difere da emissão de nova dívida? Se não houver quem compre no mercado primário acham que alguém lhe pega no mercado secundário em caso de necessidade?

E já nem falo na bizarria dos juros pagos pelo Estado ao dito Fundo do Estado!

Se procuram formas de eliminar dívida abatam esta de imediato ou então, o que seria muito mais sensato, troquem-na por outra. Mas não se esqueçam de que em tal caso estamos a endividar-nos para financiar terceiros...

Jack Sparrow, o pirata das Caraíbas, está feliz: encontrou o Tesouro cheio de títulos da sua própria dívida!
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«Expresso» de 8 Jan 11

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Safámo-nos! (por enquanto…)

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Por João Duque

O LEILÃO DE ONTEM promovido pela república portuguesa acabou com um final feliz. Não tanto em termos de taxa de custo do dinheiro, mas mais em termos de procura insatisfeita.

Isto mesmo depois de ontem terem sido reveladas as estimativas do Banco de Portugal (BdP) sobre a evolução da economia portuguesa para 2011 e 2012.

E, nessas previsões, o que muda face às últimas que foram libertadas sobre Portugal, isto é, as do Governo?

Em primeiro lugar "o grande número": enquanto o Governo afirmava na publicação do orçamento, e com entusiasmo, uma subida de 0,2% do PIB (eu acho que ficaríamos mais felizes se tivessem anunciado 0,24% o que não mudava grande coisa, mas dava mais alento por estar mais próximo de 0,25% e assim mais próximo de 0,3%, o que já era uma variação de 50% face ao previsto...) o Banco de Portugal vem agora anunciar uma desgraça, isto é, uma recessão com queda do PIB na ordem dos -1,3%.

Em segundo lugar há diferenças (justificadas) nas previsões dos diferentes componentes do Produto.

Para o consumo privado o BdP prevê uma quebra de 2,7% em resultado das medidas restritivas impostas pelo novo Orçamento do Estado, enquanto o Governo estimava apenas uma insignificante descida de 0,5% como se o aumento dos impostos e redução de salários fosse irrelevante... Para o investimento o BdP estima uma quebra de 6,8% enquanto o governo antecipava apenas uma descida de 2,7%. Para as exportações o BdP apenas antecipa uma subida de 5,9% quando o Governo aguarda uma subida de 7,3%. No diferencial entre as exportações e importações o BdP estima 7,8% o Governo delirava com uns expressivos 9%...

Afinal, nesta panóplia de expectativas, apenas para o consumo público se espera uma descida mais acentuada no Governo do que nas previsões do BdP. E isto é realmente bizarro... Se o Governo se compromete a cortar seriamente no consumo público, prevendo em Outubro uma descida de 8,8%, então como entender que o BdP venha agora declarar que só antecipa uma quebra de 4,6%? Significa isso que o BdP não aceita a capacidade e empenhamento do Governo na execução orçamental, ou que o modelo de estimação do Governo neste aspecto não vale um caracol?

Ora, a acreditar na vontade do Governo (mesmo que forçada) para reduzir o consumo público, e se introduzirmos no modelo a sua estimativa, então a minha previsão para quebra do PIB passa logo para -2,1%. E se formos menos optimistas quanto à capacidade de substituição de importações ou do efeito da queda da procura interna nessas importações, a somar ao efeito da quebra do consumo público apontado, então estamos já a falar de quebra do PIB na ordem dos 3,1%.

Isto é, quando ouvi "o grande número" de quebra estimada pelo BdP para o PIB para 2011 o que me passou pela cabeça foi: "Só?" É que já no DE no Outlook para 2011 apontei um número para a queda do PIB: nunca inferior a 1,8%.

Grandes conclusões:

1) atenção, rapaziada da passa, se querem LSD de qualidade experimentem os passadores da zona da Estação de Sul e Sueste;

2) Carlos Costa, quando sair do Banco de Portugal terá de procurar emprego noutro lado se o Partido Socialista ainda estiver no poder...
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«DE» de 15 Jan 11

sábado, 1 de janeiro de 2011

2011: ano para recordar

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Por João Duque

2011 VAI SER um ano diferente dos anos anteriores porque a lua de mel acabou e vem aí, finalmente, o doce remanso do casamento.

Na campanha eleitoral o partido do Governo tinha-nos prometido uma vida santa. Aumentaram-me em 2009 e baixaram-me o IVA. Apaixonei-me logo e votei. Agora andam para aí uns neoliberais a dizer que vamos morrer este ano. Mentira! Não acreditem! Vejam bem como vai ser 2011...

O início de janeiro não vai ser a hecatombe. Em janeiro pouco se vai sentir o efeito do novo Orçamento de 2011 porque vamos todos viver esse mês com o ordenado de dezembro. Só o IVA será um pouco mais pesado. Mas o que são 2%? Uma ninharia ao pé do resto da conta que já são 121%!

Depois virá fevereiro. Mas como o mês é mais curto, logo chegará o desafogo e a folia, porque mais depressa receberemos o novo ordenado!

Aí vem março. Longo e interminável, com 31 dias, vamos ter alguma dificuldade em enganar a barriga, mas este é o momento de iniciar a dieta saudável para prepararmos a praia. Não é o que dizem os médicos? Se queremos estar com barrigas invejáveis de saúde em julho e agosto este é o mês certo para se começar a dieta! Além de mais, já os enganámos em dois meses e se a coisa correr bem o FMI ainda cá não entrou...

Depois abril. É possível que as taxas Euribor continuem a subir, que algumas famílias parem de pagar a hipoteca, mas estou otimista porque finalmente vamos ter os testes de stresse à séria: em vez de simulações vamos ter os nossos bancos a ver como é que o capital se comportará! E mesmo que o mês acabe a 15, não se esqueçam de que o mês tem um feriado que este ano calha à 2ª feira!

E logo a seguir há o 1º de maio! Todos para a rua e um enorme piquenique. Os neoliberais ainda não perceberam o benefício da contestação. As centrais sindicais darão muito dinheiro a ganhar à rapaziada das bifanas e coiratos que os vendem nas rulotes de apoio às manifs. E, além disso, para apoio às manifestações ainda temos os negócios dos bonés, das T-shirts, das bandeiras e das faixas de apoio ou contestação, dos transportes para o Marquês de Pombal e volta, a partir de São Bento ou Terreiro do Paço. Estou certo de que estes economistas de terceira ainda não contaram com este impulso à economia...

A maio segue-se junho, e com ele os subsídios de férias! E assim vamos pagar os saldos do cartão de crédito que tivemos de acumular! Estão a ver? Qual crise? E já se foi meio ano!

Julho e agosto são férias. Mesmo repartidas não faz mal. Ou vamos nós ou eles não vêm...

E logo setembro, outubro e novembro... Mas aqui vamos ter mais um subsídio e as festas de Natal e final de ano com muito amor, carinho e solidariedade. Estou certo de que ainda irei encher um saquinho de plástico com apoio caritativo a entregar à saída do supermercado e que irei levantar no outro lado da fila. Estou certo que o amor que nutro pelos pobrezinhos como eu não morrerá e não me deixarei cair!

Queriam deitar-me abaixo? Nem pensem! E lembrem-se: se lá chegarmos, estamos vivos! E assim poderemos votar neles outra vez! O que mais quereis?
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«Expresso» de 23 de Dez e 2010

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Euro ou novo escudo?

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Por João Duque

QUANDO EM 1998 nos preparávamos para aderir ao euro participei em inúmeras reuniões de trabalho para prever as consequências e questões práticas dessa adesão. Para além das questões legais que se colocavam, os detractores de tanto tempo consumido em reuniões e demais preparações sumariavam todo o esforço à "questão dos arredondamentos". Isto é, para além de leis que obrigavam a que nenhum devedor se furtasse ao pagamento de dívidas em escudos (moeda que ia desaparecer, podendo invocar-se que não se poderia entregar o que já não existia), as questões resumiam-se a muito trabalho de computação para preparar os sistemas às novas unidades monetárias, à educação para a nova moeda, e aos arredondamentos (para que contas iriam verter todos os arredondamentos feitos em milhões de contas).

Hoje há já países recentemente chegados ao euro que expressam opinião pública, através dos seus ministros, de que Portugal deveria sair do euro e é com tristeza que assisto a um governo impávido e sereno a ver pespegarem-lhe com tudo isto na cara sem que tenha a mais pequena reacção ao tema ou que explique aos portugueses quais os problemas que se colocariam a essa nova mudança.

Podemos pensar que sair do euro é simplesmente o movimento inverso ao da entrada. Isto é, pode imaginar-se que o problema se resume, mais uma vez, à lei, à educação, à informática e aos arredondamentos. Mas não. O problema é que agora, ao contrário do que sucedeu na entrada, a moeda de que sairíamos continuaria a existir, pelo que a questão legal passa a ser bem diferente da anterior, porque teria imediatas e pouco conhecidas consequências económicas. Antes, quando entrámos, bastava decretar que todos os títulos expressos em escudos (e que são passivos ou deveres de uns, são activos ou direitos para outros) seriam automaticamente convertidos em euros. Caso o não fossem caducariam pela impossibilidade de entrega do que já não existia. Hoje, porém, se saíssemos do euro, essa moeda ainda existiria e haveria que decidir se converteríamos ou não na nova moeda todos, só alguns, ou só os novos os activos e passivos, à medida que fossem criados.

A discussão da valorização das variáveis ‘stock' (direitos existentes), associada à da valorização das variáveis fluxo (rendimentos futuros gerados já na nova moeda escudo se originados internamente, ou noutra moeda, se produzidos externamente), e, ainda mais relevante, a discussão em torno da potencial reacção dos mercados a esta conversão, ou sobre o interesse desses mercados por activos expressos no novo escudo está ainda por fazer. Mas uma coisa parece-me certa: se convertermos todos os direitos e responsabilidades na nova moeda, com a desvalorização imediata que prevejo, com o pouco crescimento que a nossa economia parece prometer, mesmo num regime de câmbios livre e controlado pelo nosso Banco Central, teríamos a debandada generalizada dos credores internacionais que veriam nessa desvalorização um forte ‘hair cut' nas suas posições. E pergunto, quem depois subscreveria novas emissões de dívida feitas em escudos? E que taxas não teríamos de oferecer para atrair novos credores? Deus queira que essa não seja a contrapartida exigida pelos "amigos" (FMI e Fundo Europeu de Estabilização Financeira) que prevejo cada vez mais prováveis a envolverem-se na nossa recuperação.
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«DE» de 30 Dez 10

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A última lição

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Por João Duque

HÁ, NAS UNIVERSIDADES, uma prática comum de solicitar aos professores que se aposentam, a prestação de uma “Última Lição”. É uma aula triste por natureza, porque é suposta ser essa a última lição formal do lente. E é sempre triste quando um professor se despede da sua profissão, haja embora alguns que vêem na sua saída a maior das alegrias...

No caso do professor Ernâni Lopes, que eu saiba, não houve a última lição. No entanto, sem a saber, ele proferiu-a, e de que maneira, ao participar em Junho de 2010, num programa da SIC-Notícias (Plano Inclinado), e em que tive o prazer de partilhar a sua companhia em estúdio.

Porque estas coisas da imagem podem desaparecer dos ‘sites' onde ainda podem ser visitados, relembro aqui, por escrito, os meus apontamentos dessa última lição. Sinto que ele nos deixou uma lição para vermos e revermos durante os próximos anos, porque nos legou uma visão para Portugal, para um tempo entre o fim do 1.º e o final do 2.º quartel do século XXI.

Deixando a visão do curto prazo que ele designou de "superficial" e que no espaço temporal do imediato levava a focar as atenções para os mercados, para a emergência das Bolsas, para a angústia opressiva da dívida externa, as quais iam exigindo medidas concretas e de projecção mediática, ele pedia a nossa atenção, o nosso fôlego, para o mergulho de profundidade. Ele sabia que essa é a zona onde ninguém quer mergulhar e por isso, ao saber que é difícil, mais importante se torna a nossa dedicação e meditação.

Nesta óptica ele chamou a atenção dos portugueses para a relação de Portugal com a União Europeia, embora não esquecendo o que tem de voltar a ser vital: a nossa relação com África e com o Brasil.

E depois chamou para as acções a realizar no longo prazo. E essas passam por uma alteração dos valores, das atitudes, dos padrões de comportamento, no fundo o que mexe com a nossa credibilidade.

A isso chamou a "Via Útil para o Futuro" e foi aconselhando: o facilíssimo, deve ser substituído pela exigência; a vulgaridade, pela excelência; a moleza, pela dureza; a golpada pela seriedade; o videirismo pela honra; a ignorância pelo conhecimento; a mandriice, pelo trabalho; a aldrabice, pelo trabalho.

Fiquei sem saber se a lista indicada e as transformações propostas eram, de algum modo, uma finíssima ironia aos Governos de Portugal, que muito ocupados com o curto prazo, vão descurando o que de profundo e importante deve ser pensado, devendo agir-se em conformidade.

Mas sei que, se dedicarmos um lustre a cada uma destas alterações sugeridas pelo professor Ernâni Lopes, temos aqui trabalho para 40 anos. E chegaremos ao final da primeira metade deste século com a casa bem arrumada para prosseguirmos com serenidade e determinação para o final do 1º milénio da nacionalidade com uma cabeça bem diferente: mais erguida e mais orgulhosa.

Sei que dificilmente poderão contar comigo para 40 anos de actividade tão difícil e tão árdua, mas vale a pena tentar. Vamos começar o ano a fazer um bocadinho de força nesse sentido?
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«DE» de 16 Dez 10.

NOTA (CMR): o vídeo do programa referido no 2.º parágrafo pode ser visto [aqui].

sábado, 4 de dezembro de 2010

E vem aí o 'tio' FMI?

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Por João Duque

PORQUE É QUE acusam os mercados de serem impiedosos se não somos capazes de fechar a boca aos bolos e às guloseimas?

O tio FMI foi ajudar a nossa prima irlandesa. Jovem e estouvanada, a nossa prima é uma gastadora como não há. Imaginem que o Orçamento do Estado irlandês é 93% do nosso em termos de despesa total quando eles são um pouco menos de metade que nós em termos de população, mas com a mesma dimensão em termos de PIB. Ainda por cima, a pequena meteu-se com um banqueiro a quem arruinou e a quem a família quis compensar.

Conclusão, como os primos da Irlanda não têm fortuna para tudo, ajoelham aos pés do tio solteirão, para a habitual ajuda: o tio FMI, aquele velho solitário, mas cheio de dinheiro, a quem todos recorrem em caso de aperto sério.

Mas o velho é exigente. Empresta e safa quando necessário, mas depois não larga a porta... Sempre de volta de nós, não deixa fazer mais nada. Não podemos ir passar férias, não podemos jantar fora, não podemos mudar de guarda-roupa, jóias ou automóvel. As festas passam a ser vistas de fora e passados um ou dois anos já suspiramos com saudades do tempo em que nos ríamos na cara dos credores com o descaramento de quem pede e sabe que não vai pagar, pelo menos com o suor do seu rosto...

A Irlanda estava em apuros. Gastava muito mais do que nós. No curto prazo o caso parece mais grave, mas ela tem várias qualidades que invejo. É jovem (a população de jovens abaixo dos 15 anos de idade é de 21% enquanto a nossa é de 16%). Tem menos velhotes para cuidar (a população de idosos acima dos 65 anos de idade é de 12% enquanto a nossa é de 18%). A língua materna é o inglês, faz parte da cultura e da mentalidade anglo-saxónica, e é mais educada. A composição do PIB irlandês ainda depende mais de 50% da agricultura (5%) e da indústria (46%), bens que pode exportar e com isso recuperar a beleza de outrora. O nosso PIB depende 74% dos serviços, a vasta maioria deles não transacionáveis...

Somos mais pobres do que a nossa prima, gastamos menos per capita em termos de despesa pública e não desgraçámos (por enquanto) nenhum banqueiro de vulto (há dois que se queixam, mas nada que se compare com a encrenca irlandesa).

Agora sentimo-nos sós e abandonados ao sabor dos maus investidores que não dão tréguas ao custo da nossa dívida. E a dúvida é saber se seremos capazes de fazer o que prometemos. Até agora, mês a mês, a nossa execução orçamental é uma vergonha no confessionário. A promessa de que "para o mês não voltarei a pecar" esbarra com a nossa incapacidade para estancar a gula pecaminosa... Mais dois pai-nossos e duas avé-marias... O ano de 2010 ainda está para acabar e todos sabemos que não vamos conseguir cumprir as juras prometidas sem malabarismos contabilísticos. E não são os juros... Eles só desequilibram quem já está em queda!

Porque é que acusam então os mercados de serem impiedosos se nós não somos capazes de fechar a boca aos bolos e às guloseimas?

Acabámos de prometer descer os salários e já corremos a excecionar um grupo!

O tio FMI chegou a Dublin e já começou a apertar: 25 mil funcionários borda fora, cortes adicionais ao prometido.

Alguém tem dúvidas que, dado o nosso trajeto de incumprimento sucessivo, vamos mesmo chamar o tio FMI? Então o melhor é gostar dele. Tratá-lo por um carinhoso 'tio' é um bom começo.
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«Expresso» de 27 de Nov 10

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

“Não sei se temos capacidade de resistir”

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Por João Duque


«DE»: Portugal deve pedir ajuda?

JD: Se Portugal tiver de pedir ajudaé porque os mercados assim o impõem e em resultado daquilo que pode ser a incapacidade de Portugal vir a recolher financiamento no mercado internacional. Ou seja, é um pouco resultado daquilo que é uma impossibilidade. Agora, de livre e espontânea vontade é difícil de dizer, até porque esse tipo de pedidos agravam as condições do rigor do controlo orçamental e normalmente nãoé fácil. É preferível não a pedir e pedirmos créditos e controlara despesa, admitindo que temos condições e que o mercado não nos penalize.

«DE»: Em que condições deveria Portugal negociar essa ajuda se a pedisse?

JD: Pedir ajuda depende das condições financeiras do apoio. Seria caricato pedir ajuda para estarmos a pagar o mesmo preço sem ajudas. O custo de capital terá de ser mais baixo. Mas o que deveria acontecer era haver emissão de dívida europeia, era um passo importante. Se conseguíssemos emitir dívida federal, duvido que o preço fosse além dos 3,5 ou 4%, o que é completamente diferente do que financiá-lo a 7% como estamos agora. Se conseguíssemos crédito em condições razoáveis, acho que era bom não termos de recorrer à ajuda. Para mim, o ‘trade off' é: se forem razoáveis as condições que nos oferecem para o custo desta dívida, devemos pensar se de facto vale a pena.

«DE»:Até Dezembro, a pressão para pedir apoio vai ser maior?

JD: Infelizmente, acho que a pressão já é enorme e eu não sei se temos capacidade para resistir. O problema põe-se ao nível dos bancos. O BCE vai começar a empurrar os bancos para o mercado do crédito internacional e aí, sim, temos um grande problema porque depois o mercado não concede crédito aos bancos. Ou o mercado internacional está depois aberto ou então o Estado tem de entrar com dinheiro fresco no capital dos bancos para não deixar cair em incumprimento. E isso piorava a situação. O Estado teria de recorrer a mais financiamento.
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«DE» de 29 Nov 10

sábado, 20 de novembro de 2010

Auditando as PPP

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Por João Duque

PORQUE NÃO FAZEM uma análise séria de simulação às responsabilidades futuras com base nos pressupostos usados?

Como já vem sendo meu hábito, preocupado com o futuro, fui ler com atenção especial o capítulo do Relatório do Orçamento do Estado dedicado às PPP (Parcerias Público-Privadas) para perceber qual o passivo que vou herdar...

O quadro da previsão desses encargos futuros começa a ser verdadeiramente preocupante para um 'jovem' como eu, isto porque os fluxos previstos vão até ao simpático horizonte de 2050, isto é, quando eu tiver 89 anos...

Adiante. O quadro que até há dois anos apresentava os dados agregados anualmente para todos os tipos de PPP é agora dividido em dois. Será por medo aos valores? Não tem problema porque eu ainda sei fazer contas de somar e verifiquei que para o ano de 2011 o encargo com as PPP será de 842 milhões de euros (84 por cada português). Depois, esse valor vai subir nos anos mais próximos até atingir um pico de 1362 milhões de euros no ano de 2016. A partir daí, 'a coisa' começa a jogar a 'nosso' favor, no pressuposto de que as SCUT passarão a ser COMCUTS - Com Custo para o Utilizador, permitindo um 'lucro' que chegará a 2483 euros no ano de 2050!

Quando somamos todos os valores apresentados no quadro a que me refiro, verifica-se que o valor final é muito positivo. Dirão os fãs das PPP que somando todos os custos e todos os proveitos das ditas, o valor final, e total, é positivo e ronda 19.825 milhões de euros! Coisa extraordinária, no mar de dívidas em que hoje nos movemos!

Mas aqui é que a chamada porca torce o rabo, porque se por um lado é altamente duvidoso que os fluxos previstos a 40 anos de distância tenham a mesma certeza dos previstos para os anos mais próximos, por outro, quando se atualizam estes valores para os dias de hoje, de acordo com uma técnica simples ensinada no primeiro ano de qualquer faculdade de economia, para podermos comparar e somar com verdade os capitais exigidos ou disponibilizados em momentos de tempo diferente, chegamos à conclusão que esse valor atual é negativo e na ordem dos 6284 milhões de euros... Quer isto dizer, que se o Estado quiser transferir estas responsabilidades para alguém terá de pagar hoje esse valor equivalente para se livrar de mais este volumoso fardo...

Depois fui testar qual o impacto que terá uma alteração às taxas de atualização, neste valor atual, por variação das taxas de juro que a República portuguesa suporta com o seu financiamento. Concluí que, admitindo que os fluxos previstos são completamente independentes dessa variação de taxa de juro, uma subida de um ponto percentual nas taxas de juro implica um agravamento de 700 milhões de euros no passivo que representam hoje essas PPP.

Por que razão não publica o Estado, no Relatório do seu Orçamento, este tipo de análise que qualquer caloiro de Economia ou Gestão sabe fazer? Porque não fazem uma análise séria de simulação às responsabilidades futuras com base nos pressupostos usados? Têm medo da auditoria?

Não receiem, pois hoje até há antidepressivos em genéricos!
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«Expresso» de 13 Nov 10

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Racionalidades

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Por João Duque

POR VEZES, os governantes esquecem que os agentes económicos, apesar de tudo, são racionais. Por isso, um anunciado aumento de impostos provoca reacções que não são de espantar. O problema é que, por imposição legal, tem de haver um prazo mínimo entre o anúncio da intenção, a discussão da proposta, a aprovação da ideia e finalmente a sua implementação. Tal prazo é, por vezes, na óptica do Estado, muito penalizadora, uma vez que entre o anúncio de uma medida e a sua entrada em vigor vai um prazo de tempo tal, que permite um comportamento que é exactamente contrário ao que se pretendia, reagindo os agentes económicos por antecipação.

Se anunciam um aumento de impostos sobre o consumo do tabaco ou do álcool com intenção de reduzir esse consumo, então dispara a venda dos mesmos no curto prazo porque os consumidores, agindo racionalmente, querem antecipar a compra e reduzir assim o impacto do aumento da tributação.

Se querem penalizar os futuros reformados a partir de determinada data, aqui d'el rei que chovem os pedidos de antecipação de aposentação por parte de quem, agindo racionalmente, acaba por fazer agravar o encargo com essas reformas e obtendo-se assim um resultado oposto ao projectado.

Se querem penalizar com impostos sobre o rendimento as pessoas singulares ou colectivas, nomeadamente através de impostos sobre dividendos, eis que várias empresas correm racionalmente a antecipar essa distribuição para evitar parte do impacto previsto ...

Se querem aumentar o IVA sobre alguns bens, especialmente os de valor muito elevado (por exemplo viaturas ou barcos de recreio) então os agentes, racionalmente, antecipam-se na compra porque sabem que essa antecipação significa uma poupança significativa de impostos.

Quando se tratava de desvalorizações cambiais o mercado só era informado na exacta hora. Costumava-se dizer que a medida era tomada entre dois: o primeiro-ministro e o ministro das finanças. Nem as respectivas mulheres (se as houver) estão autorizadas a sabê-lo...

Não é assim de estranhar a notícia de que a venda de viaturas entre Janeiro e Outubro de 2010 em Portugal tenha crescido 38% face ao número do período homólogo do ano anterior.

Mas pode haver outra razão... Na Argentina, quando congelaram as contas bancárias, os bens móveis (automóveis, barcos e aviões) eram usados como forma de entesouramento e saída de divisas. Os proprietários conduziam, navegavam ou voavam para fora do país e convertiam em liquidez os meios então usados para outros fins.

Será que o mercado está a reagir do mesmo modo em Portugal e na Irlanda onde o número de viaturas vendidas mais cresceu em relação ao ano anterior?

Estará o mercado a antecipar já uma actuação semelhante à que se observou na Argentina?... Só me falta comparar os dados sobre compras de barcos de recreio e aviões...
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«DE» de 18 Nov 10

domingo, 7 de novembro de 2010

A dieta de Sócrates

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Por João Duque

TENHO UM AMIGO que define em duas penadas a diferença entre a administração pública e a privada: na administração privada, quando alguém não faz o que devia despede-se; na pública, contrata-se outro para fazer o que aquele não fazia...

Com a divulgação do Orçamento do Estado, ficámos a conhecer uma lista de 50 medidas de dieta que o Governo quer executar para reduzir o peso do Estado e que passarão pela fusão, extinção ou reestruturação de institutos e organismos públicos.

Quando ouvi a proposta do Governo duas perguntas me assaltaram:
1ª) Se os principais atores governativos são os mesmos desde 2005, porque é que demoraram tanto tempo a fazer a dieta?
2ª) Quem foram os autores e responsáveis pela criação das instituições que agora querem extinguir?

Sabe-se que o descontrolo das contas públicas é arrepiante, e estranho que seja ainda necessário adiar para janeiro uma coisa que já deveria ter sido iniciada há anos (ou até nunca criada) e admira-me que o Governo necessite de colocar no orçamento, numa Lei, medidas que foram criadas por Decreto-Lei ou despacho ministerial...

Mas quanto à segunda questão, isto é, quem foram os 'artistas' responsáveis pela 'gordura', pela criação destes organismos que agora se dizem excessivos, redundantes e absorvedores de injustificados recursos, fui investigar...

Comecei pela primeira da lista, a extinção, com fusão noutro organismo, da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas... Foi criada por Decreto-Lei aprovado em Conselho de Ministros de 1 de fevereiro de 2007 e assinado por José Sócrates e Fernando Teixeira dos Santos...

Fui às 4ª, 7ª e 8ª medidas, a extinção, com fusões, do Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação, do Gabinete de Gestão Financeira e do Gabinete de Avaliação Educacional, todos criados ou mantidos na nova Lei Orgânica do Ministério da Educação, vista e aprovada no Conselho de Ministros de 20 de julho de 2006 chefiado por José Sócrates...

Fui à 5ª medida: a extinção, com fusão, da Comissão para a Otimização dos Recursos Educativos. Foi criada por Despacho de Teixeira dos Santos de 27 de julho de 2010!

Fui à 6ª medida: a extinção, com fusão, do Observatório das Políticas Locais de Educação, criado por protocolo celebrado entre o Governo Português e a Associação Nacional de Municípios Portugueses em 15 de Abril de 2009!

E por aí fora...

Mais interessante ainda: na criação de todos estes organismos foi sempre explicitamente invocado no preâmbulo dos respetivos diplomas o famoso PRACE (Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado) o qual dizia ter como objetivos "O desenvolvimento económico e da qualidade dos serviços públicos, com ganhos de eficiência pela simplificação, racionalização e automatização, que permitam a diminuição do número de serviços e dos recursos a eles afetos"!

Estou como o meu amigo. No sector privado quando se quer racionalizar, simplificar e aumentar a eficiência reduz-se o input para manter o output; na administração pública, para se manter o output aumenta-se o input...
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«Expresso» de 31 Out 10

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Orçamento de 2012

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Por João Duque

É TRADIÇÃO das monarquias estabelecidas exaltar o novo rei assim que morre o anterior. “- O Rei Morreu! Viva o Rei!

O mesmo, digo eu, se aplica ao Orçamento do Estado. Claro que ainda muita tinta irá correr sobre este Orçamento e em particular quando, a partir de Maio de 2011 com resultados da execução do primeiro trimestre, estou em crer que se colocará em causa a verdadeira estabilidade financeira e política de Portugal...

O Governo vai ter de governar com um dilema: ou mantém o aperto sobre os portugueses agora anunciado em Orçamento, equilibrando-se na cadeira do poder (embora se afastando cada vez mais em sondagens de uma renovação de mandato), ou deixa resvalar a execução para ser um pouco mais brando e caem-lhe em cima os mercados, a oposição e o FMI...

Em suma, ou salvam Portugal e perdem as eleições, ou governam para as eleições e afundam de vez Portugal.

Mas imaginemos que tudo corre como está previsto neste Orçamento e que estamos em Outubro de 2011 a discutir o Orçamento de 2012. Se queremos baixar o défice de 4,6% para 2,6% do PIB, e se é hoje tão difícil reduzir 500 milhões à despesa, como vão querer fazer essa redução de 3.300 milhões em 2012, em cima da já dura realidade de 2011? À custa de mais impostos? Como será discutir subidas de IVA daqui a um ano quando ele já estiver a 23%? Como será falar em redução de salários aos funcionários públicos quando já lhes cortaram 5% na massa salarial? O que fazer?
E aí é que a porca vai torcer, definitivamente, o rabo!

E assim, não vejo qualquer hipótese de não se mexer nas pensões de reforma. Não nas futuras, mas nas actuais. Os pensionistas são a faixa da população que mais usa o Sistema Nacional de Saúde e que mais despesa induz. É natural. Com a esperança de vida a aumentar, com o número de idosos a alargar-se, com os utentes dos serviços cada vez mais exigentes, com médicos cada vez mais medrosos em fase de diagnóstico, tudo conduz a um aumento crescente da despesa com a saúde que se tem verificado e vai continuar. Pode argumentar-se que as pensões de reforma resultam dos descontos realizados ao longo de uma vida, e que portanto, a redução das reformas é equivalente a um confisco... Essa visão esbarra em dois escolhos: 1) não houve capitalização porque os descontos de uma vida foram servindo para tapar os défices do sistema; 2) mesmo os que hoje estão no activo vêm, de revisão em revisão do sistema de pensões, a queda dos valores futuros, embora não lhes reduzam as contribuições e descontos que fazem... Então porquê tratar diferente quem é igual?

Dada a limitação orçamental, temos de enfrentar a questão que é simples e dual: ou se pagam as reformas que temos para os pensionistas pagarem a saúde do seu bolso cortando no Serviço Nacional de Saúde (SNS), ou se mantém o SNS e se reduzem as reformas para manter o que já temos e que está a funcionar. Ou as duas! Para tudo, lastimo, não haverá orçamento.
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«DE» de 4 Nov 10

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Catroga e o Duque

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Por João Duque

1. É verdade que assinei o despacho que se pode ler [aqui].

2. Os textos dos Despachos são standard e não são explicativos. A justificação anexa é que o pode ser.

3. Em Julho de 2010 enviei um conjunto de respostas a uma entrevista ao SOL e que nunca foi publicada e penso que terá sido esclarecedora. Deixo-as aqui para esclarecimento da situação.

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Cara XXX

Agradeço o interesse e a preocupação em recolher as minhas respostas às questões colocadas que passo a esclarecer:

O Professor Eduardo Catroga licenciou-se nesta casa em Julho de 1966, tendo sido na data o melhor aluno desse ano. Iniciou funções docentes no ISEG no ano lectivo 1967 / 68, tendo sido regente das cadeiras na área da Economia da Empresa até ao lectivo de 1974 / 75. A escola, atendo ao seu curriculum académico e profissional tomou a iniciativa de o contratar a partir de 14 de Outubro de 1991 como Professor Catedrático Convidado, para reforçar as valências do Mestrado e Gestão. Tem aqui prestado, desde essa data, serviço docente em cadeiras do Mestrado em Gestão / MBA. Recentemente tem leccionado a cadeira de “Análise da Indústria e da Concorrência” no MBA. Além disso o Prof. Eduardo Catroga é membro do Conselho Consultivo do ISEG, é Presidente da Associação dos Antigos Alunos do ISEG e Presidente da Fundação Económicas, associação sem fins lucrativos no perímetro do ISEG. Participa activamente na vida da escola organizando o seminário permanente do MBA (designado por “Vital Topics”) e ainda o ciclo de conferências designada Ciclo de Pensamentos ISEG 2010 dedicado ao tema: “Portugal 2020: Para onde vai a Economia Portuguesa?” e enquadrado no âmbito da Associação dos Antigos Alunos e da Fundação Económicas.

Após a sua aposentação em 2007, o Professor Eduardo Catroga necessitou de autorização da Presidência do Conselho de Ministros para acumular as funções de docente com a de aposentado, o que sucedeu com despacho do Secretário de Estado em 3 de Abril de 2008 e para os anos lectivos de 2007/08, 2008/2009 e 2009/2010. Porém, e a pedido do próprio, essa acumulação de funções foi feita sem encargos para o ISEG (isto é, para o Estado) pelo que o contrato que se ajusta a esse tipo de situação é o contrato a tempo parcial 0%, significando que o serviço docente que lhe é atribuído não tem qualquer contrapartida financeira. Quer isso dizer que esteve a leccionar sem receber qualquer valor monetário.

No decurso destas autorizações procedeu-se agora (isto é, à data do Despacho, Maio de 2010) a uma mera formalização da relação contratual acima descrita, pelo que só agora (em Maio) foi publicada.

Que funções vai desempenhar o Prof. Eduardo Catroga no ISEG? Que cadeira(s) vai leccionar?

Uma vez que não tem intenção de continuar a exercer as funções não haverá mais serviço docente, nem contratos, pelo que o último contrato assinado terminará no próximo Setembro de 2010 (já acabou) e não será renovado, cumprindo o despacho da Presidência do Conselho de Ministros e cessando esta longa relação ao nível contratual.

O referido despacho invoca a «conveniência urgência de serviço» para justificar a contratação. Qual o motivo desta urgência?

Os contratos administrativos de provimento realizados ao abrigo do anterior ECDU (Estatuto da Carreira Docente Universitária) eram celebrados com base nessa expressão que decorria da própria lei uma vez que o que se pretendia era dar continuidade aos contratos de docente convidado, e que o eram pela natureza das suas próprias competências específicas e experiência curricular, evitando de abrir procedimento concursal para professor de carreira, o que não era manifestamente o caso.

Diz-se no despacho que as funções vão ser exercidas «a tempo parcial 0%». O que é que isto significa? Significa que não haverá componente lectiva nas suas funções?

Isso significa que a função não foi remunerada, isto é, teve carga horária, mas não usufruiu de qualquer remuneração. Aliás, a sua disponibilidade para continuar a leccionar, foi autorizado nessas condições, isto é, devidamente autorizado pelo Primeiro Ministro e a título gratuito, o que sucedeu e continuou a suceder.

Qual será o vencimento pago ao Prof. Eduardo Catroga?

€ 0,00. O serviço foi e é feito pro bono.

O Professor passa a fazer parte do quadro do ISEG?

Na verdade o que existe actualmente não é um “quadro” mas antes um “Mapa de Pessoal”. Mas de qualquer modo e entendendo o espírito da sua questão, sou a informá-la que um Professor Convidado nunca pertence aos “quadros” de uma Universidade, isto é nunca terá um contrato por tempo indeterminado. Nem isso faria qualquer sentido neste caso porque está aposentado.

O despacho diz também que a contratação tem «efeitos a partir de 1 de Setembro de 2008». O que é que isto significa?

Isso significa que estava a exercer a função desde essa data sem vencimento e com a situação contratual autorizada superiormente, mas sem continuidade contratual que se exigia. O acto do actual contrato evidenciado no despacho é uma mera formalização.

O Professor vai receber vencimentos retroactivamente a partir dessa data?

Como ganhava €0, os retroactivos seriam de €0. Todo esse serviço e essas aulas foram a título gratuito pro bono.

Por que motivo a contratação tem efeitos a partir dessa data?

Para garantir a continuidade contratual e a formal relação com o ISEG que se exigia e que não estava totalmente formalizada pelo meu antecessor.
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XXX, se tiver mais dúvidas ou se achar que as respostas não foram esclarecedoras esteja integralmente à vontade para questionar. Mas este é um daqueles casos, a par com o do Deputado Francisco Louçã, em que o Estado apenas tem a beneficiar, uma vez que o serviço docente por eles prestado é totalmente feito a título gratuito. Bem haja aos dois!

Com as melhores saudações,

João Duque

sábado, 23 de outubro de 2010

Bem-vindos ao inferno!

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Por João Duque

A UNIÃO EUROPEIA tanto exige contas públicas sãs como aceita estas trapaças contabilísticas que só iludem ignorantes.

Paulo Trouxa, conhecido pelo "Pê-Tê" lá do bairro, morreu. Chegado às portas do paraíso, tem de escolher entre o céu ou o inferno, depois de experimentar um e outro durante 24 horas.

O dia no Inferno foi uma delícia: companhias femininas meio desnudadas com corpos divinos e sensações inesquecíveis; desportos variados; refeições abundantes, compostas por iguarias e bebidas nunca antes provadas; amigos em cavaqueira e animação constante, em festas de fim da tarde a desfrutar paisagens lindas; música alegre e estimulante; tudo limpo, arrumado e grátis!

O dia no céu foi sensaborão: anjos e mais anjos assexuados, cobertos por pudicas túnicas, a tocarem em harpa música tristonha a convidar à reflexão intimista; refeições ligeiras, acompanhadas exclusivamente por água, adequadas à paz do corpo e do espírito; vida monótona, sem alterações de cor, música, ritmo ou movimento; sensação de bem-estar que até chateia...

A escolha foi óbvia: "Quero o inferno!"

Regressado ao inferno entra num local horrendo: lixo por todo o lado, gente horripilante, suja e faminta, agrilhoada, a trabalhar arduamente sob um sol escaldante, num deserto de nada, a uma temperatura insuportável... Um inferno!

- Mas eu não escolhi isto! - gritou o Pê-Tê.

- Pois não - respondeu-lhe o Diabo - Antes estava em campanha, agora apanhei o teu voto! Too late, eh, eh, eh!...

O fundo de pensões da PT foi transferido para a gestão do Estado, passando igualmente para este a responsabilidade do mesmo. Se o negócio tivesse sido feito com uma seguradora, e admitindo que realizado ao justo valor, não teria qualquer impacto nos resultados do ano, porque os ativos transferidos (dinheiro e outros valores mobiliários) seriam iguais às responsabilidades futuras.

Como é feito com o Estado, tudo é diferente: a receção dos ativos é reconhecida como uma receita, e esquece-se os passivos. Isso será uma responsabilidade de outros... Como se não existissem!

Enganamo-nos, sob a batuta da União Europeia, que tanto exige que apresentemos contas públicas sãs como aceita estas trapaças contabilísticas que só iludem ignorantes.

Como o sistema de pensões de reforma vai colapsar a prazo, uma vez que se prevê um número crescente de pensionistas a serem suportados por um número decrescente de ativos, o equilíbrio do futuro será, inevitavelmente, feito à custa da redução das pensões. Em 2028, o número de pensionistas já será igual ao número de ativos, admitindo que Portugal vai conseguir manter os atuais, não se verificando nova hemorragia de emigrantes semelhante à dos anos 60, o que é muito provável, face ao triste crescimento económico que antevemos para a próxima década. Partirão os mais novos, os mais aptos, os mais enérgicos e produtivos. Ficarão os mais velhos e os mais dependentes.

E haverá condições para manter os compromissos destes novos quadros da PT para o futuro? Claro que não. Uma vez integrados, virá um dia em que o plafonamento das reformas será imposto, depois as reduções das pensões a escalões mais baixos, e por aí fora... Também não imaginava um corte nos salários...

Eu que já estou no inferno deste sistema de pensões do Estado saúdo os novos que aí vêm: Bem-vindos ao inferno!
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«Expresso» de 16 Out 10

sábado, 9 de outubro de 2010

À tesourada

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Por João Duque

FACE A UMA injustificada descontinuidade no fornecimento das águas com que a companhia das mesmas brindou José Maria de Eça de Queirós, exigiu este ao digno diretor da dita (e membro do Partido Legitimista) a justa e equitativa contrapartida contratual.

A um previsto incumprimento no pagamento, tinha a companhia o poder de cortar, por contrato, o fornecimento de água à cozinha e ao quarto de banho de Eça.

Como contrapartida, Eça exige: "Para que o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso, no análogo àquele em que V. Exa. me cortaria a canalização, de cortar alguma coisa a V. Exa. Oh! E hei-de cortar-lha!"

O senhor ministro Teixeira dos Santos incitou a oposição parlamentar a cortar alguma coisa em alternativa aos já previsíveis aumentos de impostos. Onde cortar 4500 milhões de euros ao défice orçamental de 2011?

Atemorizado, mudei de canal, protegendo a família de um previsível e repelente cenário de centenas de parlamentares, de tesoura em riste, a escortanhar em tudo e mais alguma coisa. E com tanto apêndice e penduricalho seco, inútil, mas consumidor, pelo país fora, imaginei tesouradas a torto e a direito a ferirem o mais íntimo da sensibilidade familiar, que olhos delicados não podem suportar.

Ai quereis cortes, pois aqui vão!

Do Orçamento do Estado dependem 13.740 instituições que compõem as administrações públicas. Só primos mais afastados, dependem do "grande irmão" 639 fundações, 343 empresas municipais, 1182 empresas públicas, 356 institutos públicos, 485 associações sem fins lucrativos, e ainda 166 outras instituições de classificação indefinida.

Deixo de fora as 5271 instituições que compõe a administração central, 5094 a local e 204 que completam a regional. Querem convencer-me de que todas aquelas instituições são essenciais à manutenção do Estado português e à realização do seu desígnio? E as PPP? E as SCUT, onde uns andam e não pagam e outros pagam e não andam?

Mas não houve ainda a coragem para se rever as pensões de reforma calculadas sob fórmulas erradas, com base em tabelas de mortalidade desadequadas, em taxas de atualização desconformes, generosas mas irresponsáveis, e que resultam na maior das injustiças sociais a que vamos assistir.

A geração que se vai reformar dentro de anos vai sofrer o que outros não são chamados a repartir.

Quem vir os seus salários agora amputados em 10% vai ver toda a carreira profissional futura amputada nesse valor, mas vai também ver afetada a sua pensão de reforma em continuidade!

Quando se reformar vai ser muito mais pobre do que os que se lhe anteciparam em circunstâncias semelhantes, apesar de terem descontado mais durante toda a carreira contributiva.

O Governo propôs agora significativos cortes e aumentos de impostos. Podia ser diferente? Sim, e não seria a mesma coisa!
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«Expresso» de 2 Out 10

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O cão e a raposa

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Por João Duque

ERA UMA VEZ, no tempo em que os animais falavam, um bosque muito bonito onde habitavam em perfeita harmonia todos os bichinhos da região: coelhos e coiotes, galinhas e raposas, perdizes e cães de caça.

Um dia, os lenhadores que por lá passaram, deixaram uma tabuleta pregada numa das árvores da periferia com o seguinte texto: "Estado Social". E os animais começaram a chamar ao bosque Estado Social. Um dia resolveram eleger um dos animais para dirigir os trabalhos de limpeza e manutenção da floresta. Candidataram-se ao cargo a raposa e o cão.

A raposa começou a campanha prometendo que a floresta ia ser limpa sem requerer qualquer esforço, porque o vento, ao soprar como de costume, se encarregaria de varrer o lixo não sendo pois necessário que qualquer animal tivesse de levantar uma pata ou morder um saco de plástico. Os animais, delirantes, apoiavam as atraentes ideias da raposa sublinhando com vivas e olés as delícias apresentadas. Entusiasmada, a raposa prometia mais: "- Garanto que podemos ter manjares com que nem sonham e iguarias inimagináveis no Estado Social!" A bicharada, encantada, rejubilava com mais olés e vivas.

O cão, acabrunhado, e pressentindo que não era possível manter tais promessas, repetia a sua receita: "- Se trabalharmos muito talvez se consiga o necessário para nos mantermos. O bosque encolhe todos os anos e nem sei se amanhã vamos todos manter o Estado Social, quero dizer, o bosque que temos hoje...". Fez-se a votação. Ganhou a raposa.

A cada novo dia que passava a raposa continuava a proclamar o bem que se vivia no Estado Social, embora todos os dias caísse mais uma árvore e se reduzisse o Estado Social. Passados uns meses, o cão, entristecido e preocupado com a redução do tamanho do bosque, voltou a falar aos animais: "- Eu não sei se vamos todos ter o espaço e as condições que temos hoje no Estado Social. Talvez devêssemos rever as regras do bosque e pedir aos animais mais poderosos para começarem a procurar comida e refúgio fora do Estado Social..."

Os coiotes, amigos da raposa, furiosos, começaram por insultar o cão acusando-o de uma infame campanha contra a vida no Estado Social. Ele, cão, deveria saber que os seus pais lhe deixaram em herança o Estado Social que deveria manter com fé. Passados dias, com a chegada do inverno, o frio atacou cortante e sem dó. Para responder à crise provocada pela intempérie, a raposa mandou cortar metade do Estado Social para mandar queimar as árvores e com a fogueira aquecer os animais enregelados. O cão ainda bradou que tinha previsto que isso ia suceder e que o Estado Social era agora metade do que já tinha sido. Mas a raposa e os seus amigos coiotes começaram a rosnar dizendo que os seus ruidosos protestos atrairiam os homens que lhe trariam a morte.

Final da história: a) o cão, a bem da bicharada, conteve a ira e calou-se; b) o cão, a bem da bicharada, mordeu ferozmente a raposa, e expulsou-a.

Como devo concluir a fábula?
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«DE» de 7 Out 10

sábado, 25 de setembro de 2010

Escutai-os!

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Por João Duque

JÁ É DIFÍCIL imaginar um governo a aderir às mais avançadas técnicas de venda, quanto mais um governo socialista! Fiquei por isso surpreso quando ouvi o senhor secretário de Estado das Obras Públicas explicar, detalhadamente, a política de preços a introduzir nos troços de autoestrada sem custos para o utilizador, as famosas SCUT.

A ideia, parece, é aplicar uma taxa universal pela utilização do serviço, discriminando positivamente alguns eleitos. Em princípio, tratar-se-á de discriminar, baixando o custo, os residentes nos municípios de baixo rendimento das regiões envolventes. Começam por oferecer as 10 primeiras utilizações mensais e depois praticam um desconto nas restantes utilizações do mês, quer a empresas quer a particulares.

A ideia de usar o preço para regular a utilização do serviço e levar até pessoas a agir de determinado modo é a forma como os economistas pensam, e essa forma de pensar até me sensibilizou inicialmente.

Porém, olhando o problema de modo mais detalhado, fico com a sensação de que esta não será seguramente a forma ideal de estabelecer uma tarifa para utilização de serviços que se querem justos, equitativos e simples.

A primeira questão que se coloca é sobre a definição do beneficiário da discriminação. Disse o senhor secretário de Estado, ser esta "uma medida feita em nome da justiça". Mas será justo assumir que todos os residentes de uma determinada região padecem do baixo rendimento para justificar o benefício?

Podia invocar-se que não há maneira de discriminar entre os residentes de uma região. Mas se todas as viaturas estão em nome de pessoas (singulares ou coletivas) e identificadas pelo número fiscal de contribuinte, porque não usar essa informação, que está de posse do Estado, se querem fazer a dita discriminação e até alargá-la?

Depois vêm os descontos que vão beneficiar certamente os mais ricos e espertos. Como vivo num município 'rico', terei o maior prazer em poder ajudar os pobrezinhos dos concelhos envolventes que só têm três viaturas (para escolher de acordo com a cor da gravata), pois vão passar alegremente, e de borla, durante todo o mês porque têm 30 viagens gratuitas (cada chip terá 10 passagens gratuitas por mês). Acrescem a estes os outros descontos à utilização nas demais viagens se passarinharem mais...

E agora, pergunto eu, porque não usam mais imaginação na política de preço e a alargam a outras regiões? Não haverá pobres e desgovernados por todo este Portugal?

Porque não usam a happy hour, cupões de oferta de serviços (por x passagens 1 lavagem de estrada), cartão milhas, lotarias, etc., etc., etc.? Vá lá, puxem por essa imaginação!

Esta parece-me uma forma simples de desvirtuar a ideia do benefício, e vai resultar em manifesta injustiça. Mas será sem dúvida, como disse o senhor secretário de Estado, "uma medida solidária", em que os pobres dos concelhos ricos financiam os ricos dos concelhos pobres.
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«Expresso» de 18 Set 10

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Vão? Ou não vão?

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Por João Duque

A GRANDE DÚVIDA que agora assalta os espíritos mais ocupados com as finanças públicas e a economia portuguesa, é a de saber se Portugal vai ou não vai cumprir os almejados 7,3% de défice público em 2010 projectados pelo Governo.

O Governo continua a afirmar que sim, a oposição a optar pelo não. Se estivéssemos no Reino Unido, país conhecido pelo amor que os seus súbditos têm às apostas, estaríamos já com um contrato de apostas a ser cotado nalguma das suas casas da especialidade.

Como o assunto não é de natureza desportiva, não é razoável esperar umas apostas na bwin...

De qualquer modo é um tema aliciante, e como estas crónicas são lidas por muitos leitores no formato ‘online', desafio esses leitores a fazerem as suas apostas. Isto é: o défice orçamental de Portugal vai ficar acima dos 7,3% ou fica igual ou abaixo disso? Quanto é que apostavam hoje para receber €100 no final do ano se ganhassem a aposta do lado do Governo? E quanto é que pagavam hoje para receber €100 no final do ano se ganhassem a aposta pelo lado da oposição?

Para que uma aposta seja realmente aceite numa casa de apostas, é necessário que se sinta que o jogo não é viciado. Isto é, só se aceitam apostas sobre eventos que são de natureza aleatória, onde nenhum interveniente pode, por si só, definir o resultado final do jogo. Ora, será este um evento aleatório?

O saldo do défice está, em finais do mês de Agosto, nos 9.190 milhões de euros negativos, quando, por esta altura do ano anterior rondava os 8.744 milhões de euros também negativos. É sabido que, nos últimos 10 anos, em média, o saldo até ao final de Agosto tem representado 66% do saldo verificado no final do ano, o que significa, sensivelmente, um crescimento de acordo com a proporção do ano já passada. Se tal voltasse a verificar-se este ano, e tendo em conta uma possibilidade de crescimento do PIB da ordem dos 1% em 2010, então seria expectável um crescimento do saldo orçamental até aos 8,1% do PIB.

Isto é, se a gestão orçamental fosse simples, então o Governo não conseguiria ganhar a aposta...

Mas há medidas que foram tomadas, há efeitos que ainda se esperam que funcionem mais activamente (o efeito das taxas do IVA) e depois há os milagres: a venda de dívidas fiscais, as transferências de activos e passivos dos fundos de pensões, as cativações, as vendas em leilões, as privatizações, e eu sei lá que mais "ões"...

Um economista amigo, especialista em finanças públicas, aposta na não concretização nem do orçamento de 2009! Eu sou mais moderado. Se a coisa funcionasse sem intervenção do Governo, iríamos romper o orçamento do ano anterior e o descalabro seria absoluto. Mas conhecendo quem conheço - como diz o povo, "o que a casa gasta" - não tenho dúvidas que os milagres se vão suceder nos finais do ano... Veremos se serão suficientes para acalmar os investidores internacionais e se não vamos mesmo ter de chamar o FMI para nos vir socorrer. Apesar de tudo aposto do lado do governo e vou divertir-me com a engenharia orçamental!
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«DE» de 23 Set 10