sexta-feira, 8 de outubro de 2010

JOSÉ SÓCRATES

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Por Maria Filomena Mónica

A PRIMEIRA COISA que se nota, ao observar o actual primeiro-ministro, é a opacidade do seu olhar. Por que motivo terá ele medo que alguém penetre na sua alma? Em parte, por viver num limbo em que aquilo que dizem os documentos não corresponde à realidade. Nasceu no Porto, mas os pais decidiram registá-lo como tendo o parto ocorrido em Vilar de Maçada; o seu apelido não é Sócrates, mas Carvalho Pinto de Sousa; após ter obtido um diploma em circunstâncias estranhas, ficou engenheiro. Infelizmente, há pior. Em tempos, assinou, na Guarda, projectos arquitectónicos que não eram da sua autoria; sem que se perceba a necessidade, no último Conselho de Ministros de António Guterres, alterou os limites da ZPE do Tejo; a forma como foi feita a adjudicação da obra da central de tratamentos de lixo da Cova da Beira levanta dúvidas; comprou um andar, na Rua Braamcamp, em Lisboa, por um preço menor do que outros com a mesma dimensão; finalmente, entre 1999 e 2002, não declarou os seus rendimentos no Tribunal Constitucional.

José Sócrates pertence a uma família pequeno-burguesa de Trás-os-Montes. O avô paterno, José Pinto de Sousa, trabalhava, em simultâneo, num estabelecimento funerário e na organização de festas religiosas. O pai, de seu nome Fernando, fizera a instrução primária na aldeia de Maçada, tendo continuado estudos num seminário de Vila Real, abandonado ao fim de seis anos, a fim de seguir o curso de Arquitectura no Porto. Em 1955, casara com Adelaide de Carvalho Monteiro, cuja família tinha dinheiro, uma vez que o pai desta, Júlio César, fazia parte dos «novos ricos» do volfrâmio. Aparentemente devido à vida nómada do marido, o casal separou-se, tendo o filho do meio, José, ficado a viver com o pai, na Covilhã, enquanto os outros ficavam à guarda da mãe, em Cascais.

A vida na Covilhã era pacata, demasiado pacata. Mesmo as noites passadas com os amigos no café, a petiscar, ou as madrugadas em que, sentado no chão, comia chouriços assados, o enchiam de tédio. Como de tédio o enchiam as aulas. Terminou o liceu, onde o pai ensinava Desenho, com uma média de 13 valores. Para ultrapassar a neura, leu algumas obras da biblioteca paterna, de E. M. Remarque a Bernstein. Em Coimbra, matriculou-se no recém-criado Instituto Superior de Engenharia de Coimbra (ISEC), por onde viria a obter, mais uma vez com nota medíocre, o grau de bacharel.

Tal injustiça deu-lhe um ódio vesgo à autoridade: passou a detestar os intelectuais, os meninos finos, os ministros. E a Covilhã, para onde teve de voltar. Aquele tédio taciturno tornava-o impaciente. Como diria, numa entrevista: «Aos vinte e um anos, eu tinha tirado o sétimo ano, tinha estado quatro anos em Engenharia, também não queria ser muito engenheiro, mas era melhor ser engenheiro do que não ser», após o que acrescentou: «Eu esperei que a vida me surpreendesse, esperei pelo meu Sol.» O astro chegaria. Mais tarde.

Antes de enveredar pela carreira política, a única experiência profissional de Sócrates foi como técnico da Câmara Municipal da Covilhã, para onde, na década de 1980, fora levado pelo pai. Era o «filho do Arquitecto», como lhe chamava o Eng.º Silvino Morão, o qual se escandalizou ao ver a indumentária – calças de bombazina vermelha e sapatilhas brancas – por ele usada quando chegou ao emprego. Em boa hora, decidiu vir para Lisboa. Com esperteza, era possível alcançar o poder, como depressa se apercebeu, ao ouvir as conversas do sótão de António Guterres. Depois, tudo – desde a eleição para o Parlamento aos cargos de secretário de Estado e de ministro – se passou de forma rápida.

A 15 de Julho de 2004, Sócrates candidatava-se à liderança do Partido Socialista. Os jovens do partido odiavam o clã Soares e estavam-se nas tintas para a luta anti-fascista. Ao fundador do Partido e sobretudo ao benjamim, João Soares, preferiam o rapaz que gostava de Mercedes antigos. O que um grupo de velhotes proclamara, em Bad Münstereifel, era, para eles, menos importante do que o facto do rapaz de Trás-os-Montes ter fumado hashish em Amesterdão. Numa entrevista concedida a um jornal da Covilhã, Sócrates foi claro sobre o que pensava das elites: «Há uma grande segregação que tem a ver com a origem e com a província. Não há a mesma igualdade de oportunidades. Isto quer dizer que as pessoas do interior, para se afirmarem na corte lisboeta, têm de ser muito mais talentosas do que as pessoas de Lisboa.» A 12 de Março de 2005, tomava posse como primeiro-ministro. Conquistara, por fim, a cidade. Infelizmente, não era Eugène de Rastignac.
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«GQ» de Outubro 2009