sábado, 2 de outubro de 2010

Debaixo do braço

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Por Antunes Ferreira

ENTROU NO ELEVADOR da Glória com o DN debaixo do braço, como fazia antigamente para se identificar em encontro novidade com moça que pusera um anúncio para troca de opiniões, menina séria, de 29 anos, solteira, prendada, com bons meios de subsistência. Responder ao número 259-B deste jornal. Tivera diversas entrevistas com anunciantas, pois se elas eram femininas, umas mais sérias, outras menos prendadas, outras ainda depenadas de massas. Mas o meio utilizado para ser reconhecido era sempre o periódico.

Bons tempos esses, em que saía do emprego, depois de dar o até amanhã da praxe aos colegas e, sobretudo, ao chefe, não fosse o Diabo tecê-las, e se dirigia ao Príncipe Real, ao Jardim da Estrela, ao miradouro de Santa Luzia ou ao passeio em frente da igreja do Loreto, tudo lugares decentes, como a maioria das conversadoras anunciara que era.

Era, igualmente, solteiro. E adepto dos encarnados, naquele tempo vermelhos só os comunistas, que a Censura diligentemente cortava das notícias, crónicas e afins. Defensor do quem não é do Benfica, não é bom chefe de família, ainda que celibatário, bem tentava ultrapassar a limitação, mas os resultados não eram, de maneira nenhuma, empolgantes; nem sequer emocionantes, nem interessantes. Antes, pelo contrário.

Saiu da mesma forma como entrara: tentando aprumar-se mas falhando o objectivo. Uma vez mais, tal como lhe acontecera nas diligências matrimoniais. Do antigamente restavam-lhe as recordações, pouco cabelo, e o Diário de Notícias encaixado junto ao sovaco. Pouco, convenha-se, mas era o que se podia arranjar. A flor na botoeira murchara; os sapatos reluzentes da graxa cambaram; o colete de bombazina puíra-se; o chapéu de abas reviradas voara. Agora, chapéu só de chuva e de loja chinesa, dois euros e varetas para duas tardes.

Seguiu pela rua da Misericórdia, descendo para o Chiado, sabendo que arrastava um tanto os pés como o avô João, republicano visceral e membro do Ginásio Clube Português, depois de arrumados os pinos, os flique-flaques, as flexões, os plintos, os espaldares. Tal como com ele acontecera, o avô fora um especialista em encontros de qualidades, feitios e sabores bem variados. Até que num deles travara na Miquelina.

Coisa que ele não conseguira, ou seja, não lograra alcançar por mais que estivesse disposto a carregar no pedal verdadeiro. Continuara de diário sob a axila, de rosa – encarnada, que vermelha, etc. – na lapela, de brilhantina, de esperanças, de nada. Olhando para trás, não se referia à Santa Casa da Misericórdia, óbvio, mas para as traseiras da vida, só o Benfica lhe dera realmente prazeres.

Ainda vira jogar o Félix, o Moreira, o Bastos, o Melão e, claro, o Águas, o Zé Augusto, o Coluna, o Eusébio pantera negra, o bom gigante Torres, que falecera há umas semanas, e muitos mais. Hoje, o Roberto já não lhe dava tantas preocupações, mas continuava a pensar que oito milhões e meio fora um exagero, talvez agora o guarda-redes se redimisse do aviário que tinham sido os primeiros jogos.

Parou, finalmente, na esquina em frente da outra junto à igreja do Loreto. Aguardou, sem impaciência que o semáforo passasse para o verde, apagado o encarnado. Ora essa; já se podia dizer vermelho, mas o raio do hábito…