sábado, 9 de outubro de 2010

Maldita a hora

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Por Antunes Ferreira

MAL ENTREI NO TÁXI, ainda ajustava o cinto de segurança pois me sentara ao lado do condutor, e lhe dizia o destino, saiu-lhe um «maldita vida» carregado de pontos de exclamação. «Essa agora, porquê? Queria uma ida ao Porto, ou, pelo menos, a Coimbra?» E estava a milímetros de o mandar encostar ao passeio, para sair do carro, quando ele explicou «nada disso, Senhor, estou só a lamentar a minha vida, estou farto disto, fartíssimo!...»

O homem afivelava um ar desgraçado, pior do que o tempo que fazia, mais carregado do que as nuvens quase negras que cobriam completamente o céu. Cautelosamente, avancei com um pseudo caridoso «a vida está má, tem toda a razão». A minha mulher, no banco traseiro, optara por um concordar de aceno de cabeça. E seguíamos pela Avenida da República, com as bátegas o trânsito estava, se possível, ainda mais caótico do que o habitual.

«Veja o Senhor: há dez anos que me meti nisto, amaldiçoada decisão, não aguento mais, chego ao fim do dia num feixe de nervos, ninguém me diga nada, a minha companheira que não abra a boca, senão é o cabo dos trabalhos!...» E gesticulava com a mão direita, a esquerda segurando o volante. Franzi o cenho. Deve ter notado, «não se preocupe, as mudanças são automáticas». Assenti, cheio de cagaço. Um homem é um homem, um gato é um bicho.

«Já tive uma vida boa, quatro lojas, três carrinhas de distribuição, empregados, motoristas, até um contabilista, um TOC como afirmava, que eu, a bem dizer nem sabia o que era, mas aceitava sendo quem ele era, homem sabedor de contas, de parcelas, de somas e diminuições, naquele tempo mais as primeiras, com os lucros, impostos e deduções. O sujeito tinha um primo, ainda que afastado, na repartição das massas, resolvia todos os problemas, fazia vista grossa, empochava uns trocos largos, naturalmente».

Timidamente, avancei: «e então, como veio para à praça?» Virou a cabeça, desta vez é que se enfaixa no carro da frente, «foi o divórcio, Senhor, e os sacanas das Finanças, a Senhora desculpe». E esta confusão, antes havia o “nada de confusões, ruas prós automóveis, passeios prós peões, agora é porra prá confusões, passeios prós automóveis e rua prós peões”. Se me consigo safar disto, vou a pé a Fátima e lá duas voltas de joelhos, juro!»

«Olhe este gabiru, colega de profissão - na tropa colegas eram as pu…, peço outra vez desculpa à Senhora, camaradas, eu até não digo palavrões, o Queiroz é que sim, os meus pais deram-me chá em pequeno – que fazem coisas destas, o gajo nem pôs o pisca-pisca, se calhar comprou a viatura sem eles, saiu-lhe mais barata!... Mas, eu já o lixo». Agarrei-me à pega, o Diabo podia tecê-las, o chofer apertava com o outro, passou-lhe um rente, «toma qué práprenderes, viu como eu o fo.., mais perdão minha Senhora, o tramei?»

Se soubesse e pudesse, começava logo uma novena ao Santo Padre Cruz, mas, chegávamos ao destino. Voltou-se para mim, a Raquel descera, abria o guarda-chuva, fiz as contas, arredondei bem os euros. «Muitíssimo obrigado, Senhor. E, ainda por cima, estes mentirosos aumentam o IVA, e diminuem os salários, as pensões, os subsídios e sei lá mais o quê. Até o cartão do Sindicato subiu. Agora que a sua Senhora já não ouve, são uns cabrões, é a puta da crise!...» No rádio do carro, certamente a pedido de ouvinte idoso, a Amália: « Maldita a hora…».