terça-feira, 12 de outubro de 2010

O dia em que a perspectiva nasceu

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Por Nuno Crato

NÃO SE SABE qual foi o dia. Nem se sabe o ano. Há quem diga que foi em 1415 e quem afirme que foi em 1413. O dia célebre terá tido lugar em torno dessas datas. Terá sido então que o arquitecto e artista Filippo Brunelleschi terá pela primeira vez espantado os seus contemporâneos mostrando-lhes um desenho rigorosamente elaborado com os princípios da perspectiva linear.

Tal como relatou Antonio Manetti, que 50 anos depois escreveu uma biografia de Brunelleschi, o artista florentino estudou matematicamente a maneira de elaborar o desenho. Quis criar uma imagem que, vista de um ponto, aparecesse ao nosso olho muito semelhante ao objecto desenhado. Com esses estudos, fez desenhos e pinturas que os seus contemporâneos achavam estranhos. Habituados a ver as pessoas mais importantes aparecerem maiores, mesmo que estivessem mais longe, e a ver paredes e as portas desenhadas como rectângulos, os florentinos a quem Brunelleschi mostrava as suas representações ficavam espantados por verem as paredes e as portas aparecerem como trapézios. As linhas que sabiam ser paralelas apareciam nos desenhos e pinturas como linhas oblíquas, que pareciam convergir.

De facto, as linhas convergiam. Convergiam para aquilo a que se veio a chamar «ponto de fuga», pois é assim que as imagens tridimensionais se formam nas nossas retinas. Só que as pessoas da época não o sabiam.

Um dia — o tal dia! — Brunelleschi pintou uma imagem do que era o edifício mais famoso da cidade: o Baptistério de Florença. Fez na superfície um furo, de forma que se pudesse espreitar pelas suas costas. Colocou-se no sítio certo, em frente ao edifício e pediu aos amigos que espreitassem pelo furo com um só olho, observando o Baptistério. Em seguida, colocou um espelho em frente ao buraco, de forma que as pessoas vissem reflectida a tela por que estavam a espreitar. As duas visões eram praticamente indistinguíveis. O edifício estava tão bem pintado, e com a perspectiva tão bem desenhada, que observá-lo reflectido daquela posição ou observar o edifício tridimensional era praticamente a mesma coisa. O artista deu-se ainda a requintes. Na imagem que tinha pintado espelhou o céu, de forma que os observadores viam as nuvens em movimento, o que aumentava a ilusão.

Gosto desta história, pois ela explica como a descoberta da perspectiva linear foi um ponto de viragem nas representações renascentistas. A narrativa é rica, pois situa historicamente esta viragem da arte e salienta que foram os conhecimentos matemáticos de Brunelleschi, um homem que tinha estudado numa «escola de ábaco», que permitiram essa revolução. Mostra ainda que aquilo que é para nós natural hoje, na era da fotografia e do cinema, era na altura surpreendente. Conheço o edifício em Florença, tal como muitos milhões de pessoas em todo o mundo, e imagino a cena.

É claro que a realidade é mais complexa, que a perspectiva linear foi descoberta pouco a pouco pelos pintores do Renascimento, nomeadamente por Giotto, e que tem já antecedentes na arte grega, conforme mostram algumas referências de Platão aos cenários de peças de Sófocles e de Ésquilo. Isso tudo é certo, mas não abala em nada o poder desta fascinante história.

Estive há dias a ler um texto que «desconstrói» esta narrativa e fala da «construção social» da «construção da perspectiva». Não aprendi nada com essa crítica da «mística simplificadora da narrativa», que afinal não põe em causa a sua veracidade. Mas aprendi muito com a história. Vou continuar a contá-la.
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«Passeio Aleatório»- «Expresso» de 9 Out 10 (adapt.)