sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A Quadratura do Circo - Os tristíssimos portugueses

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Por Pedro Barroso

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O CENÁRIO JÁ É HABITUAL. Passa-se no meu bairro mas poderia acontecer em qualquer ponto do país. Música de fado em fundo. Coisa canalha, de faca e alguidar.
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Abre o pano. A senhora que conversa ao balcão com o último e moribundo merceeiro de bairro não tem outra conversa, outra matéria. Ela lamenta-se. Choraminga, funga e expõe a sua vida sem pudor.
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Não tem motivos, de resto, conforme pode ver-se, para se vangloriar de nada. A vida está difícil; a reforma não dá para os medicamentos; os filhos labutam lá longe; a neta, apesar de licenciada em não sei quê de recursos humanos, está desempregada; a casa está a cair mas o senhorio está mais pobre que ela e não tem dinheiro para fazer nada. As paredes da casa onde vive estão rachadas e os esgotos sem arranjo.
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Enfim, a senhora tem razão. O seu ar triste e descuidado adivinha abluções matinais resumidas talvez motivadas pelo receio da conta do gás. A raiz dos cabelos revela o verdadeiro envelhecimento, mal disfarçado por um produto barato que tenta dar colorido ao penteado. A roupa é desabrigada para o frio que se faz sentir, e a pobre, além de lamuriar, pinga do nariz, curtindo uma imensa constipação. O quadro humano é triste, deprimente.
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Por sua vez, o merceeiro está ao balcão, também ele tiritando, de luz apagada, pois conforme me confessou no outro dia, já não ganha nem para a luz estar acesa. Sem luz acesa, eu sinceramente, quando entro de fora não vejo nada dentro da mercearia e duvido que alguém assim tope o que quer que seja e se lembre, de repente, que já não tem água ou fósforos em casa. No outro dia explicou-me, entre lágrimas secas de um chorar de vida que já nem tem expressão nem consciência, que a máquina de cortar o fiambre avariou e já não vai encomendar mais nenhuma. Desistiu.
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O povo do bairro, obviamente, por muita pena que sinta dele, também já desistiu de ir lá buscar o que quer que seja. Começou a não haver fruta de jeito, depois fiambre, um dia requeijão. Essa do requeijão, eu lembro. Era só à terça-feira e tinha de se encomendar. Um dia, um senhor bem-posto apareceu e encomendou dois para a terça-feira seguinte. Acontece que no dia aprazado não apareceu e o Sr. Saavedra, coitado, ficou com o prejuízo, pois na vizinhança ninguém se interessou por tal produto. Ainda hoje ele reconta a história, já lá vão 4 anos. Por aí se vê quanto foi importante para ele a perda de tão aparentemente insignificante negócio.
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Mas do bairro passamos à cidade. Amarga a face dos comerciantes, em risco de fechar a porta. Triste o semblante dos utentes, enlatados nos autocarros da manhã. Amargo o humor dos intelectuais, fechados num beco entre a revolta e a incerteza. Ácida a reacção de governantes aos governados e ainda mais ácida a reacção dos governados aos governantes.
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Por toda a parte gente maldisposta e contando histórias de desgraças. Os telejornais, um paradigma de infelicidades classificadas. O fogo no Verão; a neve no Inverno. A impotência dos Bombeiros num e noutro caso e um imbecil alto posto da Protecção Civil que diz que a culpa das estradas estarem cortadas pela neve é por estar a nevar demasiado.
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Pois. Tussa! - Dizia o médico novato. - Tussa mais! E sentenciou com um ar sério: Pois; o seu problema é que o senhor está com muita tosse.
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Um qualquer La Palisse de camuflado não diria melhor. Com efeito, os problemas que estamos a sentir são devidos ao mau tempo. E o mau tempo é devido, ao que parece, às grandes quantidades de precipitação, gelo, frio, neve e granizo e ao mau estado do mar. Que poderão classificar-se na generalidade como mau tempo. Brilhante círculo. Infelicidade, também.
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Estamos, portanto, envolvidos por um pensar de crise, limitado, trágico, redondo e inútil mas inelutavelmente infeliz.
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O senhor do Restaurante já não atende com aquele sorriso de antes. O segurança embirra com as chaves, o corta-unhas, o pente, tudo. As firmas e Ministérios, desconfiados, põem antipáticos torniquetes para controlo do pessoal. Outras firmas fecham sem autorização, em falências inesperadas e mandam fora o pessoal, sem justificação que se compreenda. Os desempregados, também eles, vão engrossar a fila dos infelizes. O tempo entristece. As guitarras gemem, mas o povo já não canta. Cala-se acabrunhado e sonha os impossíveis que hão-de vir.
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Ser português, hoje, na cara deste país que não comprei, é o paradigma de um fado menor. Mal tocado, modorrento, baço. Vil, injusto, amargurado, dorido, farto de ser assim.
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Garganta rouca de sofrer. Sem jeito.
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Gozamos na lama de um viver sem alegrias, nem luxos, nem fantasia, nem excentricidade. À espera que o euromilhões no-la traga, um dia, conforme ajustado, numa manhã de nevoeiro.
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Não contem comigo. Se me sair, emigro para um país alegre. Fica prometido.
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Imagem obtida [aqui].
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