terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Curtas-letragens - “Carrnaváu”

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Por Miguel Viqueira
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“OLHA SÓ dona Marrta...!” era o remoque favorito a propósito de tudo e de nada da “faxinêra” da dona Marta, “nega” carioca de grande pandeiro, que mais que andar se contornava ao deslocar-se, risonha mesmo quando não ria, de grandes dentes alvos e olhar fundo debaixo do lenço atado na nuca e que passava o dia nestas e noutras lamentações que mais pareciam já uma cantilena amável, um traço de identidade inconfundível.
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Um dia chegou acabrunhada, olha só dona Marrta, e não parou de se lamentar, a fazer tudo ainda em marcha mais lenta, até que para o fim do dia a dona Marta lhe arrancou o olha só. O pai estava doente, muito doente. E logo agora, vésperas do “carrnaváu”...! Conselhos, recomendações, promessas de que tudo se comporia, você vai ver, conseguiram arrebitar a “faxinêra” que voltou para a favela um pouco menos olha só dona Marrta.
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Na manhã seguinte apareceu de rastos: olha só dona Marrta...! Papai piorou! E o carrnaváu aí chegando, minha nossa...! A coisa parecia séria, o velho estaria mesmo nas últimas, e a olha só desesperava por causa de ter de ir bailar o carnaval com o pai moribundo, olha mesmo só!
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O carnaval chegou enfim, a olha só desapareceu como fizera sempre com ou sem papai doente, e a dona Marta bazou do Rio, que é o que fazem nessas alturas críticas as pessoas de bom gosto. Passada a festa, todo o mundo de volta ao Rio, a faxineira reapareceu enfim, chorosa, completamente destroçada. A ressaca, talvez? Olha só dona Marrta... Papai morreu mêmo. Logo logo no mêmo dia que saí daqui, olha só...! Então mas... e o carnaval? Oh o carrnaváu fô o maó barato, dona Marrta olha só...!
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Contou à estupefacta dona Marta que quando chegara à favela dera com grande carpidação familiar: o velho morrera essa mesma tarde, ao que parece desconsolado por não poder já ir viver o carnaval iminente. Deixaram-no na cama onde falecera, amortalhado e bem tapadinho, fecharam a porta do quarto, trancaram bem a casota da favela e lá se foram todos bailar o carnaval. Três dias e muito samba depois reabriram o quarto, alertaram as autoridades, chamaram de urgência o padre, e procederam ao velório e ao enterro cristão, como era de rigor. E ali estava ela, compungida e chorosa na aflição do luto, olha só dona Marrta...!
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [v.
aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.