sexta-feira, 3 de abril de 2009

Será a Minha Heterossexualidade uma Tara?

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Por Manuel João Ramos


CONFISSÕES DE UM HETEROSSEXUAL

Monólogo do espectáculo O Ano do Pénis, lido por João Grosso
(ILGA Portugal, 1998)
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Tive uma infância perfeitamente normal. A minha mãe, que é lésbica como qualquer boa mãe, era evidentemente uma figura dominadora - não tanto, claro, como a sua amante. Vestiu-me, até muito tarde, com roupas de menina, e cultivou em mim o ar de jovem "Morte em Veneza". Ainda hoje me chama, com toda a naturalidade fufa, a sua Mariquinhas. Para mais, não fosse tal legado suficiente para fazer frutificar uma normal ambiguidade sexual, o meu pai, que é gay como qualquer bom pai, esteve quase sempre ausente - com o seu namorado -; um must para obviar a uma excessiva identificação ao modelo masculino.
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De acordo com todas as normais e naturais expectativas, eu deveria ser gay. Como toda a gente.
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Mas não sou. Devo, quero, tenho de confessar: sou heterossexual. Assumido. Acho mesmo que sempre fui. Quero dizer, que nasci assim - hetero. As minhas mães nunca mo perdoaram, mas a verdade é que nunca me senti confortável em roupas femininas e longos caracóis alourados com infusões de camomila. Também os meus pais estranhavam que, desde os tempos do desabrochar normal da puberdade, eu não vislumbrasse o que fazer com as pilas que homens e rapazes me punham na mão ou na boca. Além do mais, caso dramático numa liberal família gay e lésbica, desde cedo revelei sentir-me atraído por mamas e vaginas - excepção feita às da minha mãe e da sua amante. Foi, por isso, um verdadeiro choque para os meus pais, e para as minhas mães, o dia em que lhes revelei a minha primeira experiência com uma mulher. Se tinha gostado? Claro que gostei. Sim, quero mais, mais do mesmo. Desmaios, gritos, lágrimas sentidas.
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Muitas vezes penso se não haverá um gene responsável pela heterossexualidade. Uma espécie de mutação cromossómica que leva certos indivíduos, aparentemente normais, a sentirem-se constantemente atraídos pelo outro sexo. Sei bem que o simples facto de colocar esta dúvida parece legitimar o ostracismo obscurantista de toda a gente "gay" em relação aos hetero. A verdade é que não encontro outra explicação para a minha resistência involuntária à boa educação que tive. Porque não posso sequer conceber que os meus pais, e as minhas mães, tenham falhado - de todo. À parte a minha heterossexualidade, que eles e elas sempre olharam com um misto de suspeição e tristeza, conseguiram com êxito inculcar em mim os grandes valores da boa cultura gay-lésbica. Como toda a gente, adoro ópera e a Tereza Berganza, li Mishima e Yorcenar na idade certa, Mapplethorpe era amigo de um tio meu. Sou sibilino, frio e cruel como uma fufa despeitada; ácido, cáustico e requintado como um homo passivo; impetuoso e de espírito aberto como um bissexual; complexo e reservado como um transexual.
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Será a minha heterossexualidade uma tara? Uma monstruosidade? Admito que, por natural influência maternal e paternal, durante muitos anos senti vergonha de mim mesmo, das preferências que eu próprio via como perversas e pouco naturais. Mas não conseguia deixar de gostar de mulheres, de me excitar ao ver e agarrar as suas mamas e vaginas. Perguntava-me se não seria um problema hormonal, algo que se resolvia com uma simples mudança de sexo. Se gostava de mulheres deveria ser porque, no fundo, eu próprio me sentia ou devia ser uma mulher. Tempos houve em que me rapei, que fiz implantes e devorei hormanas X. Mas a verdade é que não fui nunca capaz de dar o golpe decisivo. Porque, ligado ao desejo e atracção pelo corpo feminino, estava uma vontade irreprimível de o penetrar - e tinha de ter com quê. A vergonha, a culpa, a sensação de conspurcação e transgressão, sem dúvida fruto da minha educação "gay" e lésbica, nunca foram suficientes para refrear tais tendências.
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A pouco e pouco, graças às mulheres com quem dormia, vim a ter conhecimento de que havia outros como eu. Ao mesmo tempo, também eu passava palavra e informava as minhas companheiras de que não eram as únicas, de que havia outras que partilhavam o seu heterogosto. Percebi então que a questão da normalidade - da norma - homossexual, bem como as tentativas de resposta avançadas por geneticistas, psiquiatras e juristas para explicar o desvio hetero, não tinham qualquer relevância. O importante, vim a descobri-lo, é que um heterossexual se possa sentir bem com o seu desvio, e poder partilhá-lo com as suas semelhantes. Uma progressiva consciencialização de que é possível uma normalidade heterossexual alternativa acabou mesmo sendo complementada pela descoberta de que a heterossexualidade pode ser algo mais que uma tendência sexual. De que há mesmo, ainda que subterrânea e acossada, uma verdadeira cultura e uma comunidade hetero.
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Sei que o que vou dizer pode parecer, a toda a gente normalmente gay ou lésbica, inverosímil ou até absurdo. Mas creio firmemente que é necessário ter uma sensibilidade especial para poder apreciar verdadeiramente as obras e realizações de personalidades hetero, assumidas ou não. Tal como quem não é normalmente gay ou lésbica não compreende muito do que Platão, Rousseau ou Gadamer escrevem, ou do profundo sentido da mensagem do Novo Testamento, também só um verdadeiro e assumido hetero capta completamente as subtilezas de Stendhal, as formas de Rubens, ou as ideias de Madonna.
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Mas não nos iludamos! O e A heterossexual são ainda hoje objecto de uma nem sempre frontal discriminação. O par hetero é visto como instável e pouco vocacionado para a procriação e educação infantil. A desconfiança em relação às virtualidades do casamento não homossexual, polígamo ou incestuoso continua sendo um forte preconceito que condiciona a plena aceitação dos casais hetero no mainstream homo.
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.