domingo, 19 de abril de 2009

Visto, está conforme

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Por Nuno Brederode Santos
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POR MUITO DISTRAÍDO que eu andasse, era impossível deixar de reparar na sucessão, em quarenta e oito horas, do discurso de Cavaco Silva na abertura do 4.º Congresso da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE) e mais uma entrevista de Luís Filipe Menezes à SIC Notícias. Não para sugerir um nexo entre os dois factos, mas porque ambos formalizam, segundo os meus subjectivíssimos critérios, o arranque da pré-campanha das próximas eleições europeias. Não está mal: quer porque o último cabeça de lista (o do PSD) foi finalmente revelado, quer porque eu tenho sempre a original atitude de gostar muito das campanhas até ao limite fisiológico de me fartar delas.
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Vai ser curioso assistir às ondas de choque provocadas pelo discurso de Cavaco. Como sei que a notícia está no excesso, não me fiquei pelas manchetes e fui fazer uma primeira leitura do texto ao sítio da Presidência da República na "net". Como é de regra, pouco importa a substância do que lá está (o que é bem diferente de dizer que a não tem). É um conjunto de ideias sobre a crise, económica e financeira, mundial; com imputações genéricas de culpas, mais duras (e mais moralistas) para empresários e gestores e algo mais políticas para com os decisores dos países que nos são deixados facilmente adivinhar. Segue-se um "vademecum" para ambos esses grupos. Passando depois a Portugal, são equacionados "desafios" que se apresentam à nossa economia e instam-se políticos, empresários e gestores a novas atitudes e condutas, que implicam (ou sugerem) críticas à sua actuação anterior e (ou) actual. Tudo isto vem envolto numa abordagem que, sendo ideológica, é no entanto a que maior receptividade deveria obter junto dos presentes (sendo o exemplo mais berrante a alusão às políticas "que favorecem o enfraquecimento dos laços familiares"). Chamemos-lhe social-cristã. Pela televisão pudemos ver que o tom é firme, mas quem quiser chame-lhe duro. De resto, várias vezes aqui assinalei que é característico do nosso Presidente manietar-se antes de falar forte e grosso: é que depois, quando vierem reivindicar consequências, ele pode dizer com verdade que está manietado.
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Só os ainda mais distraídos do que eu é que não terão notado como, poucos dias antes, muitos "media" assinalavam a habitual não notícia: "a partir de hoje, o Presidente da República já não pode dissolver o Parlamento". Notícia é saber-se a animação que isso sempre desencadeia para os tempos seguintes.
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Mas a substância, escolhida como é para ser pacífica, importa menos do que o facto de estes discursos se sucederem quase iguais, convidando assim à busca minuciosa das pequenas diferenças. São estas que, dramatizadas ou banalizadas, suscitarão todas as atenções, moldarão as atitudes e irão até impregnar (odiosa palavra, esta) o discurso oficial dos vários agentes, políticos, económicos e sociais. Mas sobretudo - e para nossa desdita - darão azo a torrenciais manifestações de inteligência em filigrana, por parte dos treinadores de sofá que se (nos) pretendem(os) fazedores de opinião. Duríssima será também a habitual competição entre os que se insinuam como intérpretes autênticos, para já não dizer fantasmáticos autores da prosa em causa. A vida ensina, a gente aprende: vamos ser bombardeados com tempos verbais, escolhas entre sinónimos possíveis, substantivos mais usados por um partido do que por outro. E com os "não é por acaso" de uma fé intangível, que não poderemos combater. A generalidade ou a abstracção de uma frase será o volúvel corcel de quem quiser montá-la. O governo explicará que não é com ele e, perante um caso ou outro mais difícil, dirá que a crítica é para quem empata a governação. As oposições proclamarão exactamente o contrário: que tudo é contra o governo. Mas terão de travar entre si alguns duelos, abrangendo na crítica os demais: é a mim que ele dá razão. Todos parecerão acreditar no princípio segundo o qual o melhor argumento é o mais ruidoso, pelo que a gritaria que se segue terá a vantagem cultural de nos mandar a todos para o cinema.
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Menezes, um estudioso das agendas alheias, esperou e bem. Depois chegou e poisou no galho alto. Descontado um pequeno ajuste de contas, detalhado nome a nome, foi gentil. Voltou a protestar lealdade e a declarar-se pronto para a primeira linha do combate partidário. O pior vem a seguir e é sempre mais rápido do que se julga. É quando ele desce: primeiro ao galho baixo, depois ao chão. Se o aproveitarem, dá sarilho. Se o ignorarem, também. Vimos este filme mais vezes do que A Túnica. Boa noite e boa sorte.
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«DN» de 19 de Abril de 2009
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.