quarta-feira, 15 de abril de 2009

"…Mas as crianças, Senhor…"

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Por Baptista-Bastos
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A SOCIEDADE PORTUGUESA perdeu, há muito, a noção de valores e tripudiou sobre as regras de convivência. Lenta mas inexorável uma endemia de dissolução alastrou, de tal forma, que põe em causa a própria razão do ser individual. Abandonámos um conceito de destino e desinteressámo-nos da ideia de futuro, se alguma vez a ambos tivemos. Antero e Oliveira Martins disseram que não. Causticámo-los com o ferrete de cépticos. Desprezámo-los quando devíamos tê-los estudado. A República animou-nos, mas a festa durou pouco. Meio século de cantochão, bota cardada, medos vários, foram as insígnias das nossas obediências. No Abril antigo, o bandolim pareceu tocar a nossa música. Pregámos um susto às bem-pensâncias, andámos a lavar as ruas, a oferecer à pátria um dia de salário e a gritar um estribilho que fora funesto no Chile: "O povo unido jamais será vencido!" Pois sim!
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Fui um daqueles que deitou foguetes. E ainda me resta uma pequena fagulha, apesar de o desemprego correr a galope, de os nossos velhos morrerem nos jardins, e de termos atingido, agora, a abjecção com o que fazemos aos nossos miúdos: abandonamo-los, enchemo-los de miséria, de fome e de morte por extinção moral.
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Anteontem, os jornais alargaram-se em notícias sobre estes sacrilégios. Porque há pais que abandonam os filhos? Que desespero incontido pode levar alguém a deixar uma criança à bússola do acaso? E que bizarro mecanismo mental encaminha progenitores a não dar de comer aos seus miúdos, mas a adquirir-lhes roupas de marca? Pensemos duas vezes.
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A família tem cada vez mais dificuldade em se representar. Mas foi a família que se não opôs às imposições de uma sociedade, cuja inconsistência transformou o secundário em primordial. O desprezo pelos miúdos conduz a conflitos profundos com as suas personalidades. Porém, o Estado abandonou os pais, e os pais deixaram de se interessar, no essencial, pelos filhos. O círculo ainda não encerrou. E as notícias a que me refiro advertem da existência de uma compressão da época e de um mal da alma, resumidos nesta frase medonha: "Não tenho tempo a perder."
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Não temos tempo a perder com quem? Com os nossos filhos? Com os outros? Connosco próprios? Estamos a encurtar tudo (a vida, o amor, a amizade, o ócio) com melancólica leviandade. "Às duas por três nascemos/às duas por três morremos/e a vida?/não a vivemos" - ensinou Alexandre O'Neill. Nunca ouvimos os poetas.
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Não há unidade nem absoluto possível se não conseguirmos travar a marcha de um sistema doente, cuja natureza se opõe à partilha, e tem destruído e aniquilado o melhor dos nossos sentimentos e emoções.

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«DN» de 15 de Abril de 2009.

NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.