segunda-feira, 8 de março de 2010

Alice torna-se filósofa

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Por Nuno Crato

NA PARTE FINAL de Alice do Outro Lado do Espelho que hoje é distribuída com o Expresso, a nossa heroína envolve-se em algumas discussões aparentemente absurdas. São conversas muito ao gosto do seu autor, o matemático Charles L. Dodgson que aqui escreve sob o pseudónimo de Lewis Carroll, como temos referido.

No capítulo 6, Humpty Dumpty considera-se no direito de dar às palavras um significado arbitrário: “Quando eu emprego uma palavra ela quer dizer exactamente o que me apetecer… nem mais nem menos”. E Alice fica confusa com alguns significados que o estranho ser inventa. As palavras, na realidade, são arbitrárias. Poder-se-ia chamar “caneta” a uma árvore e “alice” a uma cadeira, que todos os raciocínios seriam válidos desde que se mantivessem evidentes os sentidos subjacentes. Por isso, para Humpty Dumpty o significado pode ser exacto — “nem mais nem menos”, o que não quer dizer que seja perceptível na comunicação.

Na linguagem científica evita-se discutir palavras e símbolos. Para isso, explicitam-se desde o início o significado em que os termos são usados. Na matemática, talvez a mais precisa das disciplinas, há definições e designações alternativas que não estão nem mais certas nem mais erradas que outras. São aceites desde que sejam coerentes e permitam o desenvolvimento dos temas. Muitas vezes, os artigos científicos começam por repetir conceitos conhecidos, apenas para que se percebam melhor as designações que vão ser usadas no resto do trabalho.

Em poesia, literatura e outras artes acontece frequentemente o contrário. Pode-se ganhar com a imprecisão. O uso ambíguo de um termo pode condensar todo o significado poético de uma frase e a dúvida que persiste na conclusão de uma obra de arte pode ser o que lhe dá a maior beleza.

O mais grave é o uso da linguagem ambígua onde ela deveria ser clara. Em Alice, o contraponto à arbitrariedade da linguagem e a descrição da ambiguidade aparece logo no capítulo seguinte (O Leão e o Unicórnio). A instâncias do rei, que lhe pergunta quem vê na estrada, Alice responde “Ninguém”. E o rei comenta: “Como eu gostava de ter boa vista, para conseguir ver ninguém a esta distância”.

Pode-se daqui inferir que Lewis Carroll está a tratar “ninguém” como sendo uma entidade, da mesma forma que os matemáticos tratam o conjunto vazio como algo existente. Mas o que ressalta nesta passagem tal como na seguinte em que o rei interroga o mensageiro, é a confusão derivada do uso ambíguo de termos. Será que, tal como Humpty Dumpty, o rei dá a “ninguém” o significado de um ente que pode ser visto? Para se comunicar é necessário que haja acordo no significado das palavras. E nesse sentido as palavras não são arbitrárias.

A mais famosa história do uso ardiloso da ambiguidade de “ninguém” aparece na Odisseia. No Canto IX, Ulisses, prisioneiro do Ciclope Polifemo, declara chamar-se “Ninguém” (365). Quando cega o monstro com um tronco de oliveira incandescente [imagem], este grita por ajuda dizendo “Ninguém está a matar-me (405).” Os outros Ciclopes, pensando que ninguém lhe estava a fazer mal, não lhe acodem e o astucioso Ulisses consegue fugir da gruta e regressar ao seu navio.

Para que as coisas se percebam é necessário distingui-las. “Como se pode falar com uma pessoa que diz sempre a mesma coisa?” interroga-se Alice no início do capítulo final. Sabe-se em teoria matemática da informação que é necessário pelo menos uma distinção binária para que algo se transmita.
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 6 Mar 10 (adapt.)