terça-feira, 2 de março de 2010

Do outro lado do espelho

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Por Nuno Crato

A SEGUNDA AVENTURA de Alice possui ainda mais referências eruditas e científicas que a obra anterior de Charles Dodgson. Escrevendo sobre o pseudónimo de Lewis Carroll, este professor de matemática de Oxford tinha aqui o propósito de entreter jovens e não de ensinar matemática e lógica. E é assim que as aventuras de Alice devem ser lidas. Mas o público adulto não pode deixar de notar as subtilezas da narrativa.

O começo é profético. Ao passar pelo espelho, Alice fica igual? O leite simétrico, o leite do outro lado, é tão bom como o deste? O problema transcende o tratamento matemático da simetria. Geometricamente, é possível duplicar tudo no espelho e o mundo novo irá funcionar perfeitamente. Mas, sem o saber, Dodgson põe o dedo num problema que só seria resolvido em meados do século XX quando os físicos, nomeadamente Lee e Yang, que receberam em 1957 o Nobel por esse seu trabalho, mostraram a existência de assimetria nas partículas elementares. Como o nota Martin Gardner (The Annotated Alice, 1970, p. 152), o leite perfeitamente simétrico seria constituído por antimatéria, pelo que Alice e o leite explodiriam por simples contacto.

Mas o trecho mais citado desta segunda aventura é, sem dúvida, a exortação da rainha à corrida. Aparece logo no capítulo 2. «Aqui, vês, é preciso correr o mais depressa possível para ficar no mesmo sítio». Os políticos e economistas modernos percebem bem a profundidade do dito.

Mais à frente, no capítulo 4, aparece um gigantesco corvo que escurece subitamente a cena e interrompe a luta entre os dois caricatos irmãos. O episódio parece ter sido inspirado numa história verídica de uma batalha do século VI a.C. O biólogo e evolucionista britânico J.B.S. Haldane, nascido em Oxford em 1892, quando o autor de Alice ainda aí residia e trabalhava, não tem dúvidas. No seu livro de ensaios Possible Words (1927, p. 8), diz que «A verdadeira história é a seguinte: Aliates, rei da Lídia, estava há cinco anos em guerra com Ciaxares, rei dos Medos. No seu sexto ano, em 28 de Maio de 585 a.C., como se sabe, a batalha foi interrompida por um eclipse total do Sol. Os reis pararam a batalha». Nas palavras do historiador grego Heródoto, «ficaram mais que ansiosos por estabelecer a paz» (Histórias, 1.73-4)

No capítulo seguinte, Lewis Carroll retorna a um dos seus temas favoritos, o tempo. Agora, coloca-o a andar para trás, o que surpreende Alice. Sabe-se que Dodgson gostava de rodar as caixas de música em sentido inverso, para perceber como resultavam as melodias tocadas ao contrário. Toda esta discussão poderá ter inspirado o escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald a escrever em 1922 a novela O Estranho Caso de Benjamim Button, adaptada com imenso sucesso ao cinema há dois anos. Com o tempo a andar para trás a rainha de Alice tem memória nos dois sentidos: lembra-se do que passou e do que vai acontecer! Naturalmente também prevê o passado. Aliás, segundo um conhecido provérbio inglês, a previsão mais difícil é a do futuro.
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Deixemos o leitor com um desafio de previsão do passado que Dodgson incluiu na sua colecção de Problemas de Travesseiro (1893, n.º 5): uma caixa tem uma única bola, preta ou branca, não se sabe; junta-se-lhe uma bola branca e sacode-se; tira-se uma bola ao acaso, que se verifica ser branca; que é mais provável, que a caixa tivesse originalmente uma bola preta ou uma branca?
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 27 Fev 10