sábado, 6 de março de 2010

Elogio da imprensa e dos seus homens livres

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Por Baptista-Bastos

O INQUÉRITO
na Comissão de Ética tem obtido resultados pungentes. Até agora, os deponentes que por lá passaram debitaram umas banalidades e revelaram uma assustadora ignorância da nossa História próxima recente, como uma indigência comovente do que é jornalismo. Apenas Francisco Pinto Balsemão disse algumas coisas acertadas. Não espanta. Ele é um homem que, no "Diário Popular", de que foi proprietário, conheceu a agressiva intervenção da Censura. Com uma Redacção na maioria constituída por jovens redactores que não morriam de amores pelo salazarismo: alguns deles, como Mário Ventura, tinham passado, duas vezes, pelas masmorras de Caxias. Balsemão conhece as diferenças das épocas e possui, sobre todos os outros preopinantes, a experiência de moral em acção. Não nos esqueçamos que, quando foi primeiro-ministro (já depois de Abril, evidentemente), o jornal que mais o atacou, às vezes quase irracionalmente, chamava-se e chama-se "Expresso", de que é dono.

Escuso-me a dizer o que, profissionalmente, penso, hoje, daquele semanário, cuja leitura abandonei, por viscosa, há mais de três anos. Mas o que penso, obsta-me, por motivos de ordem higiénica. Mas Balsemão é outra coisa. Como dizia um querido amigo, Manuel Magro, outro dos grandes de que o "Diário Popular" dispôs, "o homem tem a democracia até à medula."

Quero dizer, com isto, que Francisco Pinto Balsemão, sobre ter a carteira profissional de jornalista, de que se orgulha, sabe do que fala quando fala de jornais. Ao contrário de muitos daqueles simpatizantes de jornalismo, que pela Comissão de Ética têm passado. O depoimento dele seguiu-se ao de Manuela Moura Guedes, cujo conteúdo e objectivos deixo de largo. Cansei-me de campeões da liberdade.

Aquilo vai levar a nada. O que não sucederá, quase de certeza, com a Comissão de Inquérito Parlamentar. Vai-se saber, então, se José Sócrates e seus apaniguados "socialistas" acondicionavam, em aconchego tenebroso, um plano sinistro para dominar a liberdade de expressão. Apurada a verdade dos factos, comprovada como verdade que o primeiro-ministro mentiu ao Parlamento, chamado que for para averiguações dos acontecimentos - o seu destino está marcado: terá de ser despedido, por indecente e má figura. Será a primeira vez que um primeiro-ministro de Portugal sofrerá de tal pena e de tal vergonha.

Todavia, tem de se saber se ele é ou não culpado de indignidade moral. Os senhoritos e senhoritas que por lá têm debitado banalidades e espelhado um narcisismo risível nada acrescentam à verdade que se procura. Por outro lado, os deputados, valha-os Deus!, manifestam um desconhecimento absoluto da especificidade do jornalismo e das singularidades dos profissionais. Este último pormenor está longe de ser despiciendo: a feira de vaidades que é a Imprensa (lato senso), o concentrado de egos que acalenta e o amontoado de ódios que embala são de molde (quando se os conhece) a fazer fugir o espírito mais coriáceo.

Alguns dos responsáveis pelas publicações deviam envergonhar-se pelo que dizem e pelo papel que vêm representando. Já praticaram censura interna, já procederam a práticas de omissão e de perseguição (a forma mais hedionda de censura), já foram as vozes caninas da ideologia dominante. Deviam, caso estivessem interessados e soubessem, preocupar-se mais com a natureza dos conteúdos, com a gramática e com a fundamentação das notícias que apresentam.

A batalha pela tiragem, no caso dos jornais, e pelas audiências, quanto às televisões, atingiu níveis nunca vistos e extremamente perigosos. A informação deixou, na esmagadora maioria dos casos, de ser contextualizada, social e historicamente; e a opinião contrária, habitualmente, é obtida através do telefone. Um descrédito que tem acentuado a degenerescência da profissão e a decadência de uma classe que, mesmo nas horas mais ominosas do fascismo, conseguiu manter a cabeça fora do lodaçal, e não capitular. E, podem crer os Dilectos, foram anos e anos dolorosos e difíceis, que aniquilaram grandes jornalistas e destruíram sonhos maiores e decentes ambições.

João Chagas [1863-1925], que foi um dos maiores jornalistas portugueses de sempre, político emérito, grande prosador e homem de bem, escreveu, em "As Minhas Razões", reflexões admiráveis, e extremamente actuais acerca do tema de que discreteei. Um excerto:
"Está absolutamente demonstrado que só os poderes enfraquecidos perseguem a Imprensa e, por outro lado, está igualmente demonstrado que nem por isso se tornam mais robustos e que, ao contrário, acabam quase sempre por se declarar vencidos. Só os poderes enfraquecidos temem a Imprensa, porque a Imprensa não é para temer. Só a verdade é temível, disse o velho Thiers, que um tão belo papel representou no acto de protesto contra as Ordenanças de Julho.

"Os juízos da Imprensa só são eficazes quando são justos, porque, apesar de tudo, quando se pensa da influência da Imprensa sobra a opinião, nem por isso é menos certo que são, afinal, os votos desta que ela acaba por formular. Não é geralmente o jornal que faz a opinião, é a opinião que faz o jornal, e o jornal é, quase sempre, o último a exprimi-la."

Dilecto: agora, ia por aí fora, na reprodução desta extraordinária reflexão sobre jornalismo. Que fique pois, e somente, como um voto de gratidão e homenagem aos autênticos profissionais portugueses, que nos legaram páginas e páginas imortais, nas quais a liberdade está marcada como desejo, realidade e luta. E como imposição da honra, da dignidade e da honradez.

Aos outros, o meu profundo desdém.
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«Jornal de Negócios» de 5 Mar 10