quarta-feira, 31 de março de 2010

A vitória do mal-amado

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Por Baptista-Bastos

UMA INESPERADA combinação de timidez, pedanteria, tenacidade e decisão, eis o que subjaz à conquista da presidência do PSD por Pedro Passos Coelho. Contra ele tinha (tem) os grandes tubarões do partido, e verdetes especiais, levemente absurdos, abertamente renitentes. Cavaco detesta-o. A dr.ª Manuela não o suporta: de tal forma que, às escâncaras, escorraçou-o (e a Miguel Relvas) das suas preferências para o Parlamento. Jardim acha-o intolerável e manifesta o seu azedume sem dissimulação. Pacheco Pereira abomina-o. O dr. Rio execra-o. O dr. Sarmento odeia-o. O prof. Marcelo nem sequer sorri, para disfarçar, quando alude ao "companheiro". É um apreciável lote de inimigos, gente poderosa que nada realiza de graça, que procede segundo impulsos amiúde pouco claros - mas cujo comportamento tem tudo a ver com poder e mando.


Mudar foi o título do livro programático de Passos, e o estribilho que o acompanhou na campanha. Mas "mudar" quê e quem? Perguntas ociosas para um partido que vive de mecanismos de ocorrência, ausente de ideologia, afastado do "espírito de missão", unicamente propenso ao trânsito da "alternância" e em contínuo esforço para se manter ao nível da luz. A eleição não ameaçou esse poder nem esse mando. Deixou-os, somente, apreensivos. Que nomes irão revezar os nomes? Que nomenclatura irá substituir a nomenclatura?

Sentimo-nos tentados, por cansaço de Sócrates, por inércia mental, a aceitar uma nova variação dos rostos. Mas os rostos persistem em incrustar-se na nossa História, porque a demonstração da sua "legitimidade" consiste na sua permanência alternada. É óbvio que assistimos à dissolução de uma identidade política, e ao mimetismo linguístico revelador da fragilidade dos dois grandes partidos portugueses. A questão é: conseguirá Passos recuperar o lugar que pertenceu ao PSD, e foi sonegado, exaustivamente, por Sócrates? Finalmente: que posição no pódio deseja, hoje, o PS?, que se sente intimidado pelo novo presidente do PSD, mesmo sem este ter ainda tomado posse.

Há uma troca simbólica de nível, e 61% dos votos não correspondem a uma casualidade circular. O ódio a Passos, no partido, pode, curiosamente, juntar em seu favor as peças tresmalhadas. Viu-se, na noite da vitória, a recomposição das presenças. Pareciam os anacoretas no deserto que, subitamente iluminados, queriam ampliar o reino de Deus. Não há afecto, em política: há urgências e há necessidades de poder. E o poder dispõe de instrumentos que se expressam a si mesmos, numa rotina incansável, porque o poder não possui variantes. Amado ou odiado, Passos Coelho começou a ser um homem sob vigilância.
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«DN» de 31 Mar 10