terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A Língua Franca da tecnologia

Por Nuno Crato

O MUNDO DAS LÍNGUAS dá voltas inesperadas. O imperador Carlos V gostava de dizer que falava em latim com Deus e em italiano com os músicos, enquanto usava o francês para as senhoras e o inglês para os cavalos… Que diria ele se soubesse que esse idioma desprezado, falado na altura por pouco mais que uns ilhéus excêntricos, se tornaria na mais internacional das línguas?

Ao contrário de Carlos V, os falantes de diferentes idiomas precisaram sempre de recorrer a uma língua única para comunicar. Podia ser para as trocas comerciais, para a expansão de uma fé religiosa, para a guerra ou para a administração de impérios. Um século antes de Cristo, quem soubesse grego podia viajar desde a Península Ibérica até à Índia usando esse idioma, com a certeza de encontrar sempre alguém que o compreendesse. No século XIV, era preciso saber árabe para o poder fazer. Dois séculos mais tarde, o português era entendido por mercadores desde a costa ocidental de África até à Índia. Uma língua como essas, que serve para comunicar entre falantes de diferentes idiomas, recebe a designação de “língua franca”.

De todas as línguas francas, o latim foi a mais duradoura. Dois milénios depois do seu aparecimento, era a linguagem de comunicação entre cientistas e europeus cultos — Pedro Nunes escrevia em latim, tal como Copérnico, Newton e Thomas Moore. Mas o inglês é a língua mais universal. É o idioma que os turistas alemães falam quando estão em França e que os empresários japoneses usam quando chegam a Timor. Não é apenas o idioma do comércio ou da gestão. É também a língua do turismo, da ciência e da navegação. É em inglês que os pilotos falam quando se aproximam de um aeroporto, mesmo que sejam franceses e aterrem em Paris.

A partir da segunda grande guerra, o inglês impôs-se no mundo científico — até então usava-se igualmente o francês, o alemão, o russo ou o italiano. Nos fins do século XX, o domínio da língua de Charles Darwin e Alan Turing tornou-se indisputável entre os que fazem ciência. Usá-la não é escolher uma língua de um país em detrimento de outra. É simplesmente escrever ou falar de forma a se ser entendido em todo o mundo. Usa-se como se utilizava o latim, com a vantagem de ser uma língua viva, que tem outros préstimos, além dos científicos.

Até quando? Se nunca nenhuma língua franca perdurou, que acontecerá ao inglês daqui a algumas décadas? Nicholas Ostler, um estudioso britânico da história das línguas, tem uma teoria que está a levantar celeuma entre os linguistas. Diz ele que o inglês está condenado a breve prazo. Não para ser substituído por outra língua, mas para dar origem a uma fragmentação dos idiomas. As ferramentas de tradução automática são, diz ele, o futuro. No seu livro “The Last Lingua Franca: English Until the Return of Babel” (Princeton 2010), sugere que o inglês está no seu apogeu, que sobreviverá enquanto grande idioma, mas que deixará de ser usado para a comunicação internacional. Os computadores tomarão o lugar dos tradutores nas Nações Unidas e os leitores digitais poderão traduzir automaticamente os diversos textos. Os cientistas poderão escrever na língua que entenderem, sabendo que poderão ser entendidos em todo o mundo. A tecnologia, que espalhou o inglês pelo mundo, seria responsável pelo fim dessa língua franca e pelo aparecimento de uma nova Babel.

Este futuro — a ser assim o futuro — está longe. Entretanto, tenha um Bom Ano!
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 30 Dez 10