sábado, 29 de janeiro de 2011

Lisboa tem de ir ao dentista

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Por Antunes Ferreira

LISBOA PRECISA de ir ao dentista; está cariada por tudo o que é sítio. É uma boca desgraçada com uma dentadura desdentada. A odontologia é como o algodão: não engana. Já lhe implantaram duas pontes, mas precisa de uma terceira. Só que não há euros; e os que vai havendo são cada vez mais caros e raros. A sabedoria popular não é de meios-termos: quem não tem dinheiro, não tem vícios. A capital não tem dinheiro, mas tem vícios. E cáries.

E qual é o objecto destas mal alinhavadas linhas? Trata-se da saga dos prédios tristes. Logo no início de quem sobre a Domingos Sequeira, a caminho da Ferreira Borges, entrando em Campo de Ourique, à direita há um exemplar incontornável do propósito que me anima, no caso presente, me desanima. É o fantasma vivo do que foi o Cinema Paris. Utilizo já a palavra vergonha, fazendo o aviso de que ela seria repetitiva ao longo de todo o texto. Daí que tenha a intenção de não a repetir, tantas vezes teria de a usar. Tantos e tamanhos são os crimes urbanístico-alfacinhas, que a partir de agora só com o Dicionário de Sinónimos.

O amarelo sujo da fachada apodrecida tenta esconder a estrumeira no interior. É só merda, o que por ali abunda. Porque tudo o que é submundo, tudo o que sem abrigo, tudo o que é drogado ali satisfaz as necessidades fisiológicas, um verdadeiro reino de dejectos. Envolvendo o infeliz há tapumes repintados de cartazes os mais diversos, desde os espectáculos de circo, até às orações a São Judas Tadeu. E grafiti; mal pareceria se não existissem em tal local.

Está devoluto há mais de uma vintena de anos. Em 2008, a Câmara, timidamente, mandou um buldozer e uns quantos operários para retirar o entulho e o resto. Debalde. Bastaram uns quinze dias para tudo voltar ao mesmo, incluindo as varejeiras. Há um alerta de ameaça, apesar do escoramento, o edifício pode ruir. De cansaço de estar em pé, muitos já caíram. Mais um, menos um…

O bairro é, de resto, zona de mais prédios decrépitos. De janelas e portas entaipadas a tijolo, de frontarias esburacadas, de vidraças estilhaçadas. Não é, infelizmente, o único. Bem pelo contrário. Volto atrás no percurso. Que não é, de forma nenhuma, passeio; é uma coisa bem diferente. Consulto o dicionário, como avisei antes. Opróbrio deve servir. É, por conseguinte, uma forma de opróbrio.

Madragoa e a própria Lapa têm muitas. Esta última é um bairro fino, de tias a estacionar em cima dos carris dos eléctricos na Rua de Buenos Aires, lado a lado, conversando de carro para carro com os guarda-freios a olhar e os passageiros a protestar. Pois por ambos os bairros o que não falta são casas em ruínas. Onde se acoitam os mais diversos representantes das desgraças.

Descendo a Santos, continua a saga. E pelo Calvário, e por Alcântara, e pelo Dafundo, e pelo Lumiar e por toda a parte. O centro da cidade não escapa. Basta sair do Marquês do Pombal e logo na Fontes Pereira de Melo há um quarteirão delas. Que esteve anos tapado por uma cobertura enorme onde se lia o número de prédios… recuperados pela CML e que hoje está pintalgado de desenhos mais ou menos abstractos, uma anedota.

Na Avenida da Liberdade, na Avenida da República, no Saldanha, na Graça, no Bairro das Colónias, em Sapadores, na cidade inteira e arredores é um formigueiro de alvenaria morto. Aqui e além ponteado por gente de passagem, sem eira nem beira, nem pé de figueira, nem muda de roupa de baixo. O rol estende-se aos arredores, eu sei. E pelo País fora. Em todo o Mundo deve haver disto. No Brasil é o que se conhece.
Mas, Lisboa, a bem ou a mal, é a minha terra, porra! Quando ainda se consegue abrir num sorriso, o que se vê é uma dentadura com muitas teclas pretas; demasiadas. Vendo bem: será caso para dentista ou para um afinador de pianos?