segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Difícil de entender

.
Por Alice Vieira
.
A VOZ DA SENHORA, do outro lado do fio (o telemóvel não tem fios, mas a expressão mantém-se...) era, digamos, ligeiramente desagradável: “então agora parece que temos de lhe pagar as viagens”.
.
Contei mentalmente até três, para não desatinar logo, e, no tom de voz mais cordato que me foi possível arranjar, respondi que sim: uma vez que eu vivia em Lisboa e a escola ficava a centenas de quilómetros da minha porta, a escola, que tanto insistira na minha ida até lá, teria de me pagar o transporte. E que isso era o mínimo.
.
A senhora ficou ligeiramente incomodada, e vá de dizer que não compreendia como podia eu exigir uma coisa daquelas, se eu não sabia que a escola não tinha verbas, se eu não sabia como estavam todas carenciadas, e por aí fora, até eu, muito educadamente, lhe explicar que o problema não era meu, ela então que pensasse melhor e depois me voltasse a contactar, e muito boa tarde.
.
Confesso: estou a ficar sem paciência.
.
Há cerca de trinta anos que ando nestas correrias, hoje numa escola amanhã noutra, semanas que nem venho a casa, a agenda completamente preenchida até ao princípio de 2009, a escrita atrasada, a família que já quase nem conheço – tudo porque as professoras me telefonam continuamente a pedir que vá às suas escolas, falar com as crianças, motivar as crianças para a leitura, etc, etc... E eu tenho muito gosto nisso, e tento acudir a todas, mas se digo que não posso ficam ofendidas, e acham que estou a privilegiar Lisboa, “pois claro, como toda a gente, não quer saber do interior do país...”
.
(Já agora, para que conste: Lisboa é a cidade onde menos escolas se lembram de me convidar...)
.
O pior é que os professores, que reivindicam sempre melhores salários — e com toda a razão! -, que reivindicam o pagamento das horas extraordinárias – e com toda a razão! — nunca percebem que eu tenho todo o direito de fazer o mesmo.
.
Ou seja, de exigir ser paga pelo meu trabalho.
.
Se uma escola me pede que lá vá — e há escolas onde eu chego a fazer seis sessões diárias, e depois meto-me no comboio e no outro dia de manhã já estou noutro lugar a fazer o mesmo...— e depois acha que aquilo não é trabalho, e que nem as deslocações deve pagar, é porque alguma coisa está mal.
.
Se os professores não entendem isto — alguma coisa está mesmo muito mal.
.
As horas que eu passo a trabalhar com as crianças numa escola são horas em que os professores não estão a dar aulas, e horas em que eu não estou no meu trabalho da escrita.
.
Se eu fosse dona de uma editora, ou mulher de um chefe que me assegurasse carro e motorista e mordomias afins — a questão nem se colocava.
.
Como também decerto não a colocaria aqui se ela só a mim afligisse.
.
O pior é que isto se estende aos meus outros camaradas de profissão, que se vêem doidos para que lhes paguem o que lhes é devido.
.
Todo o trabalho tem de ser remunerado.
.
Será que isto é assim tão difícil de entender?

Sem comentários: