quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

MEMÓRIA DE UM NATAL

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Por Baptista-Bastos
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FAZ AGORA ANOS. Eu era um tira-picos na Redacção de O Século. A "universidade", a "catedral", diziam uns e outros. Entre receoso e feliz olhava aqueles homens graves, que escreviam o jornal com a vaidade de quem está a retratar o mundo em corpo 8 redondo. Grandes, extraordinários jornalistas, obscuros e anónimos, que sabiam, oh, se sabiam!, que as páginas impressas eram produto dessa paixão viva como o sangue.
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Eu era esgalgado, afirmativo, e queria caber naquela tribo. Por vezes, para "colorir" a notícia, atrevia-me à tolice do adjectivo. Chamavam-me logo: "O menino está a trabalhar num jornal que custa cinco tostões. Não queremos cá Malhoas!" O chefe da Redacção, Acúrsio Pereira, uma lenda da Imprensa. Pequeno, gritador emérito, comentava-se que dormia embrulhado em folhas impressas. Dividia a humanidade em jornalistas e não-jornalistas, sendo O Século a representação do seu império. O Século pertencia à família Pereira da Rosa, mas o jornal era do Acúrsio.
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Faz agora anos: uma noite de frio e de morte. Naufrágio na Nazaré. Fora para lá uma equipa de quatro repórteres, dirigida por Francisco Mata, outro dos grandes, mas o Mata ficara impressionadíssimo com o que observara na praia, e não conseguia organizar a reportagem. Eis o Acúrsio a gritar-me: "Vai imediatamente para a Nazaré!" O pavor tomou-me nos braços. O tira-picos fora mandado sair do túnel e entrar em campo. Percebendo a minha comoção, o Acúrsio ensinou-me: "Abres a reportagem com a primeira cena que te emocionar. E eu estou aos telefones!"
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O barco estava a meia dúzia de metros da praia. A praia era um mar de gente, de imprecações, de preces e de choros. Centenas de mulheres, embiocadas de negro, pareciam os coros das tragédias gregas. O barco não conseguia vencer a força do mar, e elas avançavam por ali adentro, puxando as sirgas, e dialogando com os pescadores. "Eh, Toino: aguenta-te homem do meu coração!" "Tás aí, Amélia?" O barco ia para trás e para a frente, o cansaço acumulava-se, o tempo ia varando o tempo, e elas, de negro, revezavam-se no puxar das sirgas. Até que conseguiram. Correram para o mar, agarraram-se às amuradas. Então, um deles avisou: "Eh, mulheres: cheguem-se para lá, que nós estamos como viemos ao mundo!" O poder das ondas arrancara-lhes a roupa dos corpos. Havia qualquer coisa de extraordinário naquele pudor, porventura absurdo, mas de uma grandiosidade tão humilde como sagrada.
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O episódio foi, depois, aproveitado em livro, por um escritor da época. Com os olhos cheios de lágrimas, telefonei para o jornal. Começava o texto com a frase do pescador. O Acúrsio gritava: "Mais! Diz mais coisas!" Relatava o que via. Eles crucificavam-se em lágrimas, eu não podia ter o coração oco. Faz agora anos. Por um Natal.
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«DN» de 24 de Dezembro de 2008.

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