domingo, 14 de dezembro de 2008

COISAS DO DESASSOSSEGO

Por Nuno Brederode Santos
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EM FUNDO, ESCASSOS RECURSOS e grandes necessidades. A crise força os governos a aliviar a rigidez dos seus critérios. Permite às oposições cavalgá-la, exigindo o instante e o adiável, o necessário e o supérfluo. Faz saltar os interesses menores, pelo medo de serem duradouramente preteridos pelos maiores. Acentua - e, em regra, bem - a suspeição, sobre quem pede ou reclama, de o fazer em nome de interesses. Agora, junte-se a isto a iminência de eleições e a ideia, que a experiência dos povos não desmente, de que o poder político costuma sorrir para adoçar o esgar (ou, como disse Narana Coissoró na SIC Notícias, no embalo naïf de uma cumplicidade espúria com a oposição de esquerda de Fernando Rosas e corroborando a crítica à contenção e às restrições do momento: "A nove meses de eleições, este Governo devia ser um governo doce, esbanjador e despesista"). Isto faz-nos o clima, mais do que a chuva do Outono que outoniza. Nem apetece sair de casa.
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Até para não tropeçar no lixo que se acumula, fede e ninguém apanha. Uma greve inesperada apontou-nos, pior do que ao coração, ao Natal. Em calhando, até terá os seus motivos. Não sabemos. Porque o afã de pôr a gritar na rua, em sucessão ininterrupta, tudo o que tiver razões de queixa, leva por vezes a esquecer de explicar, bem explicadinho, o transtorno que causamos a terceiros. Claro que o sindicalismo de sempre conta com esse transtorno, mas costumava ser para explicar e suscitar solidariedades. Agora, parece que não há tempo. Basta dizer que há a suspeita de que a Câmara quer privatizar a recolha do lixo no Chiado e nos Olivais. O Presidente da Câmara diz que nem lhe é possível dialogar, porque nada sabe, a não ser que tem, na secretária, o pré-aviso de outra greve. No meu pacato quotidiano, uma classe média que comigo partilha o atavismo de pensar que talvez não seja indispensável contratar com terceiros a recolha do lixo urbano (a não ser nas improváveis condições de um notório benefício para a cidade), começa a ponderar se fazê-lo não será o melhor modo de acabar com mais um foco de mal-estar.
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Mas ficar em casa não resolve todos os problemas, nem sequer os maiores de entre eles. Porque, ao mesmo tempo que isto ocorre à nossa porta, os media metem-nos lá dentro outra gloriosa arruaça na Assembleia Legislativa da Madeira, culminando com um discurso intimista de Jardim (no qual até aproveitou para explicar por que razão é malcriado). "A figura do Estado unitário não serve", repetiu ele. Para logo acrescentar que "ou a República respeita a Madeira ou (...) assumirá as suas consequências". Acossado pela incompreensão geral quanto ao seu comportamento para com os desmandos de Jardim, o Presidente da República aproveitou um incidente com deputados faltosos em S. Bento para, como quem não quer a coisa, fazer doutrina: o Presidente não interfere no funcionamento interno das Assembleias, seja a da República sejam as das ilhas (cuja equiparação, no caso, não podia ter outro a propósito). Talvez chegue em auto-avaliação. Mas, se me é permitido avaliar também, não chega. Porque o que está em causa não é matéria do regimento da Assembleia Legislativa, nem sequer já a sonora proclamação de princípios contrários à Constituição que nos rege. É, muito mais singelamente - e por estulta que seja -, uma ameaça ao regime. E uma ameaça que cresce perante cada manifestação de fraqueza contemporizadora de Belém. Não se quis ligar aos "cubanos do Continente", porque talvez a expressão fosse galhofeira. Não se quis ouvir os "colonialistas de Lisboa", porque se preferiu levar à conta de um transporte humoral. Então tomem lá a expressão singela e sóbria, rotunda e escorreita, do seu pensamento: ele fala da República. Essa mesma. A que tem uma Constituição por zelar. E se quem pode o mais pode o menos, o Presidente, que ainda tem meios e poderes para intervir na vida das regiões e que, com os olhos postos nos Açores, já se dirigiu ao país inteiro, teria as oportunidades que quisesse para varrer a testada da instabilização, provocatória e permanente.
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Que o PSD não o faça, que nenhum líder nacional tenha coragem (que hoje é já força) para o fazer, é problema dele e dos seus filiados. Mas o respeito pelo património político nacional cabe a quem os portugueses votaram para o efeito. E não há improviso doutrinário que nesta matéria os engane.
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«DN» de 14 de Dezembro de 2008 - Este texto é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

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