terça-feira, 9 de novembro de 2010

Constance Reid, a escritora que os matemáticos admiram

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Por Nuno Crato

NA SEMANA PASSADA, o New York Times noticiava «Constance Reid, biógrafa de matemáticos, morre aos 92 anos». Lembrei-me do primeiro livro que li dessa grande autora. Foi «Hilbert», uma biografia do matemático alemão que dominou o panorama da matemática e da física no dobrar do século XIX para o XX. Creio que nenhum livro me ensinou tanto sobre história da ciência moderna como esse. Aprendi o papel que teve a criação de centros de investigação no século XIX; percebi como David Hilbert (1862–1943) criou um centro de investigação excepcional em Goettingen e como a escola que daí surgiu influenciou o rigor da matemática e da física nas décadas seguintes; entendi como Hilbert, ao enunciar em 1900 os 23 problemas maiores da matemática, definiu uma agenda de investigação que dominou o século XX e que ainda hoje influencia a investigação. Foi uma leitura fascinante.

Procurei outro livro da mesma autora e li «Courant», a biografia de um aluno de Hilbert que se tornou o seu principal apoio na organização do Instituto de Goettingen e que, mais tarde, em Nova Iorque, organizou o instituto que hoje tem o seu nome. Richard Courant (1888–1972) foi um grande matemático e um grande organizador — duas qualidades que só muito raramente se reunem na mesma pessoa.

Nesses livros de Constance Reid encontra-se uma mistura de factos humanos e de referências científicas que mergulham nas aventuras intelectuais do século XX e que nos fazem perceber a importância dos debates entre as grandes escolas. Percebe-se, por exemplo, a crença que David Hilbert tinha no poder da matemática. O seu epitáfio é constituído por uma frase célebre, que pronunciou em 1930 no seu último discurso público: «Wir müssen wissen. Wir werden wissen.» — «Temos de conhecer. Haveremos de conhecer.»

Foi o culminar da escola formalista, que pensava ser possível, com um conjunto de axiomas e regras formais, desenvolver inequivocamente toda a matemática. Curiosamente, um dia antes do discurso de Hilbert, o lógico Kurt Goedel deu um golpe fatal na ambição mais extrema de Hilbert ao mostrar que, qualquer que seja o sistema formal de base e as regras que se estabeleçam, há sempre factos matemáticos que não podem ser provados no interior desse sistema.

O nazismo e a guerra, entretanto, intervieram. Goedel refugiou-se nos Estados Unidos e é pouco provável que Hilbert alguma vez tenha tido a possibilidade de repensar a sua formulação. É também pouco provável, no entanto, que a sua confiança no poder da matemática pudesse ser abalada. Tampouco foi abalada nos grandes matemáticos que lhe seguiram. Esta história foi também contada por Constance Reid, mas uma versão mais moderna encontra-se no livro «Incompletude» de Rebecca Goldstein traduzido para português em 2009, pela Gradiva.

Antes de enveredar pela biografia de matemáticos, Constance Reid, que era professora de inglês e nunca tinha estudado matemática avançada, escreveu uma memória dos seus tempos de guerra numa fábrica de bombardeiros onde trabalhou. Em parte por influência da sua irmã, uma célebre matemática norte-americana, dedicou-se à popularização científica, tendo escrito «A Long Way from Euclid» e «From Zero to Infinity». Mas os seus maiores sucessos foram as biografias de matemáticos. A última, publicada em 1996 é uma homenagem à irmã, escrita na primeira pessoa. Chama-se «Julia Robinson: A Life in Mathematics». Tal como todos os seus outros livros, é uma obra esclarecedora e profundamente humana que mereceria ser traduzida e lida.
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 6 Nov 10