segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Hipátia na Ágora

Por Nuno Crato

CONTA-SE QUE ERA UMA MULHER ATRAENTE, que resistia aos seus numerosos pretendentes e que mantinha ostensivamente o celibato. Conta-se que era uma grande matemática e filósofa, que estudara em Atenas e vivia na agitada Alexandria, na época em que o helenismo, o judaísmo e o cristianismo se digladiavam no Império. Conta-se que foi morta violentamente por uma turba de religiosos fanáticos, quase certamente instigados pelo Bispo Cirilo, Patriarca de Alexandria. Tudo isto que se conta sobre Hipátia de Alexandria (c. 355–415) é a verdade histórica, ou seja, o que se conhece com a segurança possível.

É sobre isto que fala, com bastante fidelidade, o filme Ágora, actualmente em exibição entre nós. Retrata uma época em que as discussões civilizadas da praça pública grega, a ágora, tinham dado lugar à violência das turbas. As personagens, nomeadamente Amónio, Orestes, Cirilo e Sinésio, são figuras históricas, retratadas com alguma veracidade. Igualmente fidedigna é a descrição de Theon, o pai de Hipátia.

Theon foi um matemático famoso. Era bibliotecário em Alexandria e deixou vários comentários, ou seja, textos clássicos rescritos e desenvolvidos de forma a poderem ser difundidos e estudados. Não se lhe conhecem criações matemáticas originais, mas a qualidade dos seus textos impôs-se ao longo dos séculos, tendo chegado até aos estudiosos árabes. Sabe-se que Hipátia colaborou com ele em algumas edições, nomeadamente nas Tabelas Práticas de Ptolomeu e na Aritmética de Diofanto. Terá sido ela quem fez e corrigiu alguns cálculos de várias obras. Sabe-se ainda que fez um comentário ao Livros das Cónicas de Apolónio. Pouco mais se sabe sobre esta figura romântica da história da matemática, mas quem quiser conhecê-la melhor poderá ler Hipátia de Alexandria (Relógio D’Água), um breve estudo de Maria Dzielska que é a melhor fonte moderna sobre a cientista alexandrina.

O filme, que noutros aspectos tem preocupações históricas bastante louváveis, apesar de ser tão primariamente crítico do cristianismo primitivo que perde por esse primarismo, abandona aventurosamente a realidade quando fala das investigações de Hipátia. A matemática e astrónoma alexandrina aparece como tentando conciliar o modelo heliocêntrico de Aristarco com o modelo geocêntrico de Ptolomeu. Não há nenhuma base para essa presunção. O modelo de Aristarco era então apenas uma curiosidade algo absurda, e só em 1543 foi reavivado com o trabalho de Copérnico.

Entre outras desproporcionadas referências, o filme coloca Hipátia num navio, explicando ao prefeito romano Orestes a relatividade do movimento, um conceito avançado por Galileu 12 séculos mais tarde. Noutra cena, Hipátia discorre sobre a variação da distância da Terra ao Sol e tenta criar um modelo que consiga explicar essa variação sem círculos sobre círculos, os célebres epiciclos. Aí, os consultores do realizador esquecem os círculos excêntricos, com que Ptolomeu resolveu admiravelmente esse problema cosmológico. Numa das cenas mais exageradas da película, Hipátia conclui que as órbitas dos planetas devem ser elípticas, uma conclusão que escapou a Copérnico, a Galileu e a tantos outros e que demorou a Kepler uma vida de cálculos laboriosos para poder ser formulada.

É pena que estas invenções se juntem a outras falhas que tornam o filme menos interessante e menos credível. É pena, pois Hipátia é uma grande figura. É a primeira mulher matemática e os historiadores associam a sua morte ao fim da matemática helénica. Séculos passaram até que na ágora se voltasse a amar a ciência.

«Passeio Aleatório - «Expresso» de 31 Dez 09