quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O doloroso 'intermezzo'

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Por Baptista-Bastos

MATAMOS DUAS E TRÊS VEZES os nossos poetas. Os políticos, esses, servem-se deles para adiantar conhecimentos literários de duvidosa autenticidade. Torga, Sena, O'Neill foram os mais citados por presidentes da II República. Mário Soares conheceu quase todos. De muitos, foi amigo. E ouviu de Torga, de Sena e de O'Neill mordazes palavras recriminatórias. O'Neill timbrou um estribilho célebre: "Ele não merece, mas vota no PS."

Era gente de outra estaleca, que se deixava levar pelo poder da ironia e do sarcasmo. Procedia de uma geração sem equívocos e sem ambições de soldo ou de glória. O sonho de liberdade alimentou a vida e iluminou a obra dessa gente. Soares sentou à mesa do Palácio de Belém o que de melhor havia na literatura portuguesa e europeia. Eanes, com a decência comum ao cavalheiro da aristocracia de província, nunca alardeou as suas amizades intelectuais, mas tinha-as, honrava-as e respeitava as plurais tendências de cada qual. Com discrição e decoro chegou a ajudar alguns e a tentar corrigir injustiças, como no caso de Natália Correia.

Também tivemos sorte, nesta matéria, com Jorge Sampaio. Acaso foi timorato em excesso, quando presidente. Porém, seria incapaz de confundir Thomas Mann com Thomas More. Não era adepto da superstição do consumo, não era frequentado pela ironia, mas emocionava-se com a condição humana.

Cavaco constitui um intermezzo por vezes doloroso, amiudadamente cómico, e sempre torturante: não é homem animado pelas apoquentações do espírito. E se nunca está à vontade num ajuntamento, quase entra em pânico num grupo de pessoas medianamente letradas.

A Presidência da República, com excepção do interregno salazarista, possui a tradição de ser ocupada por homens dados à cultura e à curiosidade literária. Estes atributos não fazem, necessariamente, um bom executante do cargo, mas ajudam muitíssimo. Um presidente de recursos culturais escassos, medíocres e insistentes, não só banaliza a função como causa a zombaria. Sabe-se: Cavaco chegou aos altos cumes do Estado por uma simbiose milagrosa, casual e disparatada que a História, por vezes, concebe e concede. Não foi um grande primeiro-ministro, pelo contrário; não é um Presidente marcante pela positiva.

Ora, perante estas amargas evidências, não surpreende que Manuel Alegre se "disponibilize" para "entrar na luta." Apesar dos anticorpos que criou, inclusive em certos yes men do seu partido, ele possui uma vida numerosa, intensa e arriscada, que cauciona o humanismo de voz alta, próprio de quem não confunde razões de coração com as imposições da tabuada.

«DN» de 20 Jan 10