sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A burka, o nikab e a santíssima paciência

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Por Helena Matos

COM TANTO SANTO
e santa existentes no calendário católico ou, na versão laica desse calendário, dia disto e dia daquilo não percebo como nunca se dedicou um dia à santíssima paciência. A santíssima paciência tornou-se uma virtude essencial para sobrevivermos mais ou menos sãos de espírito num mundo onde começa por não se fazer o que se deve para se acabar a fazer o que não se pode. Veja-se a actual discussão em França sobre a proibição da burka e do nikab, ou seja daqueles véus e mantos que cobrem integralmente o rosto e o corpo das mulheres, e percebe-se ao vivo e em directo este paradoxo. Durante anos, no ocidente, achou-se normal que mulheres com o rosto velado votassem (Canadá) ou tratassem dos mais diversos assuntos oficiais veladas, sendo que a sua identidade não era realmente confirmada. Por receio de que alguém pronunciasse a palavra racismo aceitou-se que médicos e enfermeiros se tornassem em sacos de boxe de maridos exaltados com o facto de as suas mulheres serem assistidas por homens que insistiam em, pelo menos, ver-lhes a cara e as entidades empregadoras enfrentaram as mais bizarras situações quando algumas das suas trabalhadoras entenderam que iam passar a usar véu. E foi assim que, após anos e anos em que não se fez o que se devia – fazer respeitar por todos o que fora aprovado para todos mas na verdade se aceitou por medo e inércia que alguns não cumprissem –, nos estamos a preparar para fazer o que não se pode, ou seja multar as mulheres que usem burka ou nikab, como agora se pretende em França e também em algumas zonas de Itália.

COMO ERA previsível o paternalismo folclórico da fase multicultural vai agora dar lugar ao paternalismo jacobino da fase nacional. Pois só por paternalismo (o que é o politicamente correcto senão uma forma de paternalismo?) se entende o estatuto que as comunidades muçulmanas estabeleceram em países como a Itália, França, a Holanda, a Grã Bretanha ou o Canadá. Para os demais habitantes desses países, e pese as suas variadíssimas origens, gostos e manias, existe uma espécie de mínimo denominador comum sobre o que se pode ou não vestir. Por isso as mulheres africanas emigradas por esse mundo fora não se pintam, nem penteiam como era hábito entre os seus povos de origem e arriscariam ir parar a uma esquadra caso se apresentassem de peito nu como fizeram muitas das suas mães e avós. E, numa versão mais europeia do exotismo, não consta que os homens gregos andem com aqueles saiotes plissados e pantufos com pompons pelas praças financeiras do planeta Terra, mesmo agora que a dívida do seu país ameaça dar-lhes mais alguns momentos não da imortalidade que conseguiram na Antiguidade mas sim duma vida contemporânea bem difícil.

PARECE inquestionável que um país que respeita e exige respeito pelas suas instituições não pode mascarar nas estatísticas os crimes de honra de modo a que não se perceba que a sharia se vai aplicando ou tentando aplicar, pelo menos às mulheres, na Suécia, em França e em Espanha. Tal como não pode aceitar que as mulheres deponham com burka nos tribunais ou que não se identifiquem nos mesmos termos que se impõem aos outros cidadãos numa repartição pública ou na celebração de um contrato. Para um ocidental é tão chocante ter de falar, atender ou receber uma mulher com a cara toda tapada quanto para um muçulmano será ver uma mulher calçada e de cabeça descoberta dentro duma mesquita. Mas depois de décadas cheios de culpas por tudo aquilo que aconteceu no mundo, por sermos brancos, por nos acharmos ricos (fantástica ilusão!), por nos responsabilizarmos por tudo o que os nossos antepassados fizeram ou não fizeram ao longo dos séculos – nem nos ocorrendo que os nossos antepassados não eram nem podiam ser iguais a nós – acabámos a não saber aquilo que somos e a confundir respeito pelo outro com permissividade. Ou seja criámos o terreno ideal para as franjas dos radicalismos, nomeadamente dos fundamentalistas islâmicos a quem não basta tentarem controlar a vida do que entendem ser as suas comunidades e sobretudo das mulheres, como também criar constantes situações de conflito com aqueles que definem como infiéis. Quando em alguns bairros de França ou de Itália se começaram a ver mais mulheres cobertas de mantos negros que em muitas zonas de países muçulmanos o mal estar foi crescendo. Agora há quem defenda proibições e proponha multas para aquelas que usem tais vestes. Mas a mesma razão que me leva a não concordar que nos serviços públicos se atendam mulheres cujo rosto não se vê, a mesma razão pela qual não a aceitaria que os meus filhos frequentassem uma escola onde trabalhassem mulheres que usassem burka ou nikab, leva-me a ser também contra a criminalização dessas peças de roupa.

«Público» e «Blasfémias»